Francisco Avelino Batista, o Chico Preto, conhecida liderança do povo Apurinã, explica, em entrevista à equipe da Comissão Pró-Índio do Acre, como a atual crise política brasileira coloca em risco os direitos fundamentais e todas as políticas públicas conquistadas pelas populações indígenas do país nas últimas décadas.
Nascido na Terra indígena Água Preta/Inari, no município de Pauini, estado do Amazonas, envolveu-se no movimento indígena da região ainda jovem. Atualmente, aos 58 anos, foi eleito o conselheiro titular que representa os povos indígenas do Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia, no Conselho Nacional de Política indigenista (CNPI). “O Conselho foi uma conquista nossa, uma luta que começou em 96 para dar unidade ao debate com o governo”, conta Chico, que atuou por oito anos na comissão que antecedeu ao Conselho criado em dezembro do ano passado.
Para ele, não foi por acaso que a medida provisória do dia 12 de maio, editada pelo Presidente interino Michel Temer, a fim de reestruturar a administração pública federal, não menciona a existência do Conselho, e nem da Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão que implementa a política indigenista brasileira. “Eles estão no comando agora com força total”, fala referindo-se à influência que a bancada ruralista do Congresso Nacional exerce sobre o Executivo para acabar com as legislações e políticas indigenistas.
A liderança Apurinã, que atua como auxiliar de Mobilização Política Social do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Purus, em Rio Branco, conta também que está preocupado com a situação da Secretaria Especial de Saúde Indígena, que opera desde o início de 2016 sem planejamento e orçamento, e está ameaçado de ser extinto.
Ao final da entrevista, Chico Preto convida a todas lideranças indígenas do Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia a participar de um encontro, que acontecerá nos próximos dias 28 e 29, no Centro de Formação dos Povos da Floresta, em Rio Branco, e que tem entre os seus objetivos avaliar a atual conjunta política e seus reflexos no Acre: “As várias associações e organizações precisam conversar, precisam se entender e saber o que está acontecendo para se definir uma nova estratégia de luta e um novo horizonte para as futuras gerações”.
Como foi o processo de conquista dos direitos indígenas no Brasil, tão ameaçados hoje?
Chico Preto – A gente tem discutido sobre dois momentos: o da ditadura militar, onde não tínhamos oportunidade de fazer nossas articulações e nem de reivindicar nossos direitos. A gente saía escondido, éramos perseguidos pela própria Funai, não tínhamos liberdade. É importante lembrar o contexto da época. A Comissão Pró-Índio do Acre e o CIMI faziam as articulações, foram muito importantes para as nossas conquistas. E o segundo momento, a partir de 1988, com a Constituição e os seus artigos 231 e 232. Foi a primeira Constituição a assegurar o direito dos povos indígenas. A partir daí surgem outras legislações, a educação e a saúde indígena, e a conquista das políticas públicas diferenciadas, que hoje sabemos que de diferenciada ainda está distante. Também se avançou na demarcação das terras indígenas a partir dos anos 90. Lembrando que foram feitas com o apoio da cooperação internacional. Historicamente, demarcação nunca foi prioridade do governo. Também se avançou nos estados. No Acre temos hoje a Assessoria Indígena e coordenações em outras secretarias
Quando esse cenário começa a mudar?
Chico Preto – A partir de 2011, 2012 a história começa a mudar. Vem a mudança no Código Florestal e começa a ficar claro que em seguida seria o nosso direito que estaria ameaçado com essa nova política dos grandes empreendimentos para a construção de rodovias e hidrelétricas. A gente percebeu que queriam mudar a legislação que assegura o nosso direito. A partir daí começamos a travar uma discussão bastante difícil no congresso, que hoje a gente dá o nome de ruralista. E quem são os ruralistas? São os que plantam soja, cana, milho, que exploram madeira, que criam gado. Esse povo se organizou de tal forma que conseguiram colocar a maior bancada no congresso nacional.
O que muda partir desse momento?
Chico Preto – A partir daí começam as propostas de flexibilização da legislação, como a Portaria 419, reeditada em 2015 sob o número 60, e que diminui o prazo para que órgãos públicos, como a Funai, apresentem seus pareceres nos processos de licenciamento ambiental de empreendimentos de infraestrutura que atingem terras indígenas. Ou seja, se a Funai não apresentar em até 90 dias, eles avançam o empreendimento. Tem também a Portaria 303, emitida pela Advocacia Geral da União, que nada mais é do que generalizar para todas as terras indígenas do Brasil as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Mas a coisa que mais preocupou a gente foi essa questão do marco temporal.
Explique o que é o marco temporal
Chico Preto – No entendimento do Supremo Tribunal Federal, por pressão dos ruralistas, serão consideradas terras tradicionais aquelas que estiverem sob posse dos indígenas na data de 5 de outubro de 1988. Ou seja, aquelas terras onde o parente chegou depois de 88 não são consideradas terra indígenas. Esse é o marco temporal, que é muito perigoso. E esse argumento já foi utilizado em pelo menos duas ocasiões pela Segunda Turma do Supremo, para anular a demarcação das TIs Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, e Limão Verde, do povo Terena, ambas no Mato Grosso do Sul. Isso é muito preocupante para a gente.
A tese do “marco temporal” foi incorporada ao relatório da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, outra ameaça aos direitos indígenas, não é?
Chico Preto – A PEC 215 transfere a responsabilidade da demarcação da Funai para o Congresso. Se for aprovada qualquer demarcação de terra indígena tem que ser feita por projeto de lei, para ir para o congresso e aí eles aprovarem. Só que a gente sabe que eles não vão fazer nada pela demarcação das terras. A PEC 215 nada mais é do que para paralisar todo os processos de demarcação e também rever aquelas terras que eles chamam de terra grande, que questionam que é muita terra para pouco índio. Isso é o que eles, os ruralistas, discutem há muito tempo.
Como esse cenário de ameaças foi agravado, após o afastamento da Presidente Dilma Rousseff?
Chico Preto – Depois que a presidente Dilma saiu, os ruralistas ficaram com força total. E a gente tem que se mobilizar. A gente tem que expressar a nossa preocupação. Uma medida provisória, editada no dia 12 de maio, apresenta uma nova estrutura do governo deixando de fora o CNPI e a Funai. Ninguém sabe onde está a Funai, não aparece na nova estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania Isso foi por acaso? A gente pensa que foi proposital. Essa conjuntura política do Brasil não está fácil para os povos indígenas, mas também para os trabalhadores rurais, para os quilombolas. E a gente não tem condições de fazer esse embate sozinhos. Tivemos que nos articular com os quilombolas, com Via Campesina e outros para fazer esse enfrentamento. Por isso que a PEC 215 e a Portaria 303 ainda não foram aprovadas, foi uma articulação forte. Mas que precisa ser potencializada no contexto internacional. O que a gente tem feito é pouco. Temos que ter uma estratégia para levar a nossa preocupação para uma estância internacional.
O que tem sido feito para enfrentar essa situação?
Chico Preto – No ano passado foi realizada a Conferência Nacional de Política Indigenista. Foram feitas várias discussões sobre formação em gestão territorial e ambiental, também se avançou em alguns projetos. Mas o objetivo da conferência foi fazer um debate e uma avaliação desse contexto ameaçador para que pudéssemos tirar os encaminhamentos para gerar uma agenda de discussão com governo. A conferência deixou uma agenda importante a ser discutida diante da ameaça que continua fortemente.
O que os povos indígenas esperam desse novo governo provisório do Temer?
Chico preto – Eles (ruralistas) estão no comando agora com força total, e é essa a nossa preocupação. Para o embate, temos a Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas, que tem ajudado, mas são poucos. Fizemos uma avaliação, temos 80 aliados entre 513 deputados. Todos os projetos que quiserem aprovar eles aprovam de fato. Esse governo a gente conhece não é de agora. O PMDB vem do MDB, a gente conhece eles historicamente. O governo Temer ao assumir faz uma mudança radical com relação aos direitos dos trabalhadores, não é só a questão indígena que está em jogo. Então a gente não espera nada desse governo, só as piores coisas em relação aos direitos dos povos indígenas de todo o país.
E como os povos indígenas do Acre estão se organizando para enfrentar essa situação?
Chico Preto – Durante a realização da Conferência Nacional de Política Indigenista aqui no Acre a gente trabalhou e discutiu muito sobre a necessidade de fortalecer o movimento indígena de todo o Brasil, o movimento indígena do Acre, a política indigenista, e o próprio órgão indigenista, a Funai. Aqui no Acre a gente precisa trabalhar mais esse fortalecimento. As várias associações e organizações que existem precisam conversar, precisam se entender e saber o que está acontecendo para se definir uma nova estratégia de luta e um novo horizonte para as futuras gerações. Nós precisamos nos fortalecer e estou à disposição para que isso venha a acontecer.
E como está a situação da Funai hoje?
Chico Preto- O órgão indigenista está sofrendo muitas consequências. O Ministério da Justiça encaminhou pra Funai um corte de 13% dos cargos comissionados. Para uma instituição que está precisando de funcionários e de mais estrutura, isso a coloca em uma situação pior, sem condições de trabalho. Também estão perseguindo a instituição. A CPI da FUNAI nada mais é do que encontrar alguma falha para desqualificar os procedimentos de demarcação no Brasil. No dia 10 de junho, novo Ministério da Justiça e Cidadania publicou uma portaria que paralisa o funcionamento das áreas do ministério por 90 dias, exceto as ligadas à Policia Federal e à segurança das Olimpíadas. Isso vai atingir diretamente a Funai, que vai ficar três meses paralisadas. E a gente sabe que de julho em diante começa a campanha eleitoral, aí que não acontece mais nada mesmo até o final do ano. Então é essa a situação da Funai hoje.
E essa portaria também afeta o funcionamento do CNPI?
Chico Preto – O conselho indigenista foi uma conquista nossa, uma luta que começou em 96 para dar uma unidade ao debate com governo. Naquela época estava ruim, mas a gente conversava com o presidente Lula. Ele deu uma visão diferente: os povos indígenas e o governo discutindo. Mas agora com essa portaria de cortes para realização de atividades, de reuniões pelo Ministro da Justiça, a preocupação é que esse conselho não vai ter condições para funcionar. Agora está tudo paralisado, vai prejudicar totalmente as ações do Conselho porque existe um planejamento e várias reuniões a serem feitas, inclusive para definir uma agenda para fazer o enfrentamento contra tudo o que está nos ameaçando hoje. Estava prevista uma reunião do conselho para o começo de julho. Se não acontecer a reunião não tem como definir as nossas estratégias. Estão nos desmobilizando, esse é o nosso entendimento.
E Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), como fica agora a sua implementação?
Chico Preto – Na PNGATI tinham algumas ações evoluindo. Foi definido um Plano Integrado de implementação da PNGATI, onde todos os Ministérios apresentaram as suas atividades e orçamentos. Estávamos trabalhando na publicação de um livro dessas ações que é para facilitar o monitoramento da política, cobrar a sua implementação e orçamento, buscar apoio Internacional e interno, no governo, no Tesouro Nacional. Estava prevista uma reunião para discutir a publicação, mas não sei se ela vai acontecer porque o Ministério do Desenvolvimento Agrário, e outros ministérios que participavam, já foram extintos. Como vamos publicar o livro agora? Então fica uma situação delicada, pois não podemos contar com as ações que estavam previstas porque não existem nem mais os ministérios.
Qual é a situação da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e o que pode piorar?
Chico Preto – A saúde indígena foi uma conquista nossa também, onde primeiro a gente vivenciou toda a nossa fragilidade, assumindo o papel do governo sem ter experiência, sem condições, sem estrutura suficiente. Várias lideranças foram criminalizadas e várias associações se acabaram. Então foi pensada uma nova estrutura que hoje é a SESAI, que está funcionando, mas que está ameaçada de extinção também neste governo. Assim como outras estruturas foram extintas ela pode ser também. Espero que não, apesar de todas as dificuldades de manter equipe por mais tempo nas aldeias e com estrutura insuficiente e inadequada a realidade de cada região. Hoje nós estamos numa situação bem delicada. Porque o plano de 2012 e 2015 já se encerrou, e nós já estamos terminando junho e a SESAI ainda não chamou os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) para pactuar o Plano Distrital de 2016 a 2019. É complicado, uma preocupação muito grande e todos nós estamos sofrendo.
Qual é sua a mensagem para os povos indígenas do Acre e para o governo?
Chico preto- Temos que estar fortes, cada vez mais olhando para a nossa geração e as gerações futuras. Para garantir o direito que a gente conquistou e para o que a gente pode melhorar, pode conquistar mais nas políticas públicas. Não podemos perder de vista a estrutura que nós já conquistamos que são nossas associações e organizações. E que a gente não esqueça também dos nossos parceiros. Se não fossem os nossos parceiros, só com governo, não andava não. Mas agora a gente tem que conseguir fortalecer a unidade. A união é a força de tudo nessa vida, mas principalmente nesse momento.
Coordenadora de Comunicação da CPI/AC