A Constituição Federal do Brasil de 1988, no seu artigo 231, reconheceu aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Em seu artigo 210, assegurou também às comunidades indígenas o uso de seus processos próprios de aprendizagem. Compete ao Estado, além de demarcar e proteger os territórios indígenas, garantir o direito a uma educação escolar própria e de qualidade e com um sistema específico com suas regras, modelos e definições.
Por isso, hoje, as escolas indígenas devem ser públicas, plurais, oficiais, reconhecidas e com financiamento específico. As comunidades também deveriam ter o direito de construir suas propostas de escola, seguindo os seus princípios, suas identidades e suas práticas educativas, como a legislação assegura. No entanto, a sua inclusão nos sistemas de gestão escolar no âmbito federal, estadual e municipal não atende às especificidades da educação escolar indígena de fato, exigindo cada vez mais a mudança desse próprio sistema.
Mas a Educação Escolar Indígena no Acre começou muito antes da Constituição de 1988, quando líderes indígenas iniciaram uma discussão sobre como ter professores indígenas em suas comunidades que atendessem as escolas diferenciadas. Naquela época tinham que ser professores que falassem suas línguas indígenas, que conhecessem e valorizassem seus conhecimentos tradicionais e que ajudassem os projetos nas comunidades. Isso aconteceu nos anos de 1980 em plena luta pela demarcação das terras indígenas.
Os professores indígenas então tiveram cursos de formação no Centro de Formação dos Povos da Floresta da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), de 1983 até 2008, e concluíram o Magistério Indígena por estes cursos. Depois, 42 professores de 13 povos ingressaram na Universidade Federal do Acre (UFAC), no Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul.
Em 1997, os professores criaram uma “Comissão de Professores” para defender os interesses da educação junto aos governos e ONGs indigenistas. Em 2000, a comissão passou a ser chamada de Organização dos Professores Indígenas no Acre (OPIAC). O objetivo da OPIAC é representar os povos indígenas na defesa das suas ideias sobre educação e aprendizagem, que são baseadas na valorização da cultura tradicional, e na relação permanente com a proteção e a gestão ambiental dos seus territórios. Estas ideias são defendidas em todas as instâncias da educação pública, locais, estaduais, nacionais e internacionais.
Tivemos avanços que devem permanecer, mas por outro lado observamos muitas fragilidades em nossas aldeias. Quando a OPIAC realiza as suas oficinas de sensibilização nas terras indígenas podemos ver como está a situação da educação nas aldeias. Nesses momentos atualizamos as discussões sobre educação, participamos da criação dos acordos e fortalecemos as regras para o funcionamento das escolas. Também observamos e discutimos sobre a aprendizagem dos alunos e atualizamos o papel da escola indígena no momento atual. A ideia é valorizar a participação das comunidades na escola. Quando voltamos das aldeias podemos orientar as políticas públicas de educação.
Diretoria da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) – Foto: Josias Maná Kaxinawá
Diretoria da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) – Foto: Josias Maná Kaxinawá
A educação escolar indígena, intercultural, bilíngue, específica e diferenciada, nem é mais e nem é menos do que a educação não indígena. É diferente. É entender o nosso mundo, o mundo dos povos indígenas, e também o mundo dos não indígenas. Para andarmos juntos no conhecimento e seguirmos de igual para igual. A educação escolar indígena é o professor indígena cumprindo seus deveres, sabendo lidar com os seus alunos de acordo com a realidade de cada povo, pesquisando e apoiando os alunos para assegurar os nossos territórios e os nossos direitos.
Algumas conquistas
Hoje, no estado do Acre, são 628 professores indígenas, 201 escolas indígenas e 7637 alunos. Desses 628 professores, 120 têm formação em educação superior, sendo que 49 são formados em Licenciaturas Indígenas na UFAC. Temos também dois mestres e um doutor, Joaquim Paulo de Lima Kaxinawá, formados em línguas indígenas pela Universidade de Brasília. Muitos desses professores são os coordenadores de ensino pedagógico que atuam nos municípios.
Tivemos, em 1992, o primeiro concurso público diferenciado no Brasil. Mas parou por aí. Os professores que são concursados contribuíram muito para a luta da criação das políticas de educação escolar indígena no Brasil. Eles ajudaram na alfabetização de outros professores que hoje estão dando a continuidade ao ensino nas escolas, ajudaram nas publicações de materiais didáticos, no fortalecimento da cultura, nas pesquisas, e contribuíram nas questões políticas. Hoje, muitos desses professores já estão se aposentando, mas deixaram a sua história.
Temos também uma coordenação dentro da Secretaria de Educação e Esporte (SEE) para apoiar a educação escolar indígena, porém ela é composta por um coordenador e uma equipe muito pequena para atender todas as demandas.
A outra conquista aconteceu no ano de 2014, quando, pela primeiras vez, os professores indígenas graduados foram convidados para ministrar aulas para os professores no Curso de Magistério Indígena, organizado pela SEE. Tivemos espaço para dialogar com os 315 professores indígenas que estavam se formando. Essa parceria entre OPIAC e SEE foi muito boa, tivemos a oportunidade de associar na OPIAC 250 professores indígenas. Agora falta dar continuidade, pois queremos juntos melhorar ainda mais a nossa educação escolar indígena nas aldeias.
Hoje, temos também o Grupo de Trabalho de Educação Escolar Indígena (GTEEI) funcionando, que está debatendo com a SEE e demais parceiros todas as questões da educação escolar indígena no Acre.
Fragilidades e desafios na Educação Escolar Indígena
Para nós, professores, um dos grandes problemas é que a maioria das decisões nas esferas de governo é tomada sem a nossa participação e sem consulta aos povos indígenas. Muitas vezes nem a informação chega até nós, quanto mais a consulta livre prévia e informada. Muitos temas que discutimos não são levados em conta. É uma falta de preparo dos governos para nos ouvir. Entendemos que muitos problemas que hoje os professores e mediadores enfrentam é pela falta de formação para professores e também dos técnico-administrativos e coordenadores de ensino. Na verdade, entendemos que é a falta de valorização da carreira de professor indígena.
Nos últimos encontros de professores, levantamos alguns desafios que estamos nos preparando para resolver, pois: falta concurso específico para professores indígenas no estado do Acre e vontade política para resolver essa situação dos contratos provisórios; falta formação inicial e continuada para os professores indígenas; não tem recurso garantido na SEE para a formação de professores. Desde que a CPI-Acre deixou de fazer a formação ficou um vazio, sem ter uma escola de formação de professores indígenas para o magistério com cursos todos os anos e com turma regular; falta apoio e condições da SEE para fazer os acompanhamentos pedagógicos das escolas indígenas; falta planejamento específico de acordo com a oralidade e os protocolos de cada povo; falta atenção e melhor discussão sobre os critérios para contratação de professores; muitos alunos migrando para estudar nos municípios; desrespeito de muitos técnicos não indígenas dos municípios com a OPIAC.
A UFAC está fazendo suas ações sem a participação dos professores e povos indígenas. Na 1ª turma da licenciatura tivemos muitos embates. Depois, conseguimos alguns avanços, mas agora parece que não acreditam na OPIAC.
Nas terras indígenas vemos que falta entendimento de algumas lideranças sobre o funcionamento de uma escola específica e diferenciada. Vemos alguns professores muito soltos, sem os acordos comunitários. Muitas aldeias são criadas para acompanhar o aumento de emprego e renda, o que faz a educação qualitativa tomar outro rumo. Por que isso está acontecendo? Será que esse entendimento é certo? Para nós esse problemas é por falta da formação inicial e continuada porque entendemos que é na formação que se forma para a reflexão sobre a vida, as sociedades e os povos.
A educação escolar de qualidade, específica e diferenciada é a maior luta da OPIAC, que trabalha hoje com professores de 14 povos em 34 terras indígenas do estado. Temos tentado orientar os órgãos de governo (MEC, SEE, municípios) e as próprias comunidades sobre a importância da participação dos indígenas nas decisões sobre a educação. Mas temos tido pouco sucesso. Há uma fragilidade muito grande dos órgãos em entender essas parcerias e a importância da consulta livre prévia e informada, que não acontece. Cada um fazendo o seu, do seu modo, sem parceria, e sem consulta aos povos indígenas, fica difícil trabalhar. Mas a OPIAC está aqui para lutar. E lutar para valer.
Coordenadora da Organização dos Professores Indígenas no Acre (OPIAC)