foto: Arlan Hudson
Antônio Pereira Eutxeshanĩ . foto: Paula Lima

Nome  Antônio Pereira Lima, liderança e professor indígena (TI Arara Igarapé Humaitá)

Nome indígena  Eutxeshanĩ

O nosso povo é conhecido por Arara, nome dado pelos não indígenas. O nome de origem é Shawãdawa que significa ‘Arara’ também. Diz que o branco andava caçando na mata e o índio Arara também. Aí os dois se encontraram e o branco perguntou: “Como é o nome do seu povo, compadre?”. O índio não entendeu a pergunta, mas ele tinha matado uma arara, levantou a arara e mostrou pro branco. Com isso, o branco entendeu: “Ah o nome do teu povo é Arara…”. Isso aconteceu com nosso povo e com outros daqui da região também, segundo conta a história.

Se pudesse colocar um símbolo do povo Arara seria o chapéu de pena de arara. Até nós comentamos com os txai[1] que usam chapéu de pena de arara: “Ó txai, a pena de arara é patenteada só dos Arara, pra usar deveria pagar uma taxa, se não só quem pode usar era nós!”. O chapéu dos Huni Kuĩ ou dos Ashaninka era diferente, mas hoje, como diz o Alexandre, englobou tudo e já tão usando o nosso chapéu sem a nossa ordem! Eu tô dizendo brincando, mas que é nosso símbolo, é.

A minha terra de origem mesmo, dos meus avós, é o Seringal Bajé, onde hoje á a Terra Indígena Jaminawa Arara do Rio Bajé, justamente por causa das famílias do nosso povo que já moravam lá mais os Jaminawa. Depois da demarcação da TI Arara do Igarapé Humaitá ficamos aqui, nossa família do povo Arara, onde habitamos até hoje.

[1] Originalmente, `txai` é uma palavra das línguas pano que significa `cunhado`. No Acre, ela foi apropriada também pelos não indígenas e é usada hoje para se referir aos indígenas de uma forma geral.

Costumes Antigos

foto: Paula Lima

O que descobri com o meu avô, Antônio Napoleão é que os costumes do passado eram diferentes dos de hoje. Por exemplo, dentro do kupixawa ou shubuã [maloca] vivia todo mundo, as redes eram todas de algodão ou palha de açaí, ou então dormiam em cima do couro de animal. Lá vivia toda a família, os sogros, genros, filhos. A educação era diferenciada também porque era uma educação verbal.

Eles dificilmente comiam com sal, então eles sentiam o cheiro dos animais e podiam rastejar qualquer cidadão. Quando começaram a comer sal perderam o faro. Era difícil comer cozido, era mais assado ou moqueado, embrulhado na folha, conhecida por kawa. Do cocão se fazia a mistura pra carne. Eles também faziam aquele ‘pão de índio’ que nós encontramos até hoje, os ‘pães de índio’ que eram deixados para trás durante as correrias.

o casamento era diferente de hoje. Para casar os pais que escolhiam o pretendente de acordo com o desejo do pai ou da mãe. Achava um rapaz interessante, se era trabalhador, se era matador de caça, pessoa criativa. Aí como fazia o casamento? Colocava a pessoa deitada, o outro deitava em cima cruzado e ia aumentando o número de pessoas até aquelas duas pessoas gemerem com o peso, daí estava feito o casamento. Hoje em dia é diferente.

Para sepultar as pessoas, nossos parentes antigos, também era diferente. Não era assim esticado no caixão ou embrulhado como hoje. As pessoas morriam, daí tinha um camburão grande onde eram colocados os mortos, cavava a terra e eram colocados os mortos de cócoras dentro do camburão, como se fossem plantados. Hoje em dia ainda encontramos caco de camburão em vários lugares, ninguém sabe se foi jogado ou se tinha uma pessoa sepultada ali. Daqui pro Novo Acordo a gente vê muito pedaço grande de camburão velho por aí.

O tempo era marcado pela lua, as pessoas diziam: ‘Em tal lua eu estou aqui de novo’. Assim era a medição deles e assim viviam. Hoje as histórias do passado estão quase extintas. Se a gente não procurar com os mais velhos, pesquisar com eles, interrogar direitinho, a gente não vai conseguir saber.

O Contato com os Não Indígenas

A população indígena, no passado, antes da chegada dos não indígenas, viviam nômades. Onde topavam com alimentação eles permaneciam, ficavam alguns meses ou anos e depois se mudavam para outros igarapés, outros rios. Faziam esses percursos e quando ficava ruim de rancho [alimentação] eles iam para outro lugar. Depois de um tempo, quando eles achavam que estava bom de rancho de novo, eles retornavam pro mesmo lugar. E assim iam vivendo.

foto: Paula Lima

Quando os brancos chegaram, esse Riozinho Cruzeiro do Vale aqui era só índio que morava. Eles viram que tinha muita seringa, aí começaram a cortar. E os índios estavam incluídos ali no meio. Teve muito impacto quando o branco chegou. Os índios não entendiam, eles passavam no barracão o patrão e pegavam as coisas, eles não sabiam se isto era roubar ou se era crime. Daí o que acontecia? O patrão contratava as pessoas com rifle para pastorar e matar os índios. O índio ficava revoltado e se vingava, matava com flecha o patrão ou o empregado do patrão. Aqueles que corriam muitas vezes eram pegos e levados para o patrão. O patrão começava a falar e eles não entendiam, mas pelos gestos foram se entendendo, um com o outro. Daí aquele índio já virava o chefe, o patrão já agradava com alguma coisa, com alimentação, tratava bem aquela pessoa, dava rifle, ensinava a atirar. Foi assim que começou o contato e com isso foi acabando com a nossa população.

Os Huni Kuĩ [Kaxinawa] ficavam mais centralizados nas cabeceiras do rio, daí era mais difícil de serem afetados. Os primeiros que foram afetados pelos não indígenas foram os Puyanawas, Shawãdawas e Yawanawas. Por isso, a gente analisa que hoje a nossa língua de origem não é a nossa primeira língua, mas a segunda, porque no passado nosso povo enfrentou os Nawa [não indígenas] logo que eles chegaram. Enquanto aqueles que ficaram mais centralizados permaneceram sempre com a cultura de origem, a fala, a comida, a sabedoria, tudo o que tinha que permaneceu e ainda permanece.

O contato trouxe muitos problemas, porque veio muita mortalidade, não só de bala ou de pau, mas os não indígenas também trouxeram muitas doenças contagiosas. Hoje, a gente tem pensado bastante, nós tivemos uma vida boa quando a gente vivia liberto, antes do contato com o branco. Depois do contato com o branco tivemos muita mortalidade por doenças e massacre. Aí depois tivemos o cativeiro, que era o tempo dos patrões, eles batiam, açoitavam, expulsavam, mandavam matar. E hoje felizmente nós estamos dentro de uma terra indígena demarcada e homologada. Mas se pensarmos bem, nós ainda estamos em um cativeiro, porque não podemos mais sair daqui para morar em outra terra, porque tudo já está ocupado. A terra deveria ser liberta.

Por outro lado, o contato teve um lado bom. Hoje, que nem diz no estudo das plantas, nós já somos ‘consorciados’. Acolá tem o branco e encostado tem o índio, até nos setores públicos já tem e nas terras indígenas também tem índio com branco, e assim por diante. Mas nós, indígenas mesmo, nunca, nunca, ninguém nem pense que nunca vamos ser branco, porque índio nasce índio, morre índio. Comparando com o pé de taboca, é taboca? É. Não vai virar bambu não, nem cana, é taboca. Nasce taboca, fica velho e morre taboca, do mesmo jeito somos nós indígenas.

Demarcação da Terra Indígena

Antigamente, quem mandava nessa terra aqui era o patrão. E a sobrevivência era a seringa, o látex retirado pra fazer borracha e sobreviver. Mas caso o índio cortasse a borracha e vendesse pro atravessador, ele era expulso. Naquele tempo era tudo muito injusto, porque você zelava a estrada, cortava direitinho, e ainda tinha que pagar uma coisa que não era do sujeito? Ele não plantou, não cuidou, pessoa que cuidava ia pagar pra uma pessoa que não tinha nada a ver? Tudo errado e o patrão ainda achava que o seringueiro é que estava errado.

foto: Paula Lima

Meu pai foi embora pra Cruzeiro do Sul quando o patrão expulsou nós. Eu era pequeno, nós moramos oito anos em Cruzeiro. Foi nessa época que o Terri e o Macedo chegaram lá, trabalhando para a FUNAI. Já existia a CPI [Comissão Pró-Indígenas do Acre] também. Aí eles toparam com o Chico Varela na cidade e perguntaram se ele era índio. Ele respondeu que era. Perguntaram de qual povo, ele disse que era do povo Arara. Perguntaram onde morava, ele disse que morava aqui no Riozinho Cruzeiro do Vale e contou a história, que tinha sido expulso pelo patrão, que o pai e os cunhados tinham ido embora. Daí eles disseram: “Olha, pessoal, vocês têm que voltar pra lá de onde vocês vieram. Lá vai ser uma terra indígena e se vocês não voltarem, não vai ter terra indígena e vocês vão morar na cidade. Aí o Chico Varela falou: “E se nós voltar pra lá e o patrão expulsar nós de novo sem nós poder plantar, sem nós poder criar nada, sem nós poder cortar seringa?” Aí eles disseram: “Não, vocês podem voltar porque já tem a lei segura de que onde tem índio morando, se for feito o levantamento e o diagnóstico e comprovar que os parentes de vocês antigos já moram lá há muito tempo, vocês têm direito.”

Aí o meu tio foi expandindo a notícia e quando ele chegou aqui, a maior parte dessa terra era o canavial do patrão que morava do outro lado do rio. Aí começou a guerra, o patrão dizia: “Ah não, índio não vai morar aqui, aqui quem manda sou eu! Índio que vier pra cá eu vou matar que nem queixada, porque aqui quem manda sou eu!”. Foi muita luta, o patrão ameaçava mesmo! Meu tio era jurado, foi preso, foi batido lutando por essa terra. Juntou a mãe dele, minha vó Judite que era Arara mesmo, pura, velha guerreira, que lutou muito. Até na rádio Nacional ela dava entrevista na língua, cantava. Ela tinha uma parceria boa com o pessoal, porque ela era curandeira, daí era muito respeitada. Então é uma história grande mesmo pra ser contada, se for escrever dá um livro grande!

Mesmo assim, com pouco tempo o pessoal da FUNAI chegou. Em 1985 foi feito o primeiro levantamento da terra indígena, na época eram 130 pessoas. Foi feito um estudo também, quem morava aqui, há quanto tempo e foi dado o diagnóstico que tínhamos o direito à terra porque nossos antepassados conviveram aqui há muitos anos. Quando publicaram que aqui seria terra indígena as pessoas foram chegando para viver. Graças a Deus, tivemos o apoio de muitas entidades, a CPI deu muito suporte na área da educação e da saúde pra hoje nós estarmos aqui morando com nossas famílias.

Quando teve a demarcação fizemos uma festa de comemoração na aldeia Raimundo Vale, teve muita gente! Foi com recursos do projeto PPTAL que foi feito todo esse trabalho da demarcação, fizeram uma picada grande, colocaram os marcos e circularam tudinho.

A briga do patrão era pela seringa, mas hoje ninguém liga mais pra seringa. Nós tomamos conta mesmo do seringal e do outro lado do rio virou um assentamento do INCRA. Agora é dos índios e dos assentados não indígenas, terra indígena de um lado e assentamento do outro, para cada um trabalhar e viver em paz!

Língua Indígena e Educação Escolar

No tempo em que nossos antepassados viviam na maloca, todos viviam juntos. Quando o patrão chegou, ele não gostou: “O que nós podemos fazer pra esses índios não viverem juntos mesmo?”. Eles falavam entre si na própria língua, daí o patrão, por não entender, com medo, falava: “Tá falando o que, caboclo? Cala já com essa gíria aqui, rapaz, vou dar uma pisa nesse caboclo aí!”. Ele mandava aqueles empregados dele meter a peia no coitado. Daí ele ficava desgostoso, com vergonha. E botava cada um numa colocação diferente, um pra cortar seringa pra ele, outro pra fazer roçado, outro pra caçar… Foi assim que cada família passou a viver separada, mas antes moravam todos juntos. Por isso que dificultou muito a nossa fala de origem, por não estar mantendo o contato no cotidiano.

foto: Paula Lima

Hoje, eu vejo que uma coisa que atrapalha muito é que estão entrando muitos brancos catequizando como evangélico e deixando nossa língua de lado. Já tem igreja aqui na Foz do Nilo, tem no Santo Antônio, tem no Raimundo Vale e isso vai fazendo a gente esquecer a nossa própria fala de origem. E as lideranças – não querendo discriminar ninguém – estão à frente disso também. Porque eu considero assim, a liderança é como um pai que deve incentivar os filhos no caminho que eles devem seguir.

No passado, nós não tomávamos nem a bênção dos nossos parentes. Quando chegaram os padres, os missionários, aí que foi ensinando a tomar bênção, a rezar, dizendo que é pecado isso e aquilo outro e assim já fomos catequizados uma vez. E hoje está chegando a segunda catequização através da evangelização. Mais cedo ou mais tarde, isso pode trazer problemas. Se eu estiver pecando, Deus me perdoe, mas essa é a minha consciência.

Eu creio que com relação à nossa própria fala mesmo, nós precisamos estar juntos, decidir juntos. Por exemplo, poderia ter em cada casa um CD tocando uma música, ou uma história gravada de algum velho na língua indígena. Nós temos gravações, CDs, livros que devem ser usados nas escolas, mas nas casas de cada família também, os pais deveriam incentivar os filhos. Depende de nós como povo indígena retomar o que é nosso de volta, se não, nossa fala de origem vai ficar esquecida, vai se acabando. Diz que nossa identidade, nosso documento, é a nossa própria fala de origem e o nosso conhecimento. Porque se não, somos índios só de feição. Se o cara chegar em outra terra indígena e perguntarem pra ele: “Tu é índio?”, “Sou.” “Então fala alguma coisa aí na tua língua!”. “Ah, não sei não!.” “Tu é índio ou é um pirata?”.

Hoje, é difícil a gente chamar alguém pelo nome indígena ou pedir algum objeto na língua indígena porque a língua portuguesa é majoritária e onde a majoritária está, a minoritária vai ficando esquecida. Todas as pessoas aqui têm o seu nome próprio indígena. Todas. Isto foi muito incentivado por mim e pelo Edilson através dos Cursos de Formação de Professores da CPI que participamos e fomos aprendendo. Lá nós fizemos três cartilhas e isso ajudou muito. Tem o meu tio, chamado Chico Nogueira, ele foi uma das pessoas guerreiras que incentivou muito mesmo. Agradeço à pessoa dele, onde ele estiver nesse momento, que nos ensinou muito sobre a nossa história, medicina e músicas. A maior parte das músicas que a gente canta aqui hoje foram ensinadas por ele nas noites de ayahuascada.

Hoje existem oito escolas na terra indígena e eu tenho orientando os professores a ensinar, pelo menos, a cumprimentar os seus parentes. Se chegar na casa de alguém, dizer: “Mapauã!”, que quer dizer, “Sobe!”. Incentivar os nomes próprios e ensinar também o nome dos animais. Nós temos um livro bom mesmo com todas as histórias importantes do nosso povo. Temos outro livro que tem muitas palavras, quem pegar aquele livro vai ficar prático.

Hoje, os professores novatos têm dificuldade de ensinar a língua indígena na escola porque não aprenderam com os seus pais. Então está acabando de pouco a pouco. Por isso precisava que nós, juntos, tenhamos essa consciência que é uma coisa nossa, nós não podemos perder. Muitas vezes fazemos reuniões e eu falo: “Pessoal, o seguinte, os professores indígenas devem ter o perfil de professor assim como a AMAAIAC[1] tem os critérios para a escolha dos agentes agroflorestais – AAFI. O professor deve ser do mesmo povo, deve valorizar a sua cultura e a sua língua e deve saber falar pelo menos um pouco para que possa ensinar aos alunos. Se ele não ensina as coisas indígenas, ele não está sendo um professor indígena.

Precisamos conversar todos para nos fortalecer, para incentivar a língua de origem e a cultura, que é tudo, o modo de viver, de comer, de dormir, de tomar banho, trabalhar, e assim por diante, então quando falamos de ‘cultura’ inclui tudo o que o índio é. Se eu sou índio e não tenho minha cultura, que começa na minha pintura, no vestuário, e não tenho uma fala que é minha mesmo, então já estou extinto do que é meu.

Se você chegar na minha residência, tenho o meu fogão de lenha, que é pra eu comer assado e tenho o fogão a gás que é da minha companheira não indígena, que ela pode torrar, fazer o café dela pra tomar com leite. Então eu brinco, brincadeira séria, que de tudo um pouquinho eu tenho e sei, eu tenho minha cama e tenho minha rede. Tenho minhas roupas, mas tenho meu fardamento também. E assim por diante. No dia que quero andar calçado, eu vou, quando quero andar descalço, também, porque eu sou índio, ninguém vai dizer que eu tô errado.

[1] Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre

Gestão Ambiental e Territorial

Por aqui na nossa terra indígena alguma madeira que é retirada é de acordo com o nosso regimento. Às vezes as pessoas tiram para fazer uma canoa de meia que é norma nossa, nosso acordo feito no PGTA, que as madeiras tiradas são pro nosso consumo mesmo. Ninguém tira madeira pra vender pra Porto Valter, somente para as nossas construções mesmo.

foto: Paula Lima

Já tiveram muitas tentativas de invasores pra retirada de madeira. Avisamos que queríamos o bem, que não queríamos confrontar com eles, porque era muito perigoso. Nós não vamos sair daqui pra mexer árvore na terra de ninguém e também esperamos ser respeitados. Temos que resolver as coisas de forma legal, não de forma ilegal, queremos paz, harmonia. Não dá pra entrar em agressão com ninguém, mas também não queremos ser prejudicados.

A caça também é utilizada apenas para o consumo. No fundo da terra indígena tem muita caça -porco, veado, paca, tatu, anta. Lá tem mercados mesmo, peixe, caça, imbiara, tem muita abundância. Só que é longe, por isso que a gente não vai muito lá. No passado tinha muita caçada com cachorro, mas depois que fizemos nosso PGTA diminuiu. Caçada com cachorro era uma das coisas mais antigas do índio, pode ver, se chegasse na casa do índio mais antigo mesmo, tinha um cachorro ali, magrinho, cheio de mosquito, mas tinha, já veio de origem. Hoje nós estamos acabando com esse costume e estamos vivendo bem. Se dá pra viver sem criar cachorro pra estar caçando, então que beleza, vamos deixar as caças chegarem mais perto. Mas em alguns lugares, por necessidade, ainda caçam com cachorro, matam paca, tatu, veado, porco, mas é pra sobrevivência, porque não estão conseguindo caçar sozinho com espingarda.

Os peixes que nós mais pescamos aqui são bodó, mandim, às vezes curimatã, dificilmente surubim. Se for no Igarapé ninguém vai de tarrafa, é mais de anzol e pega cará, mandim, traíra. Não temos peixes grandes. Não temos jundiá, pirarucu. Até porque pirarucu é mais no lago e nem lago temos aqui na terra indígena. Temos pequenos igapós que só tem alguns puraqué, aqui na beirada principalmente. Normalmente os igapós todos secam no verão. Acabam todos os peixinhos, morrem todos no seco. Não temos lago aqui.

Nós pescamos mais de tarrafa. Também usávamos bicheiro, mas com a nossa norma de preservar os peixes foi proibido, porque era prejudicial. No verão, o índio vai mesmo igual lontra, pega lá embaixo 4, 5, 6 peixes e aí quando vinha a enxurrada, cadê os peixes pra desovar pro próximo ano ter, né? Esse ano ninguém pescou de bicheira não, pararam porque fomos analisar que não dava certo. Aqui também mariscamos de facho à noite. Tem a zagaia também, foca com lanterna, pega bode, mandim. E pescaria de linha à noite também, coloca o anzol, a isca, e aí pesca surubim, braço de moça que é um tipo de mandim grande. Dessa forma que nós pescamos.

No passado nós mariscávamos de tingui, mas hoje acabou, nem pra colocar bola não tem mais aqui. Eu era plantador de tingui, tinha mais de 30 pés, quando mariscava no Nilo era peixe pra caramba. Aí fomos analisar que matava os pequenos, os grandes, prejudicava os outros, escapava, fugia, então fomos parando de usar.

Sobre agricultura, as técnicas mudaram com as novas técnicas dos companheiros agentes agroflorestais e já estamos seguindo as técnicas ensinadas. Porque no passado a técnica do índio mesmo era só plantar, hoje são as técnicas para as plantas darem mais rápido, mais saudável. Hoje o que plantamos mais é a roça, a banana, mamão, cana. Feijão e arroz dificilmente nós plantamos, é mais a roça mesmo. Todo pai de família tem roçado, porque é o que mais é consumido. Serve pro consumo e serve para a venda também.

A nossa terra é boa mesmo, o que você plantar, ela dá. Agora falta uma criatividade, porque nós somos ricos, às vezes vai olhar e não tem um centavo no bolso, mas nossa terra é rica, porque tudo o que a gente planta dá. Se plantar muito, tem muito, se plantar pouco, tem pouco. Se plantar arroz, vamos ter arroz, se plantar feijão, vamos ter com abundância, sem precisar comprar de fora. Se plantar cana, vamos ter açúcar também. Nossa terra é grande e dá pra plantar, só depende de cada um de nós.

Aqui, esse ano, fizemos 8 roçados já brocados nas capoeiras que é pra gente não desmatar mais a mata nativa. Nosso plano é plantar as frutas já dentro do roçado, porque muitas vezes plantamos só roça e banana, quando tira a roça fica só a banana, aí apodrece ou a irara come. E se plantar as frutíferas, quando tirar toda a roça, tanto a gente pode comer, quanto os animais, e os que der a gente também pode matar pra comer.

Economia

Aqui dentro da terra indígena quase todo mundo é assalariado. Tem muitos professores contratados pelo Estado, agentes de saúde e agentes agroflorestais, tem a bolsa família recebida pelas mulheres, tem o salário maternidade e os aposentados. Aqui dentro, se for analisar, entra muito dinheiro por mês, só que ainda não nos organizamos pra usar esse dinheiro de uma forma melhor sem gastar tudo lá fora. Às vezes compram arroz, feijão, tudo isso daria pra gente produzir aqui dentro. Compram até o cuscuz que é massa de milho, tendo milho aqui dentro, era só comprar o moinho que a gente faria um cuscuz muito melhor do que o lá de fora. Precisamos pensar e ter a criatividade, porque com a nossa renda era pra gente comprar outras coisas que a gente não pudesse ou não soubesse fazer.

foto: acervo CPI-Acre

No passado, não tínhamos salário nem aposentadoria, mas todo mundo comia, bebia e vivia feliz. Hoje, tem uma mudança grande, as pessoas são gananciosas pra ganhar salário. Muitas vezes, as pessoas até esquecem da vida mesmo do indígena de origem, porque às vezes entra só no pensamento do dinheiro, no pensamento de estudar cada vez mais pra aprofundar a língua portuguesa pra poder prestar um concurso e garantir um salário. O dinheiro é bom, ele ajuda, mas se não souber usar ele prejudica também. A gente não pode ter raiva um do outro e, muitas vezes, quando um é beneficiado e o outro não é, aí acha ruim, porque os direitos são iguais e se um tem o direito de receber algum patrimônio ou remuneração, todos têm também. Isso é complicado e vem mudando, não só pro nosso povo Shawãdawa, mas em outras terras a gente também sabe que isso acontece.

Por ter salário e bolsa família, muitos pais de famílias estão deixando de plantar, deixando de criar, pra sobreviver só do pequeno salário que recebe mensal. Isso é uma complicação grande, muitas das vezes por não ter alimentação, banana, macaxeira, não tem nem alegria pra brincar, porque às vezes tem necessidade, tem dinheiro, mas não tem nem uma galinha pra comprar pra comer. Então estamos fazendo o que nesta terra? Tem muita mudança por causa do dinheiro. Temos que prestar atenção, fazer de conta que ninguém tem salário, devemos plantar, criar e continuar na nossa convivência cultural. Esse é um ponto muito importante pra nós.

Já estou pensando que no dia 30 vou pra Porto Walter, tô quase me acostumando. De primeiro, pra eu ir pra Porto Walter passava anos e anos, hoje não, temos que ir todo mês pra receber o salário. É uma mudança que a gente às vezes nem percebe. Quase todo mundo aqui dentro não tem um mês que não vai à cidade Porto Walter e hoje tem várias famílias que moram lá.

Projeto de Futuro

O nosso projeto de futuro é ter uma vida saudável, com muita plantação, criação, alegria, consciência, calma, assumindo nossos compromissos, porque Deus deu o poder para cada um de nós e as coisas estão entregues em nossas mãos. Creio que precisamos fazer a nossa contrapartida e as entidades, ongs, município estão nos ajudando, então o que precisamos é nós mesmos colocar a mão na massa e fazer as coisas para vivermos com tranquilidade.

foto: Paula Lima

Nossa terra está demarcada, temos nossa casa boa, daqui a dez anos queremos ter uma educação com mais qualidade, com os professores mais qualificados, com mais informação, capacitação, agentes de saúde e agroflorestais formados também, com muitos aliados pra fazer os trabalhos de plantio e de reflorestamento que forem necessários. Aí vai ser só fruta caindo e nós comendo e bebendo e cantando mariri…

Sabemos que tem muitas coisas rodando no mundo inteiro, como dizem, tá global, a gente escuta e vê pelo jornal, através da mídia, as mudanças climáticas, tantas guerras, doenças, brigas entre os parlamentares mesmo, e nós não queremos ser afetados com as guerras dos grandão, não. No meio dos maiores, nós populações indígenas somos os menores.

Espero também que ninguém venha perturbar nós, que nenhum parlamentar venha querer tirar nossa terra, porque daí nós não vamos morrer de bala não, vamos morrer é de raiva, de desgosto, pega depressão e quando dá fé, morre. Queremos viver em paz, já fomos judiados, massacrados, nossos parentes. Ainda hoje tem discriminação, preconceito.

Daqui a dez anos nós queremos as nossas terras do mesmo tamanho, sem ter sido mexida por ninguém não indígena, os nossos rios com a água boa, nossa floresta em pé do jeito que está, com as nossas medicinas, e com a nossa organização e sabedoria mais avançadas. Queremos estar vivendo dessa mesma forma daqui a dez anos. Por isso que é bom a gente lembrar pros não indígenas que a nossa vida, a vida do índio, não é pensar em ser empresário, ter grandes fazendas, avião, carro e etc. A vida do índio é a saúde, a barriga cheia, ter sua terra, sua água de qualidade e a floresta pra ele ter uma respiração boa e sobreviver dela. Então isso é preciso, as pessoas que querem desmatar, não façam mais isso, porque está judiando da floresta e nós também somos afetados.

A Constituição de 88 assegurou muitos direitos para nós. Assegurou que cada povo, cada etnia pudesse ter a sua língua de origem com a sua educação específica indígena, diferenciada, como também a saúde e até a nossa própria organização interna, porque ela é feita de acordo com nosso cotidiano, com a nossa convivência. Assim nós achamos que podemos viver bem. Mesmo que aqui e acolá tenha alguma interferência, mas a Constituição assegurou tudo isso até hoje. Se mudarem vai ficar complicado. Por isso que precisamos ter muito cuidado, muito cuidado!

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