foto: Paolo Altruda
Francisco Francineudo. (foto: acervo CPI-Acre)

Nome  Francisco Francineudo Batista Brandão, professor indígena

Nome indígena  Ruahu (por parte de mãe); Tekahayne (por parte de pai)

Nós somos o povo Shanenawa que significa ‘Povo do pássaro azul’. É um pássaro muito bonito que existia e que hoje está em extinção. É pela raridade dele que nós também somos raros; é por isso que o povo Shanenawa só tem um no Acre e também não tem em nenhum outro lugar do Brasil.

Até 1990 o povo Shanenawa era conhecido como Katukina, depois que se viu que nós não somos Katukina, nós somos Shanenawa. Nós estamos localizados na Terra Indígena Katukina-Kaxinawá, no município de Feijó. Estamos em 8 aldeias e aproximadamente 800 pessoas.

História

A nossa história conta que o povo Shanenawa surgiu de dentro de um cesto. Era um casal de velhos que morava nesta casa onde tinha o cesto na cumeeira. Um dia, o cesto começou a rodar. Quando eles foram olhar, tinha um casal de crianças lá dentro. Eram crianças brancas (não indígenas). Passaram-se mais dias e o cesto começou a balançar novamente. Ali dentro tinha pena de urubu, de tucano, de japó, de shane, tinham asinhas de morcego. De cada uma dessas penas surgiu um povo e foi saindo de dentro do cesto. É por isso que apareceu tanta gente e a nossa história diz que o branco saiu primeiro.

foto: acervo CPI-Acre

O povo Shanenawa morava nas margens do rio Juruá. Nosso povo brigava muito com outros povos distantes. E a nossa história diz que o nosso povo brigou com outra aldeia do mesmo povo Shanenawa, por causa de mulher. Então a maioria dos Shanenawa subiu o rio Juruá, passou pelo Peru (morou muito Shanenawá por lá), enquanto a minoria atravessou o rio Juruá e chegou até o rio Tarauacá e rio Muru. Isto foi antes do contato com os brancos.

Meu avô conta como foi o primeiro contato dele com os brancos. Ele viu um rastro grande de homem branco. Ele pastorou, até que o homem branco apareceu pra ele. O homem mostrou o chapéu e perguntou se ele o queria, então fizeram a troca: o meu avô lhe deu um chapéu de pena e o homem deu a ele o seu chapéu. Depois que fizeram a troca, ele falou: “Daqui a dois dias eu venho te encontrar”.  Quando o seringueiro vinha, trazia tabaco – que meu avô chamava ‘tamaco’. Em troca, os índios levavam para ele carne moqueada, coxa de veado, de paca. Depois disso o seringueiro passou a trazer terçado, espelho. Foi assim que começaram os contatos.

O primeiro seringal onde eles moraram foi o Seringal Simpatia, no rio Envira. Este seringal era dominado pelo que eles chamavam de ‘paulistas’. Eles queriam escravizar os índios, queriam que eles aprendessem a cortar seringa e carregassem borracha, mas para eles isto não era bom. Então se mudavam e baixavam para outro seringal. O último seringal onde eles moraram foi o São Francisco que fica a mais ou menos três dias de baixada do Simpatia e uns cinco dias de subida, então é muito distante.

De lá (Seringal São Francisco), eles vieram pra Feijó que, na época, era um pequeno vilarejo. Eles ficaram em um seringal em frente à cidade. Dali não tinha como baixar mais. O seringalista, chamado Valdemar Probem, permitiu que os índios morassem ali. Ele gostava, porque os índios faziam roçados e quando ele queria, ele pedia: “Eu quero uma macaxeira para comer, vá lá e pega! ”

Isto foi no tempo do governador Joaquim Falcão Macedo. Os índios moravam num pedaço de terra bem pequeno e o governador deu uma terra maior; além do seringal, ele ampliou mais um pedaço de terra. A FUNAI não existia nesse tempo.

Demarcação da Terra Indígena

Em 1978 chegou a FUNAI e a equipe que veio fazer o estudo para a demarcação da terra. Dentro da terra que ia ser demarcada tinha muito branco ‘valente’, daí o pessoal de Rio Branco e de Brasília diziam assim: “Olha, gente, daqui a uns dias esta terra vai ser de vocês.” E o pessoal perguntava: “Como é que vai ser nossa? Lá dentro só tem seringalista valente, tem espingarda, tem rifle, e nós não temos nada, só temos flecha.” Eles não acreditavam. Mas a demarcação da terra saiu mais pelo povo Kaxinawá (Huni Kuĩ) que já moravam há muito tempo onde hoje é a Aldeia Paroá. Abaixo da cidade tinham três cemitérios, os antropólogos, historiadores, geólogos disseram: “Olha, gente, vocês têm direito a esta terra, porque esses três cemitérios comprovam que vocês já existiam aqui.”

foto: Paolo Altruda

A Terra Indígena foi demarcada em 1982, seis anos depois de muito processo. E este processo deu até morte na terra indígena. Eu ainda era criança e me lembro quando, numa tarde, levaram um homem branco morto e quatro índios baleados para o hospital. Mas a conquista da terra foi dessa maneira. Tinha gente que não queria sair. O pessoal da FUNAI dizia assim: “Olha, vocês vão lá naqueles proprietários e digam que eles vão sair e vão ter direito à indenização. ” Então os índios iam lá e diziam: “Vocês têm um ano pra sair daqui”. Depois de um ano foram lá e ainda tinha gente. Daí disseram: “Vocês têm 6 meses”. Então o tempo foi encurtando até chegar ao prazo de 48 horas para eles saírem. Quando não saíam, a ordem era pegar e carregar até o barranco. O cacique chamava todo mundo para fazer o despejo de 3 ou 4 famílias, as nossas mães ficavam com medo, nos pegavam e deixavam no mosquiteiro, porque tinham medo dos brancos irem lá e matarem algum de nós. Nós tínhamos muito medo disso acontecer. E com isso, a FUNAI se apressou em pagar logo a indenização. As lideranças desse tempo eram o Bruno Brandão, Manoel Carlos, Chico Barbosa e Jorge Barbosa. Eram quatro lideranças fortes, hoje só estão vivos o Bruno Brandão e o Jorge Barbosa.

A homologação foi em 1988. Hoje a nossa terra tem 23.474 hectares, só o nosso povo tem cerca de 800 pessoas e mais cerca de 1200 Huni Kuĩ. Então são mais ou menos 2000 índios na terra indígena.

A Língua Shanenawa e a Educação Escolar

Atualmente, a língua predominante entre nós é o português, somente cerca de 25% das pessoas falam a língua Shanenawa. Talvez chegamos a este ponto porque nós não tínhamos a noção da língua, do valor dela, e agora nós temos uma política de orientar a preservação da língua através da escola. Sabemos que a escola não ensina cem por cento, mas ela incentiva muito. E já vemos uma diferença de uns três ou quatro anos pra cá, a escola tem ajudado muito na preservação da língua.

foto: Paolo Altruda

Percebemos que quanto mais a gente cria um mecanismo para a preservação da língua indígena, mais a gente se preserva daquelas coisas que estão entrando pra dentro. Por exemplo, telefone, TV, informática, energia elétrica influenciam muito. Hoje você encontra tablet e notebook na aldeia. E hoje você vê gente na aldeia que come uma macaxeira e tem dor de estômago.  As alimentações, frango, enlatados, bebidas alcoólicas, as festas, tudo que entra dentro da aldeia vai fazendo com que a nossa cultura seja deixada de lado.

A escola representa um avanço a mais, porque ela não ensina só o mundo ocidental, ela também ensina a origem e as histórias reais que aconteceram com o nosso povo. Ela não ensina só na teoria, mas também na prática: as culturas, as culinárias, tudo parte para a prática.

Mas a gente gostaria que a nossa educação fosse reconhecida não apenas na escola indígena. A educação indígena, a política indígena, têm que ser mostradas para todos, porque nos livros que os alunos não indígenas estudam o índio é mostrado como aquele que vive na mata, anda nu, come a carne disso e daquilo, mas o mundo dos indígenas hoje é moderno: tem o indígena vereador, tem o indígena trabalhando no seu setor e comandando o seu próprio povo. E isto a educação do branco não ensina. Então é preciso que a nossa educação seja mais reconhecida, porque às vezes nós somos discriminados, acham que o índio é aquele atrasado…

Gestão Territorial e Ambiental

Nós temos um plano do povo. Nós temos o plano de fazer a fiscalização de todo o entorno da terra indígena duas vezes por ano, até porque ela é muito grande. Mas não tem sido suficiente, porque mesmo indo uma vez no primeiro semestre e outra no segundo, nesse intervalo está entrando caçador (ainda não temos invasão de madeireiros).

foto: acervo CPI-Acre

A nossa terra faz fronteira com muitas fazendas, ao redor da nossa terra já não tem mais mata, é só campo. O que restou de floresta é só na terra indígena, então é dali que as pessoas estão tirando o seu sustento. Os moradores antigos que moram no entorno da terra indígena estão caçando e nós não conseguimos corrigir, porque é muito grande. Então fazer a fiscalização duas vezes por ano é pouco, mas nós temos feito isto há mais ou menos quatro anos seguidos sem nenhum apoio, só com a vontade do nosso povo mesmo. É difícil a gente deslocar 60 pessoas e ir pra cima, corrigir, ver invasão…

Nós temos nossos pontos de caçada. Os moradores das aldeias Nova Vida e Paredão, por exemplo, vão lá, marcam o território, e dali eles monitoram quem está caçando ao redor, então com isto vamos fazendo a gestão também, porque eles estão caçando e também estão vigiando. Desde 2005, nós estamos com a política de proibir a caça com cachorro.  As caças mais consumidas por nós são a paca, o veado, os macacos e as aves em geral, nambu, jacamim, etc.

A pesca a gente faz de várias maneiras. Uma delas é pescar com tingui nos igarapés. Tem gente que pensa que o tingui vai acabar com tudo, mas não vai, porque depois o rio enche e traz outros peixes de novo. Também pescamos nos lagos e rio com malhadeira e tarrafa. Os principais peixes que consumimos são mandim, curimatã, bico de pato, piau, bodó.

Nos roçados plantamos mandioca, milho, arroz, cará, inhame, banana, mamão… Nossa principal fonte de renda é a venda do excedente da produção. Atualmente, com a entrada de mais dinheiro nas aldeias através de salários e benefícios sociais, várias pessoas estão deixando de fazer roçado. Eu sou um educador e não vou deixar de fazer o meu roçado porque recebo salário no fim do mês. Mas percebo que esta questão do dinheiro nas comunidades tem dois lados: o lado positivo é que consegue estabilizar uma família, a pessoa consegue comprar uma panela, uma roupa pro filho, mas tem muitos que gastam sem nenhuma utilidade, gastam com cachaça e prejudica não só a saúde, mas desestimula uma família.

A cidade que mais frequentamos é Feijó, mas não tem nenhuma família morando lá atualmente.

Projeto de Futuro

Daqui a dez anos nós gostaríamos de manter a nossa vida cultural ativa. Mesmo enfrentando as dificuldades, mesmo com a entrada de tecnologias (pois a gente não escapa mais disso), mesmo assim nós pretendemos manter nossa cultura viva para poder mostrar pros nossos filhos e para as pessoas que vão vir depois a sua importância, na dança, na língua, em todos os aspectos.

foto: Paolo Altruda

A gente também gostaria que a nossa educação fosse reconhecida não apenas na escola indígena. Nós gostaríamos que a educação indígena, a política indígena, fossem mostradas para todos. Porque a história que aparece nos livros didáticos dos alunos não indígenas mostra que o índio é aquele que vivia na mata, andava nu, come a carne disso, daquilo… Mas o mundo dos indígenas hoje é moderno, tem o indígena vereador, tem o indígena trabalhando no seu setor e comandando o seu próprio povo. E isto a educação do branco não ensina. Então, é preciso que a nossa educação seja mais reconhecida, porque às vezes nós somos discriminados, acham que o índio é aquele atrasado.

Também temos um projeto – que é um sonho ainda – com relação à nossa produção. Gostaríamos de ter o nosso próprio projeto de vida comandado por nós mesmos, independente das ações do Governo. Gostaríamos de poder manter um equipamento de ponta para gente aperfeiçoar a nossa agricultura, porque às vezes tem a macaxeira, mas não tem o equipamento pra fazer a farinha, daí tem que vender a macaxeira pra comprar a farinha. Aí tem que fazer o que? Esperar o Governo mandar o forno? Então o nosso sonho é ser autônomo, ao invés de comprar a farinha, vamos vender farinha, ao invés de comprar o arroz, vamos vender arroz.