Por Leilane Marinho
Um Plano de Gestão Integrada entre as Terras Indígenas (TIs) Kaxinawá do Rio Jordão e Kaxinawá do Baixo Rio Jordão – abrangendo também a TI Seringal Independência – com a Reserva Extrativista (Resex) Alto Tarauacá, no estado do Acre, está sendo construído por indígenas Huni Kuĩ e comunitários da Resex, com o objetivo de ampliar e fortalecer ações conjuntas para conservação de 280.789 hectares de áreas protegidas.
Em fevereiro deste ano, a Oficina de Gestão Territorial Integrada, realizada na aldeia São Joaquim, TI Kaxinawá do Baixo Rio Jordão, reuniu 60 pessoas, entre indígenas das TIs Kaxinawá do Rio Jordão e Kaxinawá Baixo Rio Jordão e moradores das comunidades extrativistas Boa Vista, Duas Nações e Massapê – Resex Alto Tarauacá, para discutir a gestão territorial, intercambiar conhecimentos e construir soluções que farão parte do Plano. Participaram da atividade representantes da Associação dos Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão (ASKARJ) e Associação Huni Kuĩ Daya, ambas do Jordão.
A oficina é a continuidade de uma série de ações sobre gestão integrada na região dos rios Jordão e Tarauacá, que vem sendo realizadas com apoio da Comissão Pró-Indígenas (CPI-Acre) desde 2018 e que, nos últimos anos, estão inseridas no Projeto Aliança entre Indígenas e Extrativistas pela Floresta do Acre, executado pelo consórcio entre a CPI-Acre, SOS Amazônia e Instituto Catitu, e financiado pela Rainforest Foundation Norway (RFN).
Nesse contexto, a CPI-Acre desenvolve, junto com as organizações indígenas, ações voltadas à construção de estratégias de conservação e uso sustentável do território, enquanto a SOS Amazônia tem trabalhado com o manejo sustentável dos recursos naturais, promovendo formações e fortalecendo a governança comunitária, ambas visando garantir a gestão integrada dos territórios indígenas, extrativistas e ribeirinhos.
O Projeto Aliança entre Indígenas e Extrativistas pela Floresta do Acre busca, em resumo, o fortalecimento político de lideranças e organizações indígenas e extrativistas, além do manejo ambiental e territorial por meio de oficinas sobre práticas sustentáveis, hortas comunitárias, turismo de base comunitária e vigilância territorial, e promove a segurança alimentar, a recuperação de áreas degradadas e o incentivo à equidade de gênero, juventude e cultura dos povos da floresta. A formulação de um Plano de Gestão Integrada para três terras indígenas do Jordão e para a Resex Alto Tarauacá busca atender diretamente uma população de 11 mil pessoas, cuja subsistência depende da manutenção dos ecossistemas e da valorização dos conhecimentos tradicionais.
Entre 2023 e 2024, diversas atividades foram realizadas para estruturar esse processo. Destacam-se a realização de agendas públicas interministerial em Brasília, que reuniu indígenas e extrativistas do Acre para discutir políticas públicas com foco nas áreas de proteção e gestão territorial, soberania alimentar e clima. No Jordão foram realizados cursos de Políticas Públicas para Gestão Integrada e a Oficina de Planejamento do Modelo de Gestão Integrada. Além disso, na Resex Alto Tarauacá, ocorreram encontros para a validação do plano de gestão integrada nas comunidades Alagoas, Jaminawa e Duas Nações.
Oficina discute gestão e clima
Durante uma semana (30 de janeiro a 5 de fevereiro) os indígenas e extrativistas aprofundaram o debate sobre o Plano de Gestão Integrada, e refletiram sobre o uso de geotecnologias no monitoramento dos Sistemas Agroflorestais (SAFs), o manejo dos recursos naturais e avaliaram os desafios impostos pelas mudanças climáticas. Outro assunto discutido foi a necessidade de fortalecer a representatividade do Conselho Gestor da Resex Alto Tarauacá, e a retomada dos esforços para criação do Conselho de Gestão Integrada entre Resex e Terras Indígenas. “O Conselho Gestor se torna um instrumento com mais potência para as autoridades. Se é só o seringueiro ou só o indígena, as instituições não olham”, ressalta Manoel Francisco da Silva, conhecido como Nego Brás, da comunidade Boa Vista.
A previsão é que em outubro seja realizada mais uma Oficina de Gestão Territorial Integrada, quando será validado o Plano de Gestão Integrada das TIs Kaxinawá do Rio Jordão, Kaxinawá do Baixo Rio Jordão e Seringal Independência com a Reserva Extrativista (Resex) Alto Tarauacá. “O planejamento e a atividade são muito importantes. Primeiro, reunir, unir e pensar junto, envolvendo a juventude. É isso que garante a proteção da nossa terra, da nossa floresta. Ninguém vem de fora para nos organizar e plantar as frutas. Somos nós mesmos que plantamos e organizamos a nossa floresta, trabalhando em parceria com a Resex e os povos indígenas”, afirmou Vivilino Kaxinawa, liderança da Aldeia São Joaquim, durante a oficina.
- Apresentação dos mapas na Oficina de Gestão Integrada. (foto: Branca Medina)
- Oficina reuniu indígenas e extrativistas na aldeia São Joaquim (foto: Branca Medina))
- Oficina reuniu indígenas e extrativistas na aldeia São Joaquim (foto: Branca Medina)
- Prática com aplicativo Avenza Maps (foto: Branca Medina)
Um dos temas centrais da oficina foi as contribuições do monitoramento georreferenciado dos quintais e Sistemas Agroflorestais (SAFs) para a segurança alimentar das comunidades indígenas, e como essas práticas podem ser replicadas nas Resex. Foram apresentados mapas com a diversidade de espécies plantadas e o tamanho das áreas de plantio nas TIs do Jordão. As mensurações realizadas pelos AAFIs em parceria com a CPI-Acre já registraram um total de 158 plantios em 21 aldeias, somando 165,29 hectares de SAFs presentes nas TIs Kaxinawá do Rio Jordão, Kaxinawá do Baixo Rio Jordão e Seringal Independência.
Na atividade prática com o aplicativo de celular Avenza Maps, utilizado para produzir mapas e mensurar as áreas de SAFs, os extrativistas e indígenas, apoiados pelos AAFIs, conheceram algumas funcionalidades dessa tecnologia, como por exemplo, a possibilidade de medir a distância dos plantios e quintais agroflorestais das áreas suscetíveis a alagações. Nas terras indígenas do Jordão, boa parte dos SAFs foi iniciada nos anos 90 às margens do Rio Jordão. São áreas bem manejadas, produtivas, com boa diversidade de frutas, e que agora estão vulnerabilizadas devido aos eventos climáticos extremos como alagamentos e secas que destroem plantações. No Jordão, os indígenas têm buscado minimizar os impactos das mudanças climáticas sobre a produção de alimentos com estratégias de adaptação que vão desde o deslocamento dos plantios para terras altas, reduzindo a vulnerabilidade a inundações, a implementação de sistemas hidráulico-solares para abastecimento de áreas mais elevadas das aldeias, o que ainda reque apoio.
“Quando cheguei na aldeia, eu não sabia que a água ‘passava por cima’ no tempo das chuvas. Comecei a plantar feijão, macaxeira, manga, açaí, cacau e beribá. Em 2015 comecei a plantar as mudas com os alunos da escola. Foi naquele ano que deu a primeira alagação e eu pensei: “não está dando”. Quando foi em 2024 cobriu tudo. Perdi metade do meu SAF, minha casa, meus galinheiros, minhas ferramentas de plantio, lixadeira e motoserra. Um pessoal teve que me resgatar de barco. Morreu coco, abacate e tudo [as plantas] o que não gosta de água. Apodreceu o cupuaçu com três dias debaixo d’água. A água levou também duzentas mudas de pupunha e açaí. Agora eu mudei minha casa, estou abrindo um SAF na terra firme. Estou plantando mudas de banana do último ponto onde veio a alagação até para longe”, explica o agente agroflorestal Raimundo Paulo Ixã, da Aldeia São Joaquim, TI Kaxinawá do Baixo Rio Jordão.
Tanto das aldeias quanto das comunidades extrativistas os relatos são de famílias mudando suas moradias e buscando locais mais seguros para plantar. Com isso, também foi destacada na oficina a necessidade de planejar ações de adaptação às mudanças climáticas . “Temos a maior dificuldade de acesso a água, porque, já que a água subiu, a nossa ocupação está mais para adiante e os roçados ficaram mais longe. E a água tem que ser carregada no balde e de muito longe. Durante meus 50, e os 77 anos do meu pai, aqui, eu nunca tinha visto uma alagação como essa de 2024”, conta Valdeir, agricultor da Comunidade Boa Vista.
A professora da comunidade Massapê, na Resex Alto Taraucá, Antônia Lucileide, também citou os impactos das mudanças climáticas na Resex. “Para lá o rio é maior, muitas famílias perderam tudo com a alagação. Depois, com a estiagem que passou, a gente teve que arrastar barco para chegar nas escolas, na comunidade Jaminawá. Por isso acho importante trabalhar estes temas das mudanças climáticas nas escolas, inclusive usando as geotecnologias”, concluiu.
Proteção conjunta
Além de atividades ilegais como caça, pesca, extração de madeira, preocupações como invasões para criação de pastagem, queimadas e a presença de pessoas estranhas, vêm impactando as três TIs do Jordão. Essas pressões ficam ainda mais evidentes quando olhamos para os limites das TIs. No gráfico apresentado a seguir, temos a variação do desmatamento no entorno das Terras Indígenas Kaxinawá do Rio Jordão, Kaxinawá do Baixo Rio Jordão e Kaxinawá do Seringal Independência ao longo dos anos. Nota-se um crescimento significativo da área desmatada a partir de 2018, com picos em 2019, 2022 e uma redução em 2023. Esse aumento evidencia a crescente pressão sobre os territórios indígenas e reforça a necessidade de estratégias de conservação mais eficazes.
Um Plano de Gestão Integrada representa um avanço significativo na consolidação da governança local dos territórios, fortalecendo as alianças entre os indígenas Huni Kuĩ e os comunitários da Resex Alto Tarauacá. Os espaços de articulação e as ações concretas desenvolvidas ao longo dos últimos anos não apenas reforçam esses laços, mas também preparam as comunidades para assumirem um papel ativo na proteção de seus territórios frente aos desafios socioambientais. Além de promover a preservação dos modos de vida tradicionais e dos recursos naturais, essa abordagem contribui com a garantia de direitos, influencia políticas públicas e amplia a autonomia dessas populações na gestão de seus territórios.

Fonte: Segeo/CPI-Acre
*Leilane Marinho é assessora de comunicação da CPI-Acre