Equipe Huni kuĩ responsável pelo monitoramento e vigilância – Fotos: cedidas pela equipe Huni kuĩ de vigilância e monitoramento da TI Kaxinawá do Rio Humaitá

Paula Lima Romualdo*

O histórico da presença de índios isolados no rio Humaitá é antigo, resistiram a todas às correrias e incursões da empresa seringalista, caucheira e demais situações de extermínio e ameaças à manutenção de seus modos de vida e cultura. As ações desenvolvidas pelas comunidades da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, em parceria com a Frente de Proteção Etnoambiental Envira e Comissão Pró- Índio do Acre, proporciona aos povos isolados uma maior tranquilidade e um território livre de grandes ameaças. A consequência foi o aumento considerável de suas populações. Nos últimos 25 anos, a população total dos isolados praticamente dobrou. Suas malocas e roçados avistados nos sobrevoos de 1989 eram pequenos. Nos sobrevoos de 2010 e 2013 foram vistos grandes roçados e um número maior de malocas, o que assegura esta afirmação.

Por outro lado, o aumento populacional gerou maior pressão sobre o entorno, na busca por ferramentas de metal e outros materiais nas terras indígenas e nas comunidades não indígenas. Em 2009, iniciou-se um ciclo de oficinas sobre povos isolados nesta TI e nas comunidades de moradores não indígenas dos rios Iboiaçu e alto Muru. Foram desenvolvidas pela Comissão Pró-Índio do Acre em parceria com a Frente de Proteção Etnoambiental Envira e o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.

As cabeceiras desse rio, dentro da terra indígena e as terras que dividem as águas dos rios Humaitá e Envira são de habitação permanente dos isolados. Subindo o rio Humaitá, nas áreas de caçadas sazonais dos Huni kuĩ, a distância da beira do rio às malocas dos isolados é muito pequena, bem como a das malocas dos isolados para as aldeias Huni kuĩ, principalmente as localizadas a montante do rio (CPI-Acre, 2013).

Iniciativas protagonizadas pelas comunidades da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, para a proteção dos índios isolados, são desenvolvidas desde 2009, tendo suas estratégias inovadas ao longo destes anos. A Casa de Brinde que hoje funciona com uma base de monitoramento e vigilância, foi uma alternativa bem sucedida aos saques praticados pelos isolados. O que se evidenciou a partir desta estratégia, foi a redução das ocorrências de saque às comunidades indígenas e do entorno.

Tapagem dos caminhos

Envira retirada pelo grupo de isolados

Outra iniciativa para a proteção é a proposta de criação do Corredor Territorial que corresponde a uma das áreas de maior biodiversidade do mundo dos dois lados da fronteira Brasil/Peru. Esta região incorpora importantes Áreas Naturais Protegidas, como Parques Nacionais, Reservas Territoriais para Povos Isolados, Terras Indígenas, Comunidades Nativas e Unidades de Conservação. A parte brasileira, entende-se pelas TIs Kaxinawá Ashaninka do Rio Breu, Kaxinawá do Rio Jordão, Kaxinawá do Baixo Rio Jordão, Kaxinawá do Seringal Independência, Alto Tarauacá, Kaxinawá do Rio Humaitá, Kulina do Rio Envira, Kampa e Isolados do Rio Envira, Jaminawá/Envira e Rio do Alto Envira. A proposta de reconhecer oficialmente uma terra indígena para isolados nos altos rios Muru e Tarauacá pode garantir a efetiva proteção destes grupos; fortalecer a vigilância, monitoramento e fiscalização de suas áreas de perambulação e evitar os confrontos armados envolvendo moradores não indígenas. Nesta área, os recursos naturais não podem ser manejados pelas comunidades do Humaitá, sendo área de uso exclusivo dos isolados (Nova Cartografia Social da Amazônia, 2014).

“Somos o povo Huni kuĩ e moramos na Terra Indígena (TI) Kaxinawá do Rio Humaitá. Nossa terra indígena têm 127.383 hectares de área demarcada que está distribuída em cinco aldeias. Temos aproximadamente 500 pessoas morando na TI e no seu entorno temos o rio Iboiaçu, o rio Muru e suas comunidades ribeirinhas. Desde muito tempo compartilhamos nossa terra com um grupo que ainda vive em isolamento voluntário, conhecido por nós como “brabos”. É um povo nativo, que ainda vive com a sua cultura 100% no meio da floresta, dependem só dos recursos naturais e tem um outro modo de viver na floresta. O que acontece é que eles não querem contato até os tempos de hoje mas, durante um tempo eles estiveram buscando ferramentas nas nossas aldeias, como terçado, machado, panela e outros.

Durante a época do verão, começa a perambulação dos isolados nas regiões que eles já conhecem. Essas áreas são principalmente dentro da nossa TI e no entorno, por exemplo no rio Muru, rio Iboiaçu, rio Douro lá no Xinane, tudo isso forma as áreas de perambulação desses povos em isolamento. Há um tempo recente, chegava o verão, eles começavam a perambular atrás das nossas ferramentas e assim começamos com ações para poder evitar que eles estivessem saqueando. A estratégia deles era a seguinte: eles chegavam nas casas das aldeias quando não tinha ninguém e pegavam o que pudessem levar. Isso para nós não era legal. Então o que começamos a fazer é deixar algumas coisas, principalmente as que eles estão mais precisando, em uma “Casa de Brinde” que a gente construiu. Esse local é um ponto estratégico de vigilância e monitoramento da presença dos isolados e até mesmo das invasões que estão acontecendo no fundo da nossa terra.

Este local foi uma iniciativa do nosso povo, a partir da nossa necessidade criamos a casa que tem funcionado. Construímos uma casa simples, com recursos naturais mesmo, com coberta de palha e com madeira roliça. Lá estamos implantando um sistema agroflorestal, e é um ponto estratégico de vigilância e monitoramento sobre a presença dos isolados. Estamos também construindo um roçado com plantio de banana, macaxeira, de cana, etc… tudo isso para nós Huni kuĩ alimentarmos quando for fazer alguma ação de monitoramento e até mesmo para os isolados terem alimentação por lá, essa é a nossa intenção. Tudo isso desenvolvemos por conta própria e contamos com o apoio de parceiros como Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) e a Frente de Proteção Envira que vem nos fortalecendo na logística e nas ações de vigilância e monitoramento. Atualmente buscamos estruturar cada vez mais este posto e construir uma casa maior e com mais segurança. Precisamos ter um transporte mais adequado para nossas expedições e uma comunicação, como por exemplo um radioamador, internet; tudo isso para facilitar o trabalho.

Essa é uma iniciativa muito importante para a nossa terra, para o nosso povo, para nossos parentes isolados, para nossos vizinhos do entorno, para o Brasil e toda humanidade. Queremos divulgar isso para o mundo, para que todos saibam que os isolados existem e que estamos aqui para protegê-los. Esses povos ainda não sabem comunicar por eles mesmos, mas nós ajudamos falar por eles e isso acontece porque estamos acompanhando o trabalho de perto e sabemos o que está acontecendo. Eles vivem em constantes ameaças.

Antigamente a gente vivia completamente traumatizado por conta da presença dos isolados e agora está mudando e não é mais assim. O que mais deixa a gente assustado, preocupado e traumatizado atualmente, é a presença das facções criminosas na nossa região, que nos roubam desde o município de Tarauacá até quando estamos viajando pelo rio Muru. A presença das facções também é uma grande ameaça para os índios isolados e se a gente não buscar uma solução junto as autoridades competentes, podem acontecer conflitos muito fortes na área de fronteira do Brasil com o Peru e esses povos chegarem a ser massacrados. Para saber que existe esse problema e que estamos buscando alternativas junto aos nossos parceiros, precisamos de mais apoios para o fortalecimento das nossas iniciativas e principalmente que o governo brasileiro assuma suas responsabilidades de proteção das fronteiras e dos povos tradicionais que nelas vivem. Nós Huni kuĩ estamos fazendo a nossa parte.

Dentro do planejamento das nossas ações de vigilância e monitoramento, procuramos realizar viagens de dois em dois meses no verão para o igarapé Tarayá, que é onde construímos o posto de vigilância e monitoramento. Já no inverno, fazemos viagens de três em três meses. No ano de 2018, fizemos uma no começo do ano no mês de janeiro. Lá limpamos o local que já estava serrando, fizemos o plantio de açaí, pupunha, abacaxi, macaxeira, cacau, urucum, limão e banana. Além dos plantios, fizemos nossa expedição para acompanhar os vestígios dos isolados por lá. Depois no mês de maio, foi uma equipe de Huni kuĩ composta por vários membros das aldeias como professores, agentes agroflorestais indígenas, lideranças e estudantes para fazer um trabalho coletivo e participativo. Foi quando conseguiram ver alguns vestígios da andança dos isolados. Nesse começo de verão, encontramos casco de tracajá, envira retirada, tapagem de caminho e vimos o rastro dos isolados. A tendência é ficar mais intensa a presença deles nesse verão, porque é o tempo que eles andam pescando e caçando.

Na Casa de Brinde temos a estratégia de deixar terçado, machado, panela e enxada, que são principalmente esses quatro itens de maior interesse deles. Nesses tempos começamos a observar o que eles levaram e que deixaram algumas coisas, tipo enxada que não é muito preferido deles, já o resto eles levaram tudo. Nas aldeias, eles começam a andar a partir de junho até setembro, em outubro já começa a diminuir porque inicia o inverno, começa a chover. Eles andam desde a primeira aldeia Vigilante até a última aldeia Novo Futuro. Quando eles chegam nas aldeias, as pessoas escutam eles imitando alguns animais, vê os vestígios de rastro que eles deixam e tapagem de caminho. Percebemos a cada ano que a presença do grupo está aumentando, por causa da pressão na fronteira que intensifica, com os narcotraficantes, madeireiros ilegais e facções criminosas. Antigamente eles deslocavam mais na cabeceira da TI, próximo da última aldeia e agora eles já andam em todas.

O deslocamento dos isolados também ocorre nas áreas dos ribeirinhos do entorno, no rio Muru e rio Iboiaçu. Antes os ribeirinhos descreviam os saques e pensavam que eram até os parentes Huni kuĩ que andavam mexendo. Mas depois eles perceberam que até a TI estava sofrendo com os saques. Na ocasião, começamos a realizar oficinas de informação e sensibilização sobre povos isolados. Isso ajudou muito na conscientização das pessoas, sobre a forma de entender e pensar como lidar com essa situação. Temos os isolados como um grande aliado, são nossos grandes parceiros e queremos colaborar nesse trabalho para a sua proteção, valorização e respeito.

Para concluir esse nosso Papo de Índio, queremos deixar claro que estamos trabalhando pelo nosso empoderamento, pela nossa autonomia e queremos ser os verdadeiros protagonistas desse trabalho, no contexto do monitoramento e vigilância da TI e na proteção dos isolados. Quando chegar o tempo deles quererem fazer contato, a gente já vai estar preparado para recebê-los”.

Agente Agroflorestal e liderança Nilson Saboia- Tuwe Huni kuĩ

* Assessora técnica do Programa de Gestão Territorial e Ambiental da Comissão Pró-Índio do Acre.