Eu sou do Povo Shanenawa, me chamo Eldo Carlos Gomes. Atualmente sou acadêmico do Curso de Pedagogia, cursando o 3º módulo. Sou vice-coordenador da Organização dos Professores Indígenas do Acre – OPIAC.
Falar das culturas indígenas é falar dos nossos povos, das nossas ancestralidades. É falar das nossas vidas, das nossas espiritualidades, das nossas alegrias, da nossa saúde e felicidade, das nossas dietas, das nossas alimentações e culinárias, dos nossos mitos, das nossas bebidas, das nossas brincadeiras, das nossas pescarias, das nossas caças, das nossas danças, do nosso rapé, dos nossos chás sagrados, dos nossos cocás, dos nossos colares, de todos os nossos conhecimentos, o modo de unir, agir, organizar, festejar, realizar, acreditar,falar, mostrar sobre os nossos valores e a importâncias deles para as nossas vidas dos povos indígenas.
Desde o passado até os dias atuais temos sido muito resistentes para alcançar nossos sonhos e conquistas, mas também para enfrentar nossos desafios. Nós sofremos muitas violências culturais vindas dos não indígenas. Um dos motivos é a falta de conhecimentos sobre nossas realidades, com isso as maiorias dos povos foram extintos. Ainda assim, com luta, sofrimento e coragem conseguiram continuar vivos e ser reconhecidos pelos nossos valores e direitos reconhecidos pela Constituição Federal de 1988.
Hoje em dia, nós indígenas, falamos com nossos próprios conhecimentos e nossas próprias línguas indígenas. Somos resistentes e muito corajosos em lutar pelos nossos direitos, cumprir nossos deveres, para preservar as nossas vidas. Restamos aqui no Acre quinze povos indígenas diferentes e ainda os povos isolados ou sem contato.

Mantemos ainda hoje nossa resistência cultural com os conhecimentos tradicionais, costumes, crenças. Vou mostrar alguns exemplos: meu povo até hoje se guia muito pela Lua. Para nós quando vemos os primeiros dias de Lua nova e estamos em pé, é sinal que muita coisa boa vai acontecer. É sinal de boa sorte. Pode esperar que o que você desejar vai ser realizado. Por isso, na surpresa da noite, ao ver a Lua nova fazemos vários pedidos. Mas não é só ver de qualquer jeito, em qualquer posição. Tem um conhecimento próprio que é só nosso, do Povo Shanenawa. Por isso a gente comemora e agradece. As mulheres são as que mantêm essa tradição bem viva ainda.
Sabemos também quando vai ser um mês de verão, ou um mês de chuva, observando a posição da Lua nova. Observar o tempo através da natureza é importante para nós, porque está relacionado com a produção da alimentação de cada dia.
Ainda mantivemos até os dias de hoje a exposição cultural em nosso pensamento, corpo, e nossos espíritos, que nos ensinam o modo de ser e de viver.
Quero ressaltar também que para falar das culturas indígenas não tem ninguém melhor que os próprios indígenas. Nós que sabemos expor ou falar de nossos próprios conhecimentos. As pessoas não indígenas, que estudaram profundamente sobre os conhecimentos de um povo indígena, de maneira nenhuma vão saber diferenciar, identificar, como cada povo se organiza, o que produz, o que usam, por que e para que usam determinadas ervas medicinais, vestimentas, instrumentos de trabalho; qual a maneira de fabricar canoas, construir casas, artesanato e assim por diante.
Estudar o porquê das práticas culturais de um, ou de vários povos e quais são seus significados, é uma contribuição para a sociedade não indígena. Mas, por mais que estudiosos não indígenas se aprofundem, somos nós os verdadeiros especialistas sobre nossas culturas.
Nós, povos indígenas, não somos todos iguais. Nós somos todos diferentes. Sabemos que os povos indígenas são comparados genericamente pelos não indígenas, como se fossemos iguais. Por mais parecidos que sejamos não somos iguais uns aos outros; nenhum povo faz o que o outro faz de um jeito igualzinho. As práticas culturais são parecidas entre os povos da mesma família lingüística, mas ainda assim tem as diferenças. Por exemplo: a história do “Quatipuru Roxo”, ou “Quatipuru Encantado”. Ele casou com uma mulher e não queria que ninguém da família dela o acompanhasse ao roçado. Para ele no dia que uma pessoa o acompanhasse ia diminuir a fartura e as espécies do roçado dele. Por curiosidade, o sogro dele foi saber o motivo. Aí o sogro descobriu que era porque ele, quatipuru, chamava todos os bichos para lhe ajudar. Ele era o chefe dos animais, apesar de ser pequeno. Bem, o Quatipuru descobriu que o sogro dele estava ali escondido e falou: “ Você não cumpriu o que te falei e agora nós vamos passar dificuldades.” Foi aí que começou a diminuir a abundância. Daí pra cá começou a ter dificuldade. E isso foi por quê? Porque os conhecimentos e códigos dos ensinamentos devem ser respeitados. Já a mesma história do “Quatipuru Encantado” para os parentes Shawãdawa, é um pouco diferente. Para eles a personagem é mulher, a sogra do Quatipuru e não o sogro. Também para eles é a fartura nos roçados e pesca; já para nós é da agricultura.
Mesmo com nossos conhecimentos e sentimentos, vejo que ainda somos invisíveis perante as leis, perante as autoridades. Muitas autoridades brincam com a gente com se a gente fosse uma arte de museu. Como se fôssemos infantis. Por sermos culturalmente diferentes sofremos bastante preconceito. Dizem que nós, povos indígenas, não temos valores, não geramos economias para os estados e para o país. Eu pergunto: “mais economia?” Nós preservamos as florestas, os rios, os animais, os recursos naturais de modo geral. Isso é o que garante a sustentabilidade de alimentação e a sobrevivência dos nossos povos e de todos os outros povos, para todas as gerações. Os recursos naturais é que geram o funcionamento da maior parte da economia no país. O que praticamos e preservamos até os dias de hoje, não há dinheiro no mundo que pague. Nós, povos indígenas, prestamos uma grande contribuição no desenvolvimento das vidas dos seres vivos do planeta.
A nossa cultura é a nossa economia também. São as nossas visões, são as nossas riquezas que os nossos antepassados nos ensinaram a respeitar. Respeitamos todos os seres vivos da terra. Sabemos usar a água, o ar, o fogo, a floresta. Sabemos extrair da natureza com bastante respeito. Se não extrair com respeito, uns com os outros, nós podemos acabar com a natureza, mas sabemos que ela também pode acabar com a gente!
É nesse aspecto que os nossos conhecimentos e práticas culturais são importantes para vivermos. Nossos trabalhos e nossos modos de viver, de acordo com nossos conhecimentos, são muitos valiosos para a vida no planeta, não somente para nós indígenas.
A nossa cultura nos fortalece. Mas muita coisa ainda nos atormenta. Nós só vamos ter paz quando prevalecer o respeito às nossas culturas e diferenças. Quando a Lei 11.645 for aplicada corretamente nas escolas de todo o Brasil. Quando nossos conhecimentos não forem patenteados; quando todas as Terras Indígenas forem demarcadas e ampliadas; quando a nossa educação diferenciada e a categoria professor indígena tiver sido criada no Acre. Assim também a escola indígena. Vamos ter paz quando a categoria de agente agroflorestal for reconhecida e os AAFIs tenham pagamento permanente; quando a saúde indígena for respeitada e nossas ervas medicinais reconhecidas de acordo com uso de cada povo.
Essa é a mensagem que deixo para os senhores e senhoras leitores, todas as autoridades e todos os amigos de todas as classes sociais para que possam nos ver de forma humana e humilde, entender que somos diferentes, mas nem melhor, nem pior uns aos outros. Minha mensagem é também dizer que lutamos para que os nossos direitos sejam mantidos de acordo com a Constituição Federal de 1988.