Povos Jaminawa e Manxineru em treinamento de combate ao fogo na TI Mamodate (foto: Frank de Melo Silva)

Por Stoney Pinto

Não é novidade que no Acre e em toda Amazônia o uso do fogo é um instrumento muito utilizado para realizar limpeza de áreas com a finalidade de prepará-las para desenvolvimento de roçados. Outro fato inegável é que o fogo também está presente principalmente no desmatamento, grilagem e também na abertura de pastos para agropecuária. O fogo junto com fatores climáticos, associados a ação do homem, tornaram-se a fórmula perfeita para devastação das florestas. De acordo com relatos indígenas as florestas têm ficado mais secas e vulneráveis aos incêndios e a explicação para este evento é que seja uma influência direta do aquecimento global, a mudança climática mais evidente.

No Acre, estamos entrando agora no período mais seco do ano, o famoso verão amazônico. Somente nos primeiros 4 meses de 2020, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o aumento do desmatamento com relação ao mesmo período em 2019 foi de 157%. E de acordo com o Relatório de Queimadas do Acre do governo do estado já foram registrados este ano 128 focos de calor no estado. É neste momento que ocorrem as pequenas e grandes queimadas que podem resultar em devastadores incêndios florestais, que para além de todo prejuízo ambiental e social, pode agravar os resultados da pandemia, devido a fumaça que cobrirá os municípios e também as Terras Indígenas (TIs).

Nesse contexto, o uso do fogo para fins de limpeza de áreas deve ser feito utilizando técnicas de manejo muito bem definidas, para que o mesmo não saia do controle e venha ocasionar um incêndio florestal. Habitualmente, quando se perde o controle, as chamas adentram as florestas causando prejuízos imensuráveis para todo o ecossistema.

Os números do INPE e os registros de queimadas no Acre nos mostram que o cenário tende a piorar, visto que em termos de política de combate e controle do desmatamento na Amazônia brasileira, os órgãos que promovem a política ambiental estão totalmente fragilizados e seus gestores empenhados na flexibilização das normas ambientais. Entretanto, temos agora um agravante:  a COVID-19, uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. A pandemia já infectou mais 1 milhão de pessoas no Brasil e de acordo com dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) até o dia 10 de julho foram 9.936 casos confirmados de COVID 19 em indígenas de 102 povos. No estado do Acre são 9 povos atingidos e 19 óbitos, conforme monitoramento realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) com a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC).

Com a crítica situação da pandemia na Amazônia brasileira, faltam ações estratégicas para que os moradores dessas áreas naturais protegidas pudessem estar organizados para prevenção e combate a incêndios florestais e quem sabe assim, reduzir problemas respiratórios agravados pela fumaça, que podem ser complicadores da doença COVID-19. Neste período de queimadas há grande aumento de casos de asmas e bronquites, de acordo com dados da Secretária Municipal de Saúde de Rio Branco, no ano de 2019 foram mais de 19 mil atendimentos só na capital, isso sem contar as pessoas que não acessam o Sistema Único de Saúde (SUS).

Prevenção de queimadas nas TIs

Em  2019 CPI-Acre iniciou, junto com associações e lideranças das Terras Indígenas (TI) Mamoadate (vale do Rio Acre) e Katukina – Kaxinawa (Vale do Juruá), com apoio financeiro do WWF Brasil e da Rainforest Foundation Norway (RFN), um movimento de treinamento e equipagem de indígenas para que estejam preparados para combater incêndios em seus territórios e no entorno, e ainda manejar o fogo em suas áreas de roçado como forma de prevenção.

Na Terra Indígena (TI) Katukina – Kaxinawa vivem os povos Huni Kuĩ (Kaxinawa) e Shanenawa, a comunidade percebe o aumento das queimadas pela intensa fumaça. A TI é próxima a sede do município de Feijó, o que a torna altamente vulnerável às queimadas de fazendas vizinhas. O risco de o fogo invadir o território indígena é constante, pois não há aceiros e nem linhas de contenção de incêndios. Além disso, Feijó liderou em 2019 o ranking entre os municípios com a maior área de desmatamento e degradação, com cerca de 90 km² entre os meses de julho, agosto e meados de setembro (DETER/INPE). O mesmo sistema de alertas do INPE mostra que Feijó continua no topo dos municípios que mais desmataram em 2020 (ver gráfico).

 

 

Já na TI Mamoadate, localizada no município de Assis Brasil, vivem os povos Manxineru e Jaminawa. A TI vem sofrendo com a entrada de pessoas estranhas além da crescente atividade para retirada de madeira em seu entorno. Em setembro de 2019 foi encaminhada uma carta das lideranças ao Ministério Público Federal (MPF) denunciando a presença de madeireiros e o desmatamento realizado no entorno da TI, cobrando providências do poder público.

Como parte desse novo movimento de prevenção e combate a incêndios nos territórios indígenas e seus entornos, foram realizados em março de 2020 nestas duas TIs, dois cursos de uso, manejo do fogo e prevenção e combate a incêndios florestais, ministrados por Pedro Paulo Xerente, um brigadista indígena com larga experiência no Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais ( Prevfogo/Ibama). Na ocasião foram distribuídos 133 instrumentos (bomba costal, rastelos, enxadas, foices, abafadores) para serem usados nas ações de preparação de roçados, nas técnicas novas de prevenção e também, para caso ocorra, no combate a incêndios florestais sendo a iniciativa coordenada com as atividades de gestão e proteção territorial.

Está sendo prevista ainda, a ampliação dessas ações para outros territórios. Em primeiro plano a TI Humaitá receberá um intercâmbio de troca de experiências com indígenas Manxineru e Jaminawa e também um kit com equipamentos para preparação dos roçados e combate a incêndios. Paralela as ações na ponta, o Setor de Geoprocessamento (SEGEO) da CPI-Acre está realizando monitoramento geoespacial das TIs e seus entornos por meio de dados secundários, e é esperado que essas informações orientem o planejamento nas duas TIs para uso do fogo, prevenção e combate a incêndios florestais. Outra ação complementar é a articulação dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs) para a conscientização comunitária sobre o manejo dos roçados e uso do fogo em suas respectivas TIs, coordenando atividades de proteção do território, segurança alimentar e organização social.

No Acre, anualmente uma parcela da floresta é derrubada e queimada e a cultura do fogo persiste. A vanguarda dos povos indígenas em se prepararem para esses episódios é fundamental para a redução dos impactos causado pelo uso desenfreado do fogo, tanto no aspecto ambiental quanto no aspecto da promoção de saúde e do bem-estar. É necessário reconhecer os esforços para construção de uma estratégia que abriga ao mesmo tempo a manutenção dos territórios, preservação das florestas, tão essenciais, e a melhoria da qualidade de vida. Neste aspecto os povos indígenas das TIs Mamoadate e Katukina- Kaxinawa estão preparados para preservação dos ecossistemas, que correm o risco de serem consumidos por incêndios florestais, e também para contribuírem com a redução dos danos à saúde causados pela fumaça, as doenças respiratórias que tanto vem assombrando indígenas e não indígenas

Os grandes desmatamentos incêndios e invasões que ameaçam a segurança dos povos indígenas devem ser combatidos pelo Estado brasileiro, como responsabilidade de defender a Constituição Brasileira, e não um projeto de desenvolvimento econômico totalmente avesso a proteção ambiental. 2020 está sendo marcado como o ano em que os territórios indígenas estão sendo invadidos por garimpeiros incentivados diretamente pela presidência da república. Não podemos permitir que no meio de uma pandemia de magnitude mundial os povos indígenas e populações tradicionais tenham seus territórios invadidos, florestas devastadas, direitos violados e suas vidas colocadas em risco.

 

Consultas:

https://coiab.org.br/

https://coronavirus.saude.gov.br/

http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5465

http://sema.acre.gov.br/wp-content/uploads/sites/20/2019/10/Relat%C3%B3rio-de-Queimadas-20190628_N018.pdf