Aconteceu em Brasília a décima quarta edição do ATL – Acampamento Terra Livre, reunindo mais de quatro mil indígenas. Durante toda a semana passada tivemos o prazer de acompanhar uma das mais ricas mobilizações destes últimos tempos. Um fórum com vastas informações que se deram em calorosas discussões políticas, culturais, linguísticas, próprias a cada um dos povos indígenas ali presentes. O ATL se realizou ancorado em um forte engajamento pela defesa dos direitos indígenas. Em nota, dia 24 de abril, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil- Apib, que coordena e organiza anualmente o ATL, informou que “a mobilização acontece em meio a maior ofensiva contra os direitos dos povos originários nos últimos 30 anos.”
Foram debatidos diversos temas relevantes para a vida dos povos indígenas que, representados por caciques, pajés, lideranças, artesãs, advogados, agentes de saúde, educadoras indígenas, mulheres e homens, colocaram em plenárias informações e análises que são essenciais para a qualidade e o bem estar de seus povos. Trouxeram à luz questões como os direitos originários, o marco temporal, empreendimentos, saúde, educação, em que decisões são tomadas na capital do Brasil, a revelia deles e sem qualquer consulta. Situação abordada recorrentemente frente ao desmantelamento do pouco que foi construído em termos de políticas públicas específicas.
Sonia Guajajara, liderança e coordenadora da Apib, em uma de suas falas deu um firme recado: “Estamos aqui para dizer que existimos. O ATL vem dizer que vida queremos, que democracia queremos. Dizer que temos direitos aos nossos territórios. Temos direito originário a estas terras. A Constituição apenas escreveu, mas o direito é nosso. O sonho da democracia está sendo enterrado. Nossa liberdade está sendo tirada.
Está em nossas mãos evitar esse retrocesso. Estamos em Brasília para dizer que não aceitamos este retrocesso. Hoje há pessoas públicas dizendo o que querem para nós, desta forma incitando o ódio, o preconceito. Assassinando, queimando indígenas como aconteceu com Galdino, como aconteceu em Roraima.
O ATL está mais forte exatamente porque todos sentiram a necessidade de vir aqui para dar seu recado, para expressar suas vozes, se juntar para garantir nossos direitos. Está muito evidente argumentos de que as Terras Indígenas são improdutivas. São argumentos de quem só vê o dinheiro. E para nós a terra não é dinheiro. Está muito difícil esse momento, essa conjuntura. Temos que nos fortalecer, cuidar das nossas Terras Indígenas, porque só assim continuaremos existindo como povos indígenas. Não vamos desistir! Queremos respeito e justiça e vamos defender a auto-demarcação já!”
Ecoando a voz das mulheres ouvimos ainda contundentes recados de várias outras indígenas, entre elas Almerinda Tariano, Tuíra, Nara Baré, Telma Tauperang, Célia Xakriabá, firmes em seu papel de mediadoras, mobilizadoras, educadoras, lideranças, conselheiras, que ocupam um lugar estratégico nas lutas por direitos sociais e políticos.
O Acre esteve presente representado por dez lideranças de cinco povos. Josias Maná nas discussões em grupo relatou a experiência dos AAFIs com produção sustentável e soberania alimentar. Reafirmou que estão cuidando das Terras Indígenas e atentos aos direitos originários. Ninawa Huni Kuĩ, em plenária, falou de sua preocupação com o crescimento da soja no Acre e responsabilizou, sinalizando que deverá formalizar uma denúncia, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento por incentivar esta política e os danos que essa frente está causando aos povos e a floresta no Acre.
Ouvimos Marcos Krenak falando da grave tragédia do rio Doce, das consequências disso para o povo Krenak e do desserviço do Estado para a complexa reparação deste dano. Ouvimos relatos da grave situação dos Guarani Kaiowá, dos Guató, das ameaças ao Bioma Pantanal por construções de PCHs e hidrovias. Lideranças Tabepa mostraram o descompasso do governo em relação a demarcação de Terras Indígenas no estado do Ceará.Weber Tapeba destacou que hoje há na Funai 470 reivindicações fundiárias, que necessitam de andamento. Sabe-se que há 110 processos fundiários em estudo, sendo 18 em fase de contraditório administrativo. O desmonte e enfraquecimento do órgão indigenista com o número insuficiente de técnicos, apenas sete, na Coordenação Geral de Identificação (CGID/DPT) para acompanhar todos os processos, ameaçam muito gravemente a vida dos povos indígenas.
Os Kaingang apresentam um manifesto em que expressam “… Os Kaingang exigem terra demarcada para todos os povos viverem com dignidade, exigem saúde pública de qualidade de acordo com as necessidades e especificidades; exigem educação pública de todos os níveis…”
A saúde indígena também foi um tema de alta relevância. O tema da educação mostrou como a educação intercultural, diferenciada bilíngue tem tido retrocessos nas esferas de governo para que seja efetivada nas Terras Indígenas.
Pontuei aqui um pequeno extrato do que vi nos dias de mobilização. Há assunto para muitas análises. O fato é que continuam crescentes, evidentes e trágicos os conflitos entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, que parece não ter fim. Os conceitos de vida indígena não dialogam com o não indígena, são demasiadamente antagônicos, alguém já falou. Não fosse a alta capacidade de resistir, em que os povos indígenas se seguram com seus rituais, rezas, e os modos de ser e estar no mundo, a situação poderia ser ainda mais grave.
A seguir apresentamos ao leitor acreano o documento público do ATL, que foi protocolado em diversos ministérios, levado por uma bonita e ritualizada marcha indígena.
Declaração do 14º Acampamento Terra Livre
Nós, povos e organizações indígenas do Brasil, mais de quatro mil lideranças de todas as regiões do país, reunidos por ocasião do XIV Acampamento Terra Livre, realizado em Brasília/DF de 24 a 28 de abril de 2017, diante dos ataques e medidas adotadas pelo Estado brasileiro voltados a suprimir nossos direitos garantidos pela Constituição Federal e pelos Tratados internacionais ratificados pelo Brasil, vimos junto à opinião pública nacional e internacional nos manifestar.
Denunciamos a mais grave e iminente ofensiva aos direitos dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988, orquestrada pelos três Poderes da República em conluio com as oligarquias econômicas nacionais e internacionais, com o objetivo de usurpar e explorar nossos territórios tradicionais e destruir os bens naturais, essenciais para a preservação da vida e o bem estar da humanidade, bem como devastar o patrimônio sociocultural que milenarmente preservamos.
Desde que tomou o poder, o governo Michel Temer tem adotado graves medidas para desmantelar todas as políticas públicas voltadas a atender de forma diferenciada nossos povos, como o subsistema de saúde indígena, a educação escolar indígena e a identificação, demarcação, gestão e proteção das terras indígenas. Além disso, tem promovido o sucateamento dos já fragilizados órgãos públicos, com inaceitáveis cortes orçamentários e de recursos humanos na Fundação Nacional do Índio (Funai) e com nomeações de notórios inimigos dos povos indígenas para cargos de confiança, além de promover o retorno da política assimilacionista e tutelar adotada durante a ditadura militar, responsável pelo etnocídio e genocídio dos nossos povos, em direta afronta à nossa autonomia e dignidade, garantidos expressamente pela Lei Maior.
No Legislativo, são cada vez mais frontais os ataques aos direitos fundamentais dos povos indígenas, orquestrados por um Congresso Nacional dominado por interesses privados imediatistas e contrários ao interesse público, como o agronegócio, a mineração, as empreiteiras, setores industriais e outros oligopólios nacionais e internacionais. Repudiamos com veemência as propostas de emenda constitucional, projetos de lei e demais proposições legislativas violadoras dos nossos direitos originários e dos direitos das demais populações tradicionais e do campo, que tramitam sem qualquer consulta ou debate junto às nossas instâncias representativas, tais como a PEC 215/2000, a PEC 187/2016, o PL 1610/1996, o PL 3729/2004 e outras iniciativas declaradamente anti-indígenas.
Igualmente nos opomos de forma enfática a decisões adotadas pelo Poder Judiciário para anular terras indígenas já consolidadas e demarcadas definitivamente, privilegiando interesses ilegítimos de invasores e promovendo violentas reintegrações de posse, tudo sem qualquer respeito aos mais básicos direitos do acesso à justiça. A adoção de teses jurídicas nefastas, como a do marco temporal, serve para aniquilar nosso direito originário às terras tradicionais e validar o grave histórico de perseguição e matança contra nossos povos e a invasão dos nossos territórios, constituindo inaceitável injustiça, a ser denunciada nacional e internacionalmente visando à reparação de todas as violências sofridas até os dias de hoje.
Soma-se a essa grave onda de ataques aos nossos direitos o aumento exponencial do racismo institucional e a criminalização promovidos em todo o País contra nossas lideranças, organizações, comunidades e entidades parceiras.
Diante desse drástico cenário, reafirmamos que não admitiremos as violências, retrocessos e ameaças perpetrados pelo Estado brasileiro e pelas oligarquias econômicas contra nossas vidas e nossos direitos, assim como conclamamos toda a sociedade brasileira e a comunidade internacional a se unir à luta dos povos originários pela defesa dos territórios tradicionais e da mãe natureza, pelo bem estar de todas as formas de vida.
Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena
Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Mobilização Nacional Indígena