foto: Haroldo Palo Jr
Francisco Piyãko (foto: Haux Produções)

Nome  Francisco Piyãko, liderança da TI Kampa do Rio Amônea

Nome indígena  Shãsha

Nosso povo é reconhecido por nós como Ashaninka ou Ashenĩka. Também fomos muito conhecidos como ‘Kampa’ e foi difícil tirar esse nome. Alguns ainda hoje nos chamam assim, mas já tem muitos trabalhos, registros, já somos bastante conhecidos como Ashaninka, tanto no Brasil como no Peru. Não existe uma palavra única para traduzir ‘Ashaninka’, mas quando você fala ‘Ashaninka’ é como se fosse ‘parente’, ‘irmãos’, ‘povo’. Se você é um Ashaninka você já é meu parente. Somos conhecidos como um povo guerreiro pois sempre lutamos pela defesa de nossos territórios.

Aqui no Brasil somos aproximadamente três mil Ashaninka, só no Amônia somos 800. Estamos vivendo em seis terras indígenas nos rios Envira, Breu, Tarauacá e Amônia. No Peru, segundo o último censo, somos cerca de cem mil. No ano passado (2015), organizamos o I Fórum Binacional dos Ashaninka do Brasil e do Peru que reuniu cerca de 100 lideranças da região do Ucayali e de outras regiões. Estamos tentando conhecer melhor essa região para que a gente possa começar a discutir juntos estratégias de fortalecimento das comunidades para a garantia de nossos direitos.

História Ashaninka Peru-Brasil

Os Ashaninka vieram de um casal que foi colocado na terra para iniciar e fazer crescer a população Ashaninka. Depois, vieram os filhos desse casal que foram orientados por seus pais.  Esta família a gente chama hoje de Pawa. Tomaram kamarãpi (ayahuasca) muito forte e, cantando, foram para outro lugar, mas deixaram os caminhos e os ensinamentos de como tinha que ser feito para a gente viver aqui, trabalhar, sobreviver. Eles não morreram, de onde eles estão continuam vivos, sem estarem presentes aqui conosco. Se alguém quisesse conversar com ele tinha que ser através do kamarãpi.  Por isso que o kamarãpi é uma coisa muito sagrada e importante, porque é ele que faz a ligação para manter vivos os ensinamentos e a história.

foto: Terri Vale de Aquino

No passado, nós ocupávamos lugares que não eram nesta região amazônica. Viemos sendo pressionados pela presença dos ocupantes espanhóis, mas historicamente os Ashaninka vieram de uma região mais central do Peru. Não tem uma história escrita, mas conhecemos que houve um movimento que veio de muito longe, por conta da luta para se esconder, para se afastar dos invasores, para fugir dos brancos e se proteger. Os Ashaninka formavam bases e tomavam conta dos rios, porque os rios eram os caminhos que eles usavam. Então, eles montavam aldeias-referência para impedir a entrada, como se ali fosse o limite para que alguém não pudesse ocupar, chegar e morar naquela região. Ainda hoje é muito forte essa estratégia Ashaninka de sempre proteger os rios, as bacias dos rios.

Uma referência importante na nossa história é que os Ashaninka presenciaram quando os Incas tiveram o conflito com os espanhóis. Inclusive, nesta viagem que fizemos recentemente para o Peru, eles nos mostraram exatamente o local de onde eles assistiram a guerra dos Incas contra os espanhóis. Os Ashaninka tinham relações com os Incas, faziam ayõpari (troca), mas nunca pertenceram ao grupo de trabalho de servidores do Império Inca.

Os Incas formaram um império muito grande com uma estrutura que chamava muito a atenção e os Ashaninka tinham muito medo de ficar perto e de se envolver, pois sabiam que os brancos estavam chegando com a intenção de ocupar tudo. Os Incas não se atentaram para isto, enquanto os Ashaninka já vinham de outras experiências. Então, isto mostra que bem antes desse momento da guerra dos espanhóis contra os Incas, os Ashaninka já conheciam os brancos e sabiam que eles estavam chegando. Isto comprova também que os Ashaninka já têm mais de quatrocentos anos de contato com os brancos, não é uma coisa nova.

Com relação à nossa presença no rio Amônia, os Ashaninka vieram pra cá num momento em que aqui ainda não era ocupado, não tinha a presença de nenhum branco, não era Peru, nem era Brasil ainda. Só eram índios, os Ashaninka e os Amahuaca, e tinha conflito de terra, porque os Ashaninka ficavam sempre num rio e os outros ficavam fora do rio e aqui e acolá tinha conflito entre eles. Depois foram chegando os brancos para ocupar esses espaços e os Ashaninka ficaram nesse meio e até hoje estamos vivendo aí. Marechal Taumaturgo era uma comunidade peruana, depois que os brasileiros tomaram esse lugar. Os antigos Ashaninka falam desse conflito, das brigas por conta da terra. Naquela época eles não entendiam porque tanta briga. Eles contam que bem antes os peruanos estavam ali e depois, de repente, teve uma briga grande entre Peru e Brasil e findou que essa região toda ficou no Brasil. Quando foi demarcado os limites Peru-Brasil, uma pequena parcela do povo Ashaninka ficou dentro do Brasil e o resto está todo no Peru.

Tempo dos Seringais

A região que escolhemos para viver não tinha seringa, só tinha abaixo do limite da nossa terra, para cima não tinha. Acho que foi uma opção mesmo de não querer ficar submetido a cortar seringa, porque tirava a liberdade, era como se fosse um cativeiro mesmo, uma prisão, e os Ashaninka nunca aceitaram isto. Como eles conheciam a espécie que estava sendo explorada, a seringueira, então preferiram ocupar os lugares onde não tinha, porque não queriam virar seringueiros. Se você observar, também os Ashaninka das outras regiões foram procurar exatamente essas áreas: no Breu, os Ashaninka ocuparam a parte onde não tem seringa (na parte dos Huni Kuĩ tem) e a mesma coisa acontece no rio Envira. Também no Peru os Ashaninka nunca ficaram sendo mão de obra, por isso que eu acho que a gente conseguiu sobreviver nesse tempo muito firme.

Nós tínhamos uma relação de troca com os patrões; a prática que a gente tinha de ayõpari, a gente estabelecia com qualquer pessoa. A gente sabia que tinha o abastecimento dos seringais, então quando a gente precisava de algum produto, como sal, fósforo, ferramentas de trabalho, a gente perguntava o que eles queriam em troca e assim sempre foi feito.

Mas os Ashaninka também foram usados pelos patrões. Em alguns momentos, eram chamados para andar nos rios, para acampar nas praias (talvez daí venha o nome ‘Kampa’), para intimidar os outros povos indígenas que estavam por perto, como os Huni Kuĩ e os Amahuaca. Isto porque era muito perigoso para os seringueiros abrir uma colocação e a família ficar ali, pois aconteciam roubos, as casas eram queimadas, eram mortos, tinham muitas coisas que aconteciam. Então, os patrões ofereciam armas e munição para os Ashaninka viajarem, ocuparem esses espaços. Os patrões negociavam os dias e o pessoal ia. Mesmo que não tivesse nenhum conflito ou contato direto com os outros povos indígenas, essa presença era como se fosse um recado: “Ó, os Ashaninka estão aqui, é bom se afastar para não ter conflito”. Isto também foi visto como uma forma de exploração dos Ashaninka pelos donos dos seringais.

Demarcação da Terra Indígena

Na década de 80, começamos a ouvir sobre o direito à terra e sobre os movimentos que estavam acontecendo. Meu avô, Samuel Piãnko, era a liderança e eu tinha uns 12 ou 13 anos. A FUNAI chegou no Amônia falando que estavam fazendo um levantamento para identificar se tinha povos indígenas na região. Daí começamos a nos envolver com este movimento, pois estávamos passando por uma situação muito difícil que era a exploração da madeira, da caça, da pesca. Tudo estava sendo explorado e estava ficando uma situação muito tensa, por isso resolvemos investir em criar uma terra. Naquele momento, esta foi uma decisão muito importante. Estavam demarcando outras terras naquela época, a gente foi se envolvendo com este movimento e ganhando mais força.

foto: Haroldo Palo Jr

Em 1992, foi feita a demarcação da terra e ao mesmo tempo a retirada dos não indígenas. Não teve nenhum conflito do tipo morte, mas teve muita ameaça até chegar o dia da demarcação, e depois a ameaça continuou quando foram retirados os posseiros. Mas a gente conseguiu. Até o fim da década de 90 conseguimos estabelecer uma relação boa com o pessoal da região e ficou mais tranquilo. Hoje, a gente é visto como uma comunidade importante no município.

Depois que a terra foi demarcada, criamos a aldeia ‘Apiwtxa’ que significa a união dos Ashaninka. Antes, a nossa estratégia era cada família viver em lugares diferentes para não chamar muito a atenção. Era uma maneira de não sermos tão perseguidos. Depois da demarcação, todo mundo se juntou e criamos a Apiwtxa.

Organização Social

Atualmente, meu pai, Antônio Piyãko, é o chefe, internamente, na aldeia. E as principais lideranças somos eu e meus irmãos. Tem muitas lideranças novas também, mas são de base comunitária mesmo. São chefes de família que estão juntos discutindo, orientando, repassando informações.

foto: Haroldo Palo Jr

A organização dos trabalhos não pode ser feita só por lideranças como nós, que estamos sempre viajando, articulando. É preciso que existam outras lideranças que recebam as informações e trabalhem e sustentem isto dentro da comunidade também. É claro que a gente vai lá, a gente participa, está junto, orienta, mas esse processo interno do dia a dia está distribuído na responsabilidade de todas as famílias, homens e mulheres. Os chefes de família também são responsáveis, eles prestam contas. Como a gente presta conta para eles dos projetos que a gente encaminhou, que são demandas da comunidade, eles também dizem pra nós aonde estão os problemas que a gente precisa trabalhar. E isso é muito bom.

A principal cidade que a nossa comunidade frequenta é Thaumaturgo, mas ninguém mora lá, com exceção do Benki, por conta do trabalho no Centro Yorenka Ãtame. Acho também que não tem nenhum Ashaninka do Breu morando em Thaumaturgo. Minha irmã Alexandrina e uma filha minha, Vanderléia, moram em Cruzeiro do Sul, porque estudam e trabalham no escritório da Apiwtxa.

Caça

Na minha aldeia, para caçar, meu povo usa muito a flecha para pegar desde nambu, peixe, macaco. A gente fabrica o arco e a flecha, é um equipamento importante de caçada. Tem flecha para matar peixe, tem flecha para matar aves, tem flecha para caça grande.  Então, tem uma definição muito clara do tipo de caçada que você vai fazer e o tipo de flecha que precisa.

Foi introduzida também na nossa comunidade uma arma, a espingarda, que é dos brancos, e que muitas famílias também usavam. Mas no início, usavam muito mais como uma arma para se defender. Então, a pessoa pegava um cartucho, descarregava e deixava a arma preparada, ficava o ano todinho com 4 ou 5 balas daquelas e só disparava quando tinha uma necessidade, uma emergência, para se defender de uma onça, por exemplo. E aí teve um momento que essa oferta foi muito grande, a própria FUNAI ajudava a levar um monte de espingarda para as aldeias. Nesse período, a espingarda já estava virando o instrumento de caça principal, quase todo mundo queria ter uma arma daquelas, porque era o meio mais seguro e mais rápido. Mas nesses últimos 10 anos passou a ser muito difícil adquirir uma arma e comprar munição, se antes a gente tinha umas 100 espingardas na aldeia, foi baixando pra 50, e hoje tem muito pouco. Então, o que o nosso povo está fazendo:  “Vamos deixar elas aqui no canto e começar a voltar pra flecha”. Como temos uma área rica ainda, nosso povo não tem tanto problema.

Agora, a única coisa que fica ruim pra gente é que, hoje, com o aceleramento dessa influência de fora, muita gente não quer ter mais aquela paciência. Quando a gente vivia num contexto onde só se comprava um sal, um terçado, uma coisa ou outra (e algumas famílias Ashaninka ainda são assim), então você tinha todo o tempo da sua vida pra caçar e pescar e não precisava se avexar pra nada. Hoje, alguns mantêm ainda esse jeito bem calmo pra caçar, pra pescar e não estão nem aí para esse mundo agitado, mas tem muitos deles que de manhã querem caçar, à tarde já querem fazer outra coisa, por exemplo, um artesanato para vender.

Mas a nossa arma principal ainda é a flecha e eu acho que ela vai continuar sendo por muito tempo, por conta dessa dificuldade de adquirir a arma. Por isso que a gente está trabalhando para proteger esse território, deixar ele bem seguro. No nosso plano de gestão também destinamos algumas áreas de refúgio, tanto para os peixes como para a caça. As caças precisam de um lugar para se reproduzirem e é uma maneira de manter o estoque. Nossa estratégia é aumentar os estoques para que as famílias não sofram dificuldade de pegar um peixe ou uma caça para comer.

Com relação às preferências, os Ashaninka sempre preferiram as caças menores. Durante muito tempo, era difícil alguém matar uma anta, porque as pessoas não queriam comer carne de anta, não tinham o hábito. A anta que se pegava era muito mais por encomenda de alguém de fora, para vender ou trocar por algumas coisas. Depois que deixamos de comercializar, de fazer essas trocas, as pessoas quase não matavam anta. O pessoal focava muito mais nas caças menores, porque eles achavam que se matar uma caça grande é muito difícil terminar de comer e não gostavam de ficar repetindo o mesmo tipo de comida muitos dias. O pessoal preferia matar uma caça pequena para variar a comida. Todo dia tinha uma coisa diferente e era caçado tudo na hora. Só quando estavam viajando que preferiam matar uma caça maior para aguentar mais dias. Mas de uns tempos pra cá, passaram a consumir tudo, inclusive anta. Hoje, a população aumentou muito, então tem que se preocupar sempre com os outros e com as coisas que estão rolando na aldeia. Tudo o que aparece na frente o pessoal pega, porque sempre leva para casa para dividir com os outros ou, por exemplo, no caso de ter uma reunião, é melhor matar uma caça grande.

Pesca

Nós também usamos muito a flecha para pescar: curimatã, surubim, peixe de couro, de escama, de casco. Foi introduzida também a tarrafa, mas a flecha é a principal. A tarrafa é boa porque você pega mais peixes, mas as famílias pequenas usam mais a flecha. Vai no lago, pega dois ou três peixes e traz, vai no rio e pega mais alguns.

foto: Haroldo Palo Jr

O pessoal também usava muito o tingui. Reunia umas 50 pessoas e ia para o igarapé, cada um levava um tanto de folha machucada, botava no rio, e aí cercava um trecho do rio e pegava. Todo mundo voltava pra casa com seu paneirinho cheio de peixe. Meu avô gostava de fazer isso, era uma festa grande, tomavam muita caiçuma. E faziam no lago também, pegavam quatro ou cinco canoas cheias de peixe. A gente costumava alternar, numa época botava tingui numa região, depois mudava para outra, pra não ficar repetindo.

Mas depois que demarcou a nossa terra, nós mapeamos todos os lagos que existem e fizemos um planejamento de uso. Em alguns lagos e igarapés definimos que não podia pescar de tarrafa ou botar tingui, mas nos outros podia. Só que agora nem isso pode mais, porque não resolve e espanta os peixes, então ninguém está fazendo mais isso. Foi uma decisão do grupo. Mas eu gostava de participar dessas pescarias, porque era um momento muito importante de juntar todo mundo. Eu até quero um dia voltar a fazer uma pescaria dessas para lembrar, era muito bom.

Agricultura

O roçado Ashaninka é feito sempre através da broca, depois a derrubada e por último a queima. Daí eles usam esse espaço por três ou quatro anos plantando variedades de macaxeira, banana, batatas. A macaxeira e a banana crescem e embaixo delas a gente aproveita a sombra e planta também uma variedade grande de batatas, abóbora, essas coisas. Também tem inhame, milho, mas os principais alimentos do roçado são a macaxeira e a banana.

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Ultimamente, com esse processo novo de sistemas agroflorestais, temos áreas reflorestadas que antes foram lugares de roça. Nos roçados foram plantadas muitas espécies de frutíferas e madeiras de lei que foram tomando esses espaços. Depois de dez anos, percebemos que essas áreas não podem mais ser mexidas porque, se não, estamos destruindo todo um trabalho que foi feito anteriormente. Então, o que estamos fazendo agora? Preocupados em não dificultar a vida das famílias, a gente definiu algumas áreas específicas para roçado. Por exemplo, você pega dois hectares por família, então no primeiro ano ela trabalha em meio hectare (isto é somente pra esse tipo de agricultura tradicional), daí depois ela vai passando pra outro meio hectare. Então, neste processo, quando ela chegar no último hectare, o primeiro já poderá ser utilizado novamente. E nesse sistema ele nem precisa fazer a queimada, porque essa mata fina que cresce, a ‘mata de capoeira’, você corta e apodrece rápido, vira até adubo. Então, isto já está sendo introduzido. É uma técnica bem importante, porque além de você estar se acostumando com hábitos novos, você também está medindo a sua necessidade e sem precisar derrubar um hectare que depois só será plantado um pedaço. Porque tem muitos casos assim, por isso estamos tendo esse cuidado. Com esta técnica, você descansa a terra um período e depois repete de novo para não ter que estar entrando na mata virgem e desmatando a floresta.

Língua Ashaninka

A língua Ashaninka não é um problema para o povo. Na Apiwtxa, cem por cento das pessoas falam a língua Ashaninka e tem uma parte da população que nem fala o português. Apesar do casamento do Antônio [atual liderança] com a dona Piti [não indígena], dentro da terra indígena, todo mundo fala a língua Ashaninka. Somente em alguns lugares a gente percebe que alguns Ashaninka perderam a língua, mas é somente aqueles que não foram criados na aldeia. Foram criados longe da língua e por isso não aprenderam. Isto eu já vi no Peru, mas no Brasil não conheço nenhum Ashaninka que não fale a língua.

Por outro lado, no Peru, a gente vê pessoas falando Ashaninka na cidade, às vezes andando na rua ou em algum restaurante. Isto quer dizer que tem muitas pessoas que migraram, que estão na cidade, trabalhando, mas que têm a língua guardada e em alguns momentos ela aparece. Eu achei isto bem interessante, já me aconteceu umas duas vezes. Uma vez a gente estava no restaurante falando na nossa língua e de repente o garçom também falou conosco em Ashaninka.

Então, a questão da língua não é um problema para o povo Ashaninka.  A criança nasce e aprende primeiro a língua Ashaninka. No Peru, a gente considera que o espanhol é a segunda língua e no Brasil é o português.

Educação Escolar

Nós temos uma escola, a Escola Samuel Piãnko, que é o nome do meu avô. E temos também uma sala anexa no Arara, onde tem um núcleo de famílias que estão lá cuidando de um ponto da terra indígena. Estamos pensando também em colocar uma outra sala anexa mais acima no rio, mas por enquanto só temos uma escola e um anexo. Nós estamos trabalhando até o Ensino Fundamental completo. Este ano as pessoas querem fazer o Ensino Médio, mas talvez isto não vá acontecer logo.

foto: Haroldo Palo Jr

A educação do povo Ashaninka se dá através da prática, ensinando às crianças as atividades do dia a dia na prática. A escola para nós não é para isso. A escola é para aprender a dominar um instrumento, uma ferramenta de trabalho, para facilitar a gestão do território, para conhecer os direitos e saber se comunicar com o mundo de fora. Ela serve para conhecermos outras realidades, outros povos, sem precisar sair lá de dentro. Mas ela não é necessária para você viver no seu mundo. Se um dia acabar a escrita, parar a escrita, a gente vai continuar vivendo do mesmo jeito. Ninguém depende disso. Agora, a gente precisa dominar alguns conhecimentos que são necessários para a nossa relação com o mundo dos brancos, para planejar o uso do território, para se defender e se fortalecer. A escola é mais para isso, não é um meio de sobreviver, a escola não vai ‘salvar’ a cultura dos Ashaninka.

As aulas são em língua Ashaninka, mas se aprende o português também, que é importante. A gente produz material didático próprio. Fazemos um esforço para trabalhar um conteúdo mais adequado à nossa realidade. Além do conteúdo do material, existe também toda uma abordagem na sala de aula sobre valores, sobre o território, sobre como utilizar os recursos – a nossa escola trabalha muito com a geografia. A aula não é só baseada na aplicação do material. O professor tem que ir além disto, tem que se comportar como uma liderança, com a preocupação pelo povo, com a preocupação pela história.

Desafios da Gestão Territorial E Ambiental

A gestão territorial e ambiental da terra indígena é feita por todos nós. E isto é muito importante, porque se fosse feita só por um, só pelo agente agroflorestal, não dava certo. Os Ashaninka sempre tiveram um cuidado com o território e não é de agora. Na história Ashaninka sempre se discutiu muito o território. Você chegava em uma determinada região e escolhia um rio, dois rios, três rios, então você dividia os grupos familiares para trabalhar aquelas bacias de rio. Aí vinha a questão da riqueza, se tinha muito peixe, caça, frutas, tudo isso era mapeado.  Você ia para uma região, a primeira coisa que o outro perguntava: ‘Como é lá? Tem caça? Peixe? Fruta?’ Território que não tinha isso, os Ashaninka não ocupavam, só passavam.

foto: Paula Lima

Hoje, a gente sabe que existe um território com outro recorte, com uma definição baseada em uma legislação, mas o nosso entendimento do território, da terra, continua o mesmo. Não é uma terra para vender, para alugar, é uma terra para viver. Então, é em cima dessa base [territorial] que se garante pro povo a sua continuidade, o repasse dos conhecimentos para as gerações, a questão espiritual, a questão das habilidades para a caça, coleta, construção.

Nós temos total domínio e muita clareza da importância do território, do tamanho que ele tem, da sua capacidade de oferta e do cuidado que a gente tem que ter. Por isso, todos os processos que desenvolvemos estão na linha da sustentabilidade. Quanto a isto estamos muito tranquilos, isto não é um problema para nós. Agora, se mudar o clima – e nós temos discutido muito sobre isso nesses últimos dez anos – pode gerar um problema sério para nós.

Primeiro, a gente tinha todo um estudo, um conhecimento que foi construído ao longo do tempo, de épocas, de um calendário das flores, por exemplo. Ele nos orientava sobre o momento certo para cada coisa que a gente fazia no decorrer do ciclo do ano inteiro para garantir a nossa agricultura, o período da coleta, das frutas, da pesca, da caça. Mas nos últimos anos a gente tem percebido que esse calendário está muito desregulado. Ele não consegue mais nos orientar, porque as chuvas estão vindo em tempos diferentes, o tempo da seca e da cheia está mudando, então começa a criar problema. Por exemplo, tem algumas espécies que não podem pegar chuva, então se na época que ela está florando vier uma chuva, a flor morre e não nasce o fruto. Tem outras espécies que, ao contrário, precisam da chuva, que nascem naquela época exatamente para receber aquela chuva, mas isto está mudando. Então, para nós, esta é uma ameaça muito grande, pois tanto mexe conosco, como mexe com o rio, com os peixes, com as caças. O movimento da caça passa a ser outro, o movimento dos peixes também passa a ser outro. O calendário de frutas que a gente esperava para coletar fica desregulado, algumas árvores deixam de produzir, ou então produzem bem mais que o necessário.  Isto para nós é um problema sério, porque a gente não sabe onde vai parar.

Outra ameaça que estamos enfrentando é que, apesar de todo o nosso esforço interno, de fazer um uso sustentável dos recursos – tudo manejado, cuidado, plantado, criado, trabalhando para enriquecer cada vez mais o território – a gente também tem no entorno das nossas terras uma política que não está muito alinhada com o que a gente está fazendo. Daí passa a ser uma ameaça quando as pessoas que vivem no entorno estão empobrecendo por conta de uma outra lógica de buscar ‘qualidade de vida’ através de dinheiro. Tem que fazer muito dinheiro, tem que desmatar, tem que criar gado ou tem que vender madeira ou carne de caça para poder viver na floresta. Isto para nós é muito ruim, porque por mais que tenha uma legislação, o Estado não acompanha, não fiscaliza, não dá alternativa para essas famílias e elas ficam lá vivendo desse jeito e criando problemas com a gente.  E quando a gente olha, elas são vítimas de um processo que nem elas mesmas sabem o quanto é grave, porque elas não têm uma educação, não têm uma orientação e findam sendo mão de obra de um cara que está lá na cidade e que está alimentando essa ideia, mostrando essa vida ‘fácil’ de tirar toda a madeira, juntar um dinheiro, dominar os outros. Isso também é uma ameaça grande para nós.

E a terceira ameaça muito grande que a gente enfrenta é o próprio Estado. O Estado, quando chega, vem para transformar, para mudar, não vem para apoiar um trabalho que está sendo feito como, por exemplo, o plano de gestão da nossa terra. Os municípios, o poder municipal, não dialogam com essas experiências. Eles trabalham numa lógica de domínio da população, de fazer com que a população seja dependente dele, porque a estratégia é se manter no poder administrando essa pobreza e ficar sempre se beneficiando dos recursos públicos que vão para aquele município. Se eles compreendessem o que estamos fazendo e tomassem a Apiwtxa como um modelo de desenvolvimento, incorporando a nossa experiência, talvez fosse mais barato e realizariam muito mais coisas do que trabalhar para desconstruir esse trabalho que a gente vem fazendo. Mas o poder público não está preparado. Eles estão alinhados com as grandes empresas e seus interesses.

O Estado brasileiro chega nessas regiões com toda essa infraestrutura de hidrelétricas, rodovias, ferrovias e entrega para as empresas fazerem o movimento, tornando todo mundo dependente desse sistema e sendo apenas mão de obra para esses poderosos que dominam a região. Aí o Estado sai e fica ali toda aquela estrutura montada que você acha que está beneficiando a população, mas até os benefícios que chegam para essas famílias não mudam muita coisa. Quem está se favorecendo mesmo são as empresas. E a população fica andando de ônibus, enquanto a saúde não está bem, a educação não está bem, não tem emprego e finda que a maioria da população só são mão de obra mesmo. Termina um ciclo e entra outro. Acabou o da borracha aí veio esse momento agora em que a gente depende desses grandes comércios decidirem quais os produtos têm valor no mercado. Quando você não tem um produto para trazer, você tem que oferecer mão de obra para sobreviver. E era para ser o contrário, se o pessoal está lá na floresta, era para ser feito um processo de manter eles lá.

Deveria se levar uma formação para essas pessoas para potencializar as suas práticas tradicionais, sabedoria tradicional, isto tem que ser valorizado, respeitado. Tem que levar uma política pública que venha a contribuir com a saúde e com a educação dessas pessoas. Mas não, eles fazem o contrário, eles tiram toda essa sabedoria, toda essa cultura, essa maneira de ser da floresta, e vão atropelando tudo. Isso é Governo Federal, é Governo do Estado, é Município, tudo operando na mesma lógica aliada com as empresas e assim vão criando o domínio.

Produção & Economia

Desde que demarcamos a terra, a nossa principal fonte de renda sempre foi a venda de artesanato. O artesanato foi o que garantiu o abastecimento da comunidade. Quando falo em ‘artesanato’ é tudo o que a gente produz de arte e que a gente conseguiu botar no mercado. Tem também um pouco de criação de galinha, pato, que algumas famílias vendem na própria comunidade.

Mais recentemente, com os sistemas agroflorestais, passamos a produzir muita fruta também que passou a ser vendida pra escola. Depois que a gente regionalizou a merenda escolar, a cooperativa passou a comprar a produção e transformava isso na merenda da escola. Uma família que tinha um pé de açaí plantado ao lado de casa, por exemplo, tirava o vinho e levava pra cooperativa. É uma fonte de renda bem interessante que tem gerado um movimento, uma economia, dentro da comunidade.

foto: Haroldo Palo Jr

E agora a gente está investindo também na criação de abelha, que era um projeto antigo, que a gente aprendeu as técnicas e aperfeiçoou. Também temos a intenção de trabalhar com quelônios. Já temos muita experiência com a criação de quelônios e agora já temos uma base para alcançar o mercado a partir desse trabalho que a gente faz. Outra linha é a psicultura. A gente está trabalhando para produzir 70 a 80 toneladas de peixe até o final do ano para, além do que a comunidade precisa para se alimentar, tentar gerar uma receita para as famílias que estão trabalhando nessa produção.

Para além desses produtos, estamos desenvolvendo um planejamento e estamos definindo outros tipos de produtos.  A própria imagem Ashaninka já é um produto. Ela está agregada ao artesanato e em várias outras questões que podem dialogar com o mercado. Porque a imagem Ashaninka sempre foi muito forte, ela foi bem vendida, bem colocada, e gerou uma renda para que os Ashaninka pudessem atender às suas necessidades. Hoje, com os serviços ambientais que nós estamos realizando, esta imagem se torna ainda mais valorizada. Porque se você olhar, você não está vendendo uma bolsa, simplesmente, você está vendendo uma imagem forte, da luta de um povo, de uma maneira específica de trabalhar. O que isto representa para nós e o que isto representa para o mundo? Então a gente está identificando esses produtos e aperfeiçoando essa estratégia. Por exemplo, o turismo – um turismo de base comunitária – pode ser um produto.

E estamos trabalhando também na questão de alimentos. Nós temos a ideia de transformar, de mudar toda essa região de Thaumaturgo para que ela seja abastecida por um produto orgânico. Esta é uma grande luta nossa. Com isso consolidado, você consegue, inclusive, fazer com que o dinheiro da bolsa família e desses benefícios sociais sejam investidos em outras coisas, como na compra desses produtos, que vão gerar renda interna, ou na compra de ferramentas, ou outras coisas que eles precisam. Porque, hoje, eles estão trocando dinheiro de bolsa família por guaraná e bolacha na cidade, porque o comércio está cheio disso, só oferece isso.

Está sendo um problema sério essa questão do bolsa família. A gente segurou, resistiu, até um certo momento, mas vimos que a saída também não seria segurar. A gente consegue ver, hoje, depois de dois anos que os Ashaninka estão recebendo bolsa família, que isto está causando uma desestruturação das famílias. As famílias vão para a cidade receber, aí quando chegam ficam sabendo que o pessoal do bolsa família só vem na semana que vem, daí ficam a semana todinha acampados na praia. Depois ficam sabendo que só daqui a 15 dias. O município não tem banco, quando chega, cai o sistema.  Às vezes o seu cartão não está pronto.  Isto tem causado um transtorno muito grande nas famílias. Então não vejo isso como uma fonte de renda, vejo isso como uma fonte de problema.

Uma coisa que mudou na aldeia a partir do bolsa família foi a compra de motor. A primeira coisa que o pessoal fez com esse dinheiro foi comprar um motor e, hoje, toda casa tem um. Então, uma parcela grande desse dinheiro que eles ganham vai para gasolina que custa quase R$ 6,00 /L. E aí o pessoal ganha o bolsa família para abastecer o motor. Se não tivesse o motor, não ia precisar da gasolina. Então, o que está acontecendo: compra o motor e o dinheiro do bolsa família só dá para comprar a gasolina e um pouquinho de comida, então é só esse movimento, não passa disso. Daí gasta a gasolina para ir na cidade pegar o bolsa família e quando quebra uma peça do motor, tem que trabalhar para comprar outro motor.  E quem não tem motor continua vivendo do mesmo jeito, vive bem, tranquilo…

Quem sabe, se isto fosse melhor organizado, se a gente conseguisse mudar o foco, esse dinheiro do bolsa família, que está indo lá para os comércios de Thaumaturgo, pudesse ser destinado para a aquisição de outras coisas. Afinal, a finalidade é fortalecer a família. Temos que estudar um meio para ver como esse recurso pode ser investido dentro da própria comunidade, sem eles terem que ficar indo lá na cidade comprar comidas industrializadas. Sim, a cidade é próxima da terra indígena, vai e volta, mas estão se endividando de tanto ficar subindo e descendo o rio. Quando liberamos a bolsa família na aldeia, eu não pensei que traria tanto problema, pois o município é pertinho, mas o problema é o sistema que é muito mal conduzido. E hoje, inclusive, já tem gente com dificuldade de alimentos. Esse é um problema seríssimo.

Mas mesmo com a bolsa família, a principal fonte de renda dos Ashaninka do Amônia continua sendo o artesanato e os outros produtos. A identidade Ashaninka ainda é o nosso principal produto que consegue sustentar todas as nossas necessidades.

Projeto de Futuro

Se daqui a dez anos a gente conseguir segurar, do ponto de vista de um povo, os conhecimentos, as tradições, o modo de vida, do jeito que está hoje, já vai ser uma conquista muito boa! Se a gente conseguir manter a qualidade de vida que a gente tem hoje, que as pessoas não devem a ninguém, estão caçando de arco e flecha, estão ensinando seus filhos, têm tempo pra viver, pra comer, pra passear. Sim, às vezes tem uma situação difícil de saúde. Mas se daqui a dez anos a gente conseguir ter essa qualidade de vida que tem hoje, já é uma conquista muito grande. A gente está trabalhando para melhorar, mas se mantiver isto, eu acho que já é muita coisa.

Hoje, a gente sofre uma pressão muito grande sobre o território. A gente não sabe o que pode acontecer mais pra frente, se a gente vai continuar a ter esse rio limpo com peixe, ou se lá no Peru de repente vão estourar um poço de petróleo e contaminar nossas águas. Se isso acontece, a nossa vida vai ser totalmente diferente.

foto: Haroldo Palo Jr

A gente vive um momento muito bom, não tem violência, não tem álcool, não tem ninguém envolvido com contrabando de cocaína, narcotráfico, madeireiros.  Manter um povo dessa maneira, vivendo em uma região dessas, não é fácil. Você ter uma vida sadia é muito difícil, porque a pressão do narcotráfico numa região dessas é muito grande. A pressão dos madeireiros é muito grande, recrutando mão de obra, levando bebida, levando os vícios que estão na cidade. Você vê a nossa comunidade sem essas coisas e com muito orgulho de estar ali nesse espaço, sem estar se prostituindo. Agora, nós precisamos trabalhar com o entorno em todos esses sentidos, porque chega uma hora que se todo o entorno estiver podre, vai afetar diretamente a gente.

Então, a gente está buscando ver o povo da floresta como um todo. A gente sabe que cada povo tem os seus problemas locais internos na terra de cada grupo, seja os Ashaninka ou qualquer outro povo. A gente sabe que cada um está lutando por dias melhores, por ter segurança, saúde, educação, desenvolvimento sustentável, qualidade de vida. Todo mundo está lutando pra isso. Mas eu acho que pra você fazer um processo de mudança é preciso que a gente ataque isso dentro de uma estratégia unificada, porque de maneira isolada às vezes somos engolidos e não temos força para enfrentar esses problemas.

Estamos procurando começar a pensar esse coletivo a partir das comunidades Ashaninka. Fizemos uma reunião grande lá no Peru, envolvendo todas as terras indígenas do Peru, para discutir a importância de a gente criar uma estratégia junto para defender e proteger os nossos territórios, a nossa cultura e os nossos conhecimentos.

Também estamos trabalhando com as comunidades extrativistas no Alto Juruá para fortalecer elas na gestão do território, pensando uma produção sustentável, pra que elas possam sair do sistema de escravidão. Elas foram dominadas pelos patrões da borracha e agora são escravos da política, são escravos de uma série de questões que estão acontecendo ali na região. Eu acho que se a gente conseguir unificar todos dentro de uma linha de trabalho, a gente se fortalece. Isto não é para dominar, é para fortalecer, para que a gente possa estar protegido a partir de uma ação distribuída dentro de vários grupos. Nós estamos fazendo um esforço grande neste momento de estar trabalhando essa questão da gestão territorial e ambiental na região onde vivemos.

Entrevista realizada em fevereiro de 2016