foto: Giulia Pedone
Joaquim Mana (foto: Leilane Marinho)

Nome  Joaquim Paulo Adelino Kawinawá, Doutor em Linguística e professor Huni kuĩ

Nome indígena  Mana

Huni Kuῖ quer dizer que é o próprio povo, somos nós mesmos. Porque Huni é a denominação de ‘homem’, ‘gente’ e kuῖ quer dizer que é esse mesmo, é o verdadeiro. E a palavra kaxinawa veio durante os contatos entre nós. Os parentes sempre têm esse costume de ver alguém com aquela característica de roupa, de alimentação, de cultura, de língua – “Então se fazem isso é o povo tal” – aí eles deram esse nome Kaxinawa para nós. Kaxi é morcego, nawa é povo.

Tem duas versões dessa história. Imaginamos que nos deram esse nome porque o nosso povo comia os parentes mortos, não todo mundo, mas alguns. Então quem suga sangue, come carne, é morcego, é kaxi. E a outra versão é que em algum momento os Huni Kuῖ estavam matando morcego quando alguém de outro povo chegou e começou a fazer pergunta. Ele respondeu que estava matando morcego, kaxi, daí a pessoa entendeu que era o nome do povo e falou: ‘Então deve ser Kaxinawa’. Esse nome ficou como um registro, mas atualmente a gente tem falado que Kaxinawa é um nome pejorativo e que nós somos Huni Kuῖ.

Atualmente, no Brasil, o povo Huni Kuῖ tem uma população de cerca de 14 mil pessoas, divididas em 5 regiões ou municípios, 12 terras indígenas e 104 aldeias (FEPHAC, 2019). Existem Huni Kuῖ também no Peru, onde há uma população de cerca de 2419 pessoas. Nessas 12 terras indígenas [Brasil] meus parentes estão trabalhando seus projetos da vida social huni kuĩ, pois entendemos que durante o contato tivemos muitas perdas no espaço físico, na cultura e na língua.

História

Segundo as histórias que os mais velhos contam, nasceu primeiro uma pessoa chamada Ixã e foi a partir dele que surgiram novas pessoas e famílias. Ixã era sozinho e por se sentir assim reuniu diversas cabaças, mũti, e começou a fazer sexo com os mũti gerando várias crianças. Uma dessas crianças eu considero como se fosse um gênio, pois desde muito pequeno já começou a mostrar o que fazer, como fazer, que música cantar e tudo o que é necessário para a vida social do povo Huni Kuῖ. Nós chamamos essa criança-gênio de Shama yabi txana, aquele que desde pequeno já sabia, entendia, fazia. Foi ele que nos mostrou vários caminhos por onde nós podemos sobreviver e um deles foi nossa divisão entre Rua e Inu que determina como deve ser nossa forma de casamento e nossos nomes próprios.

Durante o contato, essa divisão se perdeu muito e continua se perdendo. Por exemplo, hoje acontecem casamentos entre Rua com Banu, Inu com Inani, ou seja, casamentos dentro da mesma divisão; antes, isto não era permitido. O motivo disso se originou nas Correrias. Por conta da invasão dos Nawa, as famílias foram obrigadas a se localizar em espaços diferentes e como havia a necessidade de repovoar, a forma tradicional de casamento foi se perdendo.

Professores Norberto Tenê e Tadeu Siã (foto: Aitor Salsamendi)

Eu pesquisei para entender por que é que nós, Huni Kuῖ, estamos espalhados em vários rios e terras Huni kuĩ e pude perceber que foi por conta dessa invasão, desse contato, dessa correria que a gente começou a se dispersar.

Os mais velhos me falavam que antes a gente morava em um shubuwã [casa de moradia coletiva] na beira de um rio muito largo que tinha o nome de: Kushu pu inia. Kushu é uma ave, o cujubim. Esse pássaro não conseguia atravessar esse rio, quando já ia chegando do outro lado, ele caía. Por isso que deram ao rio este nome de Kushu pu inia. Este rio deve ser o Amazonas, o Solimões ou o Ucayali. Tenho a impressão que foi dali que a gente começou a subir os rios até chegar aqui no Acre, onde nos concentramos mais no rio Envira que na nossa língua se chama Bariya que quer dizer rio do sol. Até essa época, a gente ainda convivia tudo junto, mesmo fugindo.

Depois vieram outros problemas, como quando mataram um seringalista chamado Patrício com quem não se deram bem. Na nossa compreensão, foi a partir desse momento que a gente começou a se dividir pelos vários rios. “Matamos, agora os parentes dele (Patrício) vão nos atacar”. A gente teve que fugir para não ser morto.

Então foi quando eles começaram a se dispersar: um bocado foi pro rio Jordão, na cabeceira do rio Tarauacá, outros ficaram mesmo no rio Envira, outros foram pro Muru, outros vararam pro rio Purus e ainda outros foram pra cabeceira do rio Curanja, com a intenção de que lá ninguém ia chegar. Mas chegando lá já tinham outros invasores que eram os caucheiros. Então foram contatados, começaram a trabalhar e hoje ainda vivem lá. Eles são considerados peruanos só porque moram no país do Peru, mas eles são Huni Kuῖ como nós, usam a mesma língua, têm a mesma cultura, fazem as mesmas músicas. Vivem em outro país, mas a cultura é a mesma nossa.

Demarcação das Terras

A demarcação das terras huni kuĩ foi uma retomada boa. Eu acho que quem mostrou esse caminho foi o txai Terri, quando ele começou a andar pelas aldeias em 1975. Os povos sabiam que eles eram os donos da terra, mas não sabiam como mostrar isso. Foi a chegada do txai Terri que fez os povos começarem a entender que poderiam ter sua terra garantida, foi assim que começou esse movimento.

foto: Giulia Pedone

Eu me lembro que no final dos anos 70, o Sueiro, uma das lideranças daquela época, começou a chamar outros Huni Kuῖ e outros povos para reivindicarem a terra junto à FUNAI. Em 1985 nós fizemos a autodemarcação da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão, liderados pelo Sueiro e o Getúlio. A ideia era fazer a demarcação onde a gente queria que fosse a nossa terra. Naquela época eram seis seringais, cada seringal se organizou, montou sua equipe e começou a fazer as picadas. Nós fizemos isto em três meses, só depois a equipe da empresa contratada pela FUNAI nos encontrou e fez a demarcação física da TI Kaxinawá do Rio Jordão.

Naquele tempo, a FUNAI tinha a ideia de demarcar uma área e levar todas as famílias que ficavam fora para dentro, como aconteceu no Jordão (TI Kaxinawá do Rio Jordão) e Humaitá (TI Kaxinawá do Rio Humaitá). Por isso, o seu Jorge, que vivia no rio Tarauacá e hoje é liderança da Terra Indígena Kaxinawá da Praia do Carapanã, foi convidado pelo velho Sueiro para ir para o Jordão. Mas naquela época não tinha como levar tantas pessoas e materiais, porque ninguém tinha barco, os barcos que tínhamos eram pequenos. Seu Jorge conta que ficou esperando anos e anos e ninguém vinha buscá-lo.

Certo ano, chegou a equipe da empresa Paranacre que havia comprado aquela terra e falou para ele: “Bom, agora você pode continuar vivendo aqui, mas com esse espaço de 100 hectares”. A área só correspondia à beira do rio onde ele morava, enquanto o lugar que ele pescava, fazia roçado e caçava ficou fora. Por isso ele pensou: “Vou procurar meu direito porque foi aqui onde eu nasci, aqui meu povo morou e morreu”. Daí ele procurou o txai Terri e o Sueiro para fazer essa mobilização. Naquele tempo, dizia-se que a terra só poderia ser demarcada se tivesse mais indígenas do que seringueiros e o problema era que naquele momento os seringueiros eram muito mais numerosos. Por essa questão, em 1990 eu me mudei para o Carapanã, para ajudar o seu Jorge a aumentar a população e criar uma escola. E assim foi acontecendo com todas as terras onde os Huni Kuĩ viviam e hoje temos 12 terras indígenas regularizadas e 1 em processo de identificação. O problema, hoje, é que a população Huni Kuĩ continua crescendo e a terra é limitada, não cresce mais.

A Língua Hãtxa Kuĩ e a Educação Escolar

A língua para os Huni Kuĩ ou para qualquer outro povo que é sociedade oral é a identidade principal, pois é através da língua que você conta seu mundo e esse mundo é que faz você falar a língua. Então, língua, cultura e conhecimento não podem se desvincular e quando desvincula a cultura se renova, mas não é a cultura original do povo. Por exemplo, no caso dos Huni Kuĩ, dentre as 12 terras Huni kuĩ, em metade delas somente os mais velhos falam a língua oral Hãtxa kuĩ.

foto: acervo CPI-Acre

Eu entendo que o contato fez com que perdêssemos vários de nossos conhecimentos e, hoje, observando esta situação, estamos nos organizando para pensar um programa de Educação Escolar Huni Kuĩ para que o conhecimento desses sábios não se perca de vez e que ele seja ensinado no espaço da escola. Tenho percebido que os jovens precisam desse incentivo, porque estão começando a fazer algumas práticas que não aconteciam antes do contato.

Nós já temos a educação de outro povo e de outra língua e agora temos que ter a educação escolar do próprio povo Huni Kuĩ. Eu entendo que fazendo isto é uma forma de fazermos três ações de retomada: o uso da língua oral, o uso da língua escrita e a produção do material que nós queremos que seja ensinado na nossa escola. Com esta política, podemos pensar o futuro dos jovens que estão nascendo para que esta escola possa servir realmente de apoio à nossa cultura, de incentivo, de ensino e de formação. A escola não está nas terras huni kuĩ para ajudar somente um conhecimento, mas os dois conhecimentos e os povos que querem fazer isso precisam de apoio. Porque se a gente não mudar isso, daqui a mais alguns anos a escola pode ser vista como o barracão, o seringalista, que acaba te impondo uma coisa que você não tem como se livrar.

Podemos encontrar várias situações nas 5 regiões e nas 12 terras indígenas em que nós moramos. Nos lugares onde a prática da língua e da cultura é menor, poderíamos trabalhar com ‘intercâmbio de saberes’. Por exemplo, se na TI Praia do Carapanã nós não conhecemos muitos tipos de plantas, poderíamos trazer alguém do Jordão ou do Purus. Ou poderíamos formar um grupo de pesquisadores que poderiam aprender com os mais velhos e que depois trariam o seu conhecimento para a sala de aula para ajudar no aprendizado dos alunos. Mas para o nosso conhecimento, para a nossa cultura, isso talvez seja uma forma nova de ensino e de aprendizado. Muita gente não vai querer ensinar e aprender dessa forma, porque são conhecimentos repassados individualmente e não coletivamente. Na escola o aprendizado é coletivo, mas tem alguns conhecimentos que tem uma restrição e por isso temos que fazer nosso planejamento pensando no que é coletivo e no que é individual.

Por exemplo, tem algumas plantas medicinais que é para não ter filho, ou para ter filho, ou mesmo para matar. Daí qualquer um usando aquela planta pode prejudicar a saúde de alguma pessoa. Então só pode ensinar para uma pessoa de confiança daquela família que sabe. A ideia é que esse conhecimento não seja repassado para qualquer pessoa para não ser usado de qualquer jeito. E que seja usado apenas em uma necessidade. Não se ensina coletivamente sobre uma planta que é para matar, porque todo mundo pode querer usar isso em qualquer raiva que sentir, então tem essa restrição. Hoje não existe mais essas plantas, ninguém conhece e ninguém mais usa, mas é uma questão para se pensar: como a gente pode dar esse ensino individual e o coletivo? E esse é um ensino que não está na escola, está no dia a dia. E como a gente vai conservar isso? Como a gente vai registrar isso? Colocar na sala de aula? Porque sala de aula é coletivo. E esse individual, como vai ser ensinado? Nós temos na nossa história o modo como era ensinado no passado. Será que podemos fazer do mesmo jeito que acontecia na tradição oral?

Também pode ser pensada a entrada de coisas inovadoras que não fazíamos antes do contato, como o uso da tecnologia, que fortalece muito. Antes não tinha necessidade e hoje tem. Por exemplo, se você faz um documentário mostrando como era a nossa história, isto vai fazer muitas pessoas se lembrarem como era feito naquela época e, talvez, como um documentário não mostra tudo, outras pessoas serão incentivadas a fazer outros filmes com mais detalhe. É isso que nós estamos entendendo e fazendo. Estamos criando novos conceitos, novas possibilidades, novas ações para manter nossa língua oral, escrita, pesquisa, publicada em todos os âmbitos. Nosso objetivo é que nossa arte, nossa língua e nossa cultura voltem a ser praticadas para nossa sobrevivência e das futuras gerações.

Organização Social e Política

Nós temos essa palavra Shanẽ ibu, que é liderança/chefe. Antes do contato, tínhamos várias lideranças, o bom caçador era considerado líder, o bom pescador também, o pensador de fazer alguma brincadeira que envolvesse todo mundo também, pessoa que faz casa grande, roçado grande também era considerado Shanẽ ibu.

foto: Paula Lima

Hoje, com essa influência de outra cultura, se deu o nome de liderança para aquele que tem contato com o mundo de fora. E talvez nem a própria comunidade falou que ele era liderança, mas ele acabou assumindo esse papel, porque ele teve contato com os brancos, sabia falar a língua portuguesa, sabia negociar. E aí nós temos outras lideranças que foram surgindo nessa influência. Por exemplo, professor é uma liderança, da escola, da família, dos alunos; o agente de saúde também é uma liderança que trabalha com as famílias; o agente agroflorestal também é uma liderança. Hoje tem também uma representação das mulheres, dos jovens, e que somando toda essa representação, você tem um coletivo de Shanẽ ibu ou nia ibu.

Antes, só uma liderança chamava as pessoas, como eu estava falando, o caçador, o pescador, justamente para dar a ele a responsabilidade de fazer aquela tarefa. Hoje, a gente tem muito mais lideranças do que naquela época, mas o que falta é essa comunicação, essa articulação. Tem que ter uma pessoa para motivar essas lideranças atuais, e por isso tem várias terras que têm dificuldade de se organizar, por exemplo, para a plantação, para fazer uma festa e para outras iniciativas que poderiam ser bem melhores, mas que ainda falta essa pessoa que tenha a iniciativa.

Na nossa proposta de educação escolar Huni kuĩ nós queremos falar sobre isso. Qual a diferença entre as palavras ‘shanẽ ibu’, ‘liderança’, ‘chefe’? Em que situação nós estamos em cada uma das nossas comunidades? Quem realmente coordena isso? Ou cada um se coordena? Essas são algumas questões que estamos elaborando para cada um responder. Responder diante do que está acontecendo, mas pensando em como nós queremos que seja no futuro. Porque tem muitas lideranças só de nome, mas que na prática não influenciam e não organizam a comunidade.

Caça

A terra onde é hoje a Terra Indígena Praia do Carapanã já foi muito explorada no tempo dos seringais. Quando a seringa deixou de ser o produto principal, começaram a fazer o uso da caça como uma fonte de renda. Hoje, a gente está criando animais e evitando caçar com cachorro para que a gente possa ter animais futuramente. Se a gente não fizer isso, se a gente continuar com a nossa prática de ficar só caçando, poucos animais vão sobreviver e a geração que está crescendo não vai conhecer os animais que a gente conta nas histórias.

foto: Giulia Pedone

Por exemplo, alguns animais como mutum, anta, macaco preto, que eram os que o povo mais caçava, hoje a gente vê muito pouco no Carapanã. Então, se não tiver essa compreensão de não matar, mas deixar repovoar, vai ficar complicado.

Tem uma complicação que na nossa tradição diz-se que os bons caçadores são aqueles que matam a caça com filhote. Essa é uma ideia que a gente tem combatido que agora não pode mais fazer isso. A gente fazia isso no passado, quando a gente podia mudar de local, mas hoje a gente não tem mais como fazer isso. A terra é pequena e a população está crescendo, e isto traz problemas para nós.

Pesca

Além dos instrumentos de pesca, como tarrafa, rede, malhadeira, o povo Huni Kuĩ usa muito um veneno que é o tingui. E hoje a gente vem discutindo que precisa trabalhar com manejo. Talvez usar esse tingui só no momento de um evento, de uma festa, e não todo o tempo como a gente fazia. Não usar na água parada, igapós, lagos, talvez usar só na água corrente. A ideia não é acabar com o tingui, porque é uma planta da tradição do nosso povo, mas manter esse equilíbrio. Só que isso é complicado, os mais velhos chegam até a dizer que a gente está fazendo igual os nawa [não índios] faziam, proibindo as pescarias com tingui. Muitas famílias ainda não entendem.

Antes, nós tínhamos vários lagos onde tinha o pirarucu. Mas quando várias famílias chegaram e começaram a usar rede, malhadeira e tingui, esses peixes foram diminuindo e hoje a gente está tentando criar uma política de proteção. Não é simplesmente para proteger os animais, mas é pensando no nosso futuro. Temos percebido que a subida de peixe – curimatã, pintado, piau, mandim – vem diminuindo. Em vários anos não teve piracema. Então a gente percebe que o peixe está difícil, não é só na nossa terra.

Agricultura

foto: Paula Lima

No passado, nós tínhamos muitos tipos de mandioca e de batatas doces, mas muitas famílias foram deixando de plantar essas variedades para plantar só a macaxeira da batata grande que dá boa farinha. Hoje, algumas famílias ainda conservam as espécies tradicionais só para não perder as sementes, mas não plantam mais em quantidade como se plantava no passado.

Nós temos essas duas situações: as espécies que plantamos para comércio e as espécies que plantamos para o nosso consumo. Hoje estamos comercializando a farinha, que é feita da mandioca, e a banana. São só essas duas espécies que são pensadas para o comércio. E as plantações tradicionais são os outros tipos de mandioca, batata doce, inhame, cará, taioba, mas são plantadas em pequenas quantidades, só para não deixar acabar.

foto: Renato Gavazzi

Nesse nosso programa de Educação Escolar Huni Kuĩ essa é uma das áreas que a gente quer discutir. Quase toda família, no passado, tinha todas essas variedades em grande quantidade. E hoje algumas famílias têm e outras não têm. E por que não têm? Não têm a mesma necessidade de comer? Não têm o mesmo espaço para o roçado? A ideia é discutir esse assunto na escola, a questão das nossas espécies tradicionais. Se hoje a gente está com a ideia da ‘merenda regionalizada’ temos que discutir isso. Nossos alimentos tradicionais como batatas, amendoim não podem ser merenda? Então temos que fazer essa política para fortalecer a alimentação tradicional huni kuĩ.

Só que, no passado, nossos mais velhos contam que eles plantavam esses dois plantios separados. Hoje não, a gente faz o mesmo roçado e planta tudo ali e acaba se misturando. Por exemplo, o milho massa está se cruzando muito, porque ele é plantado no mesmo roçado junto com o milho duro. A espiga é do milho massa, mas o grão é do milho duro. O que eu tenho percebido é que tem mais cruzamento do milho duro do que do milho massa. E com isso todo o nosso milho está virando milho duro.

Gestão Territorial e Ambiental

Essa palavra ‘gestão ambiental’ chegou nas aldeias com os agentes agroflorestais. Eles que estão levando essa informação sobre a importância da conservação da biodiversidade para que todas as famílias entendam.

foto: acervo CPI-Acre

Houve muitas mudanças e impactos quando começamos a tentar impedir algumas práticas tradicionais do povo Huni Kuĩ como, por exemplo, o uso de tingui no igarapé e caçar com cachorro. Algumas famílias que faziam isto tradicionalmente tiveram muita resistência, disseram que estávamos fazendo como os patrões seringalistas, proibindo. No tempo dos seringalistas era assim: se caçasse com cachorro ou fizesse algo não permitido por ele, era expulso. Então, algumas pessoas mais velhas começaram a dizer: “A terra é nossa e nós temos o direito de fazer tudo”. Mas temos percebido que mesmo com esta resistência por parte de alguns, a gente está tendo uma experiência bastante positiva com esta ideia de repovoar, manejar. Nosso objetivo é mostrar para a nova geração como gerir nossos recursos naturais e isto está acontecendo.

Na nossa proposta de Educação Escolar Huni Kuĩ, como eu disse, um dos temas é a questão da plantação. Vamos ouvir quem está fazendo, como fazem e quais os resultados para que a nova geração conheça e pratique. Quando chega uma experiência nova, muitas famílias não acreditam, mas eu sempre tenho falado para eles que isso é comum, no começo nem todo mundo quer participar. Mas se essa prática continua sendo feita, a nova geração vai aprendendo e no futuro isto tem efeito.

Nesses últimos anos a gente tem conversado muito que não podemos depender simplesmente da floresta, mas precisamos começar a plantar e a criar pequenos animais para não ficar só pescando, só caçando ou só derrubando a floresta para plantar os legumes que a gente come, mas pensar também no reflorestamento e repovoamento dos animais. E isso, não só na TI Praia do Carapanã, mas em todas as terras huni kuĩ. Ainda não começou muito na prática, mas na mente o pessoal tem essa solução. Tanto que a maioria das lideranças estão reivindicando, por exemplo, uma barragem, reflorestar a capoeira, e estão começando a levar as várias sementes para começar a plantar no roçado, no quintal. Tem que pensar que cada um tem sua família e que ela vai permanecer ali por muito tempo. Então a tendência é cada vez mais ter esta consciência e fazer as boas práticas acontecerem.

A população está crescendo e não tem um limite de produção humana. Isso é um problema para nós, estamos tendo problemas em muitas comunidades que os melhores espaços para fazer roçado já foram explorados. Agora o pessoal está tentando voltar a usar as capoeiras. Na nossa cultura tem muita espécie que não funciona na capoeira, que não dá boa produção. E é aí que entra o trabalho dos agentes agroflorestais Huni Kuĩ que estão ganhando essa experiência de como fazer a terra voltar a ficar boa, por exemplo.

Hoje em dia até plantar amendoim está ficando difícil. Porque antes, quando tinha menos gente, cada família tinha praticamente uma praia inteira para plantar o mudubim. Hoje a população cresceu, todo mundo quer plantar, aí vão fatiando a praia. Não se planta mais em quantidade como se plantava. Quer dizer, a praia continua sendo plantada toda, mas ela é dividida com muitas famílias. E aí também entram os agentes agroflorestais com uma nova tecnologia para plantar amendoim não só na praia, mas também na terra firme. Porque com a nossa tecnologia mesmo não tem muita garantia da gente plantar em terra firme. A gente planta em terra firme só para não perder a semente, mas para a grande produção só plantamos na praia mesmo.

Hoje, nós temos que aprender novas situações de convivência, não mais aquela que a gente convivia. Antes, a gente tinha o costume de ficar usando o local e quando ficasse tudo difícil de fazer ou de pegar, tinha que se mudar para outro lugar. Hoje você não pode mais ficar pra cima e pra baixo fazendo isso, porque a terra está demarcada, a população cresceu e em todas as voltas do rio tem casas. Então a ideia é aprender novas experiências para que a gente possa construir uma política de sobrevivência. O roçado que a gente fazia antigamente, tem que fazer diferente. As caçadas que a gente fazia antigamente, tem que fazer diferente. As plantações que a gente fazia antigamente, tem que fazer diferente. As festas que a gente fazia antigamente, também tem que fazer diferente. E esta mudança só pode acontecer quando há um consenso entre as lideranças e comunidades. Porque se não há esse consenso, por mais que a gente tente fazer, se a comunidade não entende e não quer praticar, não vai ter resultado. E aí vem essa ideia de fazer ‘gestão’. ‘Gestão’ é cuidar de algo, é fazer algo acontecer de melhor. Então, quando se pensa em fazer gestão da sua terra, tem que fazer também a gestão da sua cultura e da sua comunidade… Se não há isso, a tendência é criar uma política de divisão.

Eu tenho percebido que em muitas terras a prática já é do mundo de fora. Por exemplo, para escolher uma liderança vão fazer uma espécie de eleição. Daí quem ganha é sempre quem tem mais família… Como que essa comunidade vai voltar a ser uma coisa comunitária e não individual? Eu também tenho muito receio de que essa educação de fora que é pensada pelo plano nacional faça isso: quem sabe ler é aqui, quem não sabe ler é ali… Quem é pescador é aqui, quem não é pescador é ali… Então pode nos dividir e a gente precisa ter muito cuidado para que isso não aconteça, pois nos enfraquece. E se a gente está fraco, se a gente está dividido, é mais fácil da gente ser dominado. Então, este é um grande medo que eu tenho e por isso nós pensamos em criar este programa de Educação Escolar Huni Kuĩ, onde a gente vai tratar todas essas nossas questões e não só a escrita e a leitura.

Economia

Hoje nós temos várias fontes de renda. Tem os funcionários, aposentados, aqueles que recebem bolsa-família, tem algumas famílias que já se adaptaram a fazer a farinha de qualidade para venda, pessoas que estão vendendo a banana, as mulheres que fazem os Kene, as bolsas, artesanatos, praticamente são essas as fontes de renda que temos atualmente.

foto: Giulia Pedone

Nós temos a ideia de usar outros conhecimentos para ampliar essas fontes. Uma coisa que a gente quer fazer é usar a madeira que sobra, que a gente derruba quando vai fazer o roçado, para trabalhar com ela como marceneiro, por exemplo. Essa é uma ideia para ser pensada. Será que colocar uma serraria na aldeia, ao lado dos roçados, é uma boa coisa? Como a gente pode aproveitar a madeira caída? Como reciclar a madeira? Não estamos querendo pegar a madeira e vender ela em pedaço, mas usar essa madeira para o bem da comunidade, fazer móveis, paredes, cobertura… Essa é uma ideia que há muito tempo nós pensamos, mas ainda não chegamos a realizar.

Quando entra dinheiro nas aldeias muda muito. Isto acontece com todos os povos e eu estou percebendo isso com o povo Huni Kuĩ. Por exemplo, com a entrada do dinheiro muitos passaram a comprar os alimentos de fora e isso tem gerado dois problemas. Problema de saúde ambiental e de saúde física, porque o consumo exagerado de alguns alimentos industrializados acaba trazendo problemas. Por exemplo, muito óleo, muito açúcar, muito sal e produtos industrializados estão gerando doenças. Nós temos nossas plantações e temos a alimentação que está chegando de fora, qual delas está sendo mais valorizada? Se estamos diagnosticando que a alimentação de fora está trazendo problemas, por que a gente está incentivando isso ao invés do nosso alimento que não tem química e não causa problemas de saúde? Esta é uma coisa a se pensar, não só os Huni Kuĩ, mas todos os povos.

Uma outra coisa que o dinheiro trouxe, que é bom para nós mas é ruim para o meio ambiente, são os motores que estão chegando nas comunidades. Hoje, quase todas famílias estão fazendo uso de motor, como motores de popa, da farinhada, da roçadeira, e aí estão consumindo combustível. Se é isso que faz o aquecimento global, então nós já estamos ajudando a aquecer esse planeta. E se você levar isso para muitas lideranças parece que você é contra. Eu analiso que, no passado, na minha geração, eu fiz duas viagens do Jordão para Tarauacá varejando. Hoje não, para o pessoal atravessar até do outro lado do rio tem motorzinho. Se não tiver motor ninguém viaja mais. Então se criou uma dependência grande de ter, de usar, e ainda tem a questão ambiental. E isto não acontece só com os povos considerados indígenas, em todo o planeta você está vendo isso. As primeiras viagens que eu fiz aqui para Rio Branco era diferente, não se via tantos carros. Hoje você vê uma fila enorme de carros no centro da cidade. E a tendência é as pessoas comprarem mais carros. Então esta é mais uma conversa que nós precisamos fazer na comunidade. E parece que é um problema que não tem muito como fugir. As pessoas que já têm o barco, já têm o motor, vão influenciando as outras famílias que passam a querer ter a mesma condição. Esse é um problema para a nossa vida, não sei onde vamos parar…

Projeto de Futuro

Nós temos 12 terras indígenas no Acre, cada uma com sua experiência, atividade, renovação e sobrevivência. Eu tenho pensado que daqui a 50 anos, se investirmos todas as nossas ideias conforme eu estava colocando aqui, e fazer isto evoluir por igual, conjuntamente, poderemos garantir nossa sobrevivência por mais tempo. Agora, se não fizermos isto e continuarmos a levar somente o conhecimento de fora, o conhecimento do povo Huni Kuĩ será sobreposto e não serei eu e nem a geração da minha idade que vão reclamar. Quem vai reclamar é a nova geração.

foto: Giulia Pedone

Então, a preocupação que eu venho levantando, hoje, entre nós, é que precisamos criar mecanismos para trabalhar esses dois conhecimentos por igual. Nós avaliamos que os conhecimentos das práticas culturais huni kuĩ estão diminuindo, enquanto a prática de outro mundo está crescendo. Se hoje se exige trabalhar nas escolas 800 horas/ aula, por exemplo, então vamos trabalhar 400 horas o conhecimento de fora e 400 horas o nosso conhecimento. Hoje, esse é o grande desafio do povo Huni Kuĩ: manter os conhecimentos culturais e a língua oral, aprendendo, inovando novas experiências para garantir a vida social huni kuĩ nos atos da sustentabilidade e como um povo com sua identidade mantida.

Acredito que se colocarmos isto em prática, se a gente conseguir desenvolver este trabalho, tenho muita certeza de que a vida do povo Huni Kuĩ vai ser diferente em todas as situações, mesmo a terra ficando pequena, com a população crescendo e consumindo mais recursos naturais. Esta é a nossa vontade e esperança do povo Huni Kuĩ, porém não sei se isto vai acontecer.

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