Crianças e professores da escola Chico Mendes (Foto:Leilane Marinho)

Uma das contribuições à aplicação da lei 11.465/08, que incluí nos projetos políticos pedagógicos das escolas (públicas e particulares) a obrigatoriedade do ensino sobre cultura indígenas e afro-brasileira, é propiciar o diálogo e encontros entre professores e estudantes indígenas com professores e estudantes não indígenas. No entanto, na grande maioria das escolas brasileiras essa “aula” não é ofertada.

“Muita gente só conhece o indígena do livro de história, aquele que caça, pesca e mora na maloca. Nós vivemos mais de 500 anos de resistência e não se estuda sobre os nossos direitos. Nas escolas nós ficamos no passado”, disse Eldo Carlos Baku Shanenawa, vice coordenador da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), na recepção dos alunos que visitavam o Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF) da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre).

Durante todo o mês de abril, e também em maio, estudantes do ensino fundamental, médio e superior visitaram o CFPF na programação do 10º Abril no Acre Indígena, evento anual realizado pela CPI-Acre, OPIAC e Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígena (AMAAIC).

Mais de 100 alunos de Rio Branco saíram das salas de aula para ouvir e aprender com os próprios indígenas sobre história, culturas, direitos e lutas atuais. Além de Eldo Shanenawa, eles foram recebidos por Edilson Puá Katukina, coordenador AMAAIAC e Jardel Arara. O roteiro das visitas ao CFPF incluía passeio pelas trilhas; apresentação dos Sistemas Agroflorestais (SAFs); roda de conversa entre estudantes, professores e indígenas; visita guiada à exposição “Hieamiyuishuiki – A madeira me contou” e ao Centro de Documentação dos Povos Indígenas (CDPI).

Eldo Baku, que é mestrando do Programa Letras, Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre (UFAC), começou a aula apresentando a simbologia dos seus adornos. “No meu cocar tem símbolos da arte, religião, geografia e história. Para mim é uma joia, expressa a beleza e a força em um encontro de pessoas. Eu uso nessas ocasiões, em reuniões públicas, com lideranças indígenas e não indígenas”, explicou Baku para os alunos da escola João Batista Aguiar, que durante a roda de conversa faziam perguntas sobre o cocar.

Mas nem sempre foi assim. Baku contou nas histórias antigas do seu povo Shanenawa sobre a proibição das manifestações culturais impostas pelos patrões no Tempo do Cativeiro: eles não podiam falar na língua indígena e usar vestimentas tradicionais, entre outros vetos.

“Se estou aqui agora é porque lutamos muito para podermos exercer nosso direito de existir. Mas há hoje no Brasil um desmonte dos nossos direitos, estão violando nossos territórios e tudo que adquirimos com muita luta, com vidas que se perderam”, disse Baku, lembrando das conquistas advindas na Constituição de 88, o Tempo dos Direitos.

Com contos e formas, crianças vivenciam cultura ancestral

Permeada pela oralidade, a criança indígena tem nas estórias contadas pelos mais velhos as lições mais importantes da sua vida. Foi com essa referência e recordando da sua infância na aldeia que Eldo Shanenawa contou para alunos do ensino infantil da Escola Chico Mendes algumas dessas estórias do povo Shanenawa.

As crianças menores são as mais curiosas sobre os modos de vida indígena e fazem várias perguntas sobre os personagens dos mitos. A magia dos contos ancestrais aguça a imaginação dos alunos e segundo a coordenadora pedagógica da escola municipal Chico Mendes, muda a forma deles perceberem a cultura indígena.

“Tira esse estigma de que os indígenas são diferentes, eles são diferentes na cultura e apenas isso”, conta Lucélia de Sousa Maia.

Após a roda de conversa os alunos visitaram a exposição “Hieamiyuishuiki – A madeira me contou”, composta por peças de madeira reaproveitadas onde são esculpidas personagens da mitologia indígena. E é aqui que os mitos apresentados anteriormente saltam aos olhos e às mãos dos pequenos.

Os estudantes tocam os detalhes dos entalhes, os traços em baixo relevo e as formas, vivificando o espaço. De Jardel Arara, que trabalha com o projeto Artes e Ofício da AMAIAAC escutam mais estórias e aprendem como as peças são produzidas.

O diretor do Escola Chico Mendes, Hélio Sebastião da Silva, disse que a experiência é única não somente para as crianças, mas para todos os visitantes. “Durante o mês de abril falamos muito sobre os povos indígenas na sala de aula, mas uma coisa bem diferente é saber deles, ouvir os próprios indígenas”, disse incluindo: “ E não é só isso, no Centro de Formação da Floresta os alunos encontraram um ambiente que era pasto, e eles veem que podemos conseguir, podemos transformar um ambiente, que é o que os indígenas fazem com o reflorestamento”.

Intercâmbio entre universitários e indígenas

Adquirido em 1994, o CFPF é uma área de mais de 30 hectares na zona rural de Rio Branco com o principal propósito de sediar os cursos de formação de professores, agentes de saúde e agentes agroflorestais oferecidos pela CPI-Acre. Com uma proposta curricular de base intercultural, bilíngue e diferenciada, o CFPF é credenciando junto ao Ministério da Educação e à Secretaria do Estadual de Educação para titular estudantes indígenas no nível médio e técnico agroflorestal.

Na época, o local possuía poucas áreas de mata, sendo grande parte do terreno coberto por campo e capoeira nova. Com o início do curso de Formação dos Agentes Agroflorestais Indígenas, Sistemas Agroflorestais (SAF) foram sendo implantados ao logo de mais de 20 anos, reflorestando a terra desmatada.

Hoje o CFPF é uma área verde, com zonas de florestas e trilhas que levam os visitantes aos SAFs, às unidades de criação de animais domésticos e silvestres como quelônios (tartaruga e tracajá), peixes nativos e aves domésticas.  Há ainda as hortas orgânicas, os viveiros de produção de mudas, banco de sementes indígenas e uma pequena marcenaria.

A parte de floresta e recuperação de área é um tema que dialoga com o curso de Engenharia Florestal, por isso há intercâmbios e visitas dos estudantes deste curso ao CFPF para rodas de conversas e aulas com os agentes agroflorestais indígenas.

Puá Katukina apresenta SAFs para alunos da UFAC. (foto: Leilane Marinho)

Este ano uma turma da disciplina de Iniciação a Ciências Florestal da UFAC foi ao CFPF. Conforme o professor Dr. Luiz Augusto de Azevedo, ouvir os indígenas e conhecer o Centro de Formação é uma das formas de promover o diálogo entre conhecimentos. “É mostrar que além do conhecimento científico ensinado na universidade há outros, como o conhecimento tradicional, e sua importância para a conservação das florestas quando esses conhecimentos se complementam como é o caso do papel dos agentes agroflorestais indígenas na gestão de seus territórios”, afirmou durante a visita.

Puá, que também é agente agroflorestal indígena (AAFI) formado no CFPF, explicou para os estudantes da Florestal que os sistemas demonstrativos no CFPF (de SAFs, criações de animais, etc) são implantados de forma que possam ser replicados nas aldeias, incluindo técnicas tradicionais. Ele apresentou para os estudantes SAF ‘Comida para peixe’, uma área em torno do açude repleta de palmeiras de buriti, fruto que alimenta a criação.

“Essa aqui é e uma área demonstrativa do nosso trabalho como agente agroflorestal indígena.  No lugar de pasto plantamos Sistemas Agroflorestais, construímos a barragem para o açude e colocamos peixe e quelônios, como fazemos nas TIs”, disse Edilson Puá, ao mostrar o CFPF para os acadêmicos.

Universitários do curso de Engenharia Florestal na sala de aula do CFPF. (foto: Leilane Marinho)

“Foi a primeira vez que vi uma área que era pasto se transformar em floresta. Infelizmente o que a gente vê muito é o contrário, floresta virar pasto”, ressaltou a acadêmica Júlia Passos. Seu colega, Caio Lima, disse que estar com os indígenas e aprender sobre suas técnicas originárias foi uma experiência inspiradora. “Eles são os primeiros, os que vivem na mata, dentro da floresta. É um conhecimento empírico, não é só teoria, e por isso é muito diferente”.

Aos jovens, Puá falou sobre viver na floresta e valorizar a terra. E que para isso, é necessário que toda sociedade brasileira se junte à luta pela demarcação dos territórios indígenas e a diminuição do desmatamento.  “Para fazer toda essa gestão tem que ter a terra, mas hoje vivemos uma situação que podemos perder nossos direitos. Ter terra significa nossa saúde e nossa vida. Nossa medicina vem da floresta, vem da cura dos pajés e da alimentação da floresta”, disse.

Também no mês de maio, dia 17, pesquisadores da University of Colorado Bouder (UCB), dos Estados Unidos, da Universidade Estadual de Santa Cruz na Bahia e da UFAC visitara o CFPF. Os pesquisadores viajaram para o Acre para conhecer as boas práticas de gestão territorial e produção de alimentos, entre elas, o trabalho realizado pelos agentes agroflorestais indígenas. O intercâmbio no Brasil é o último módulo da disciplina ministrada na Universidade do Colorado com foco em desenvolvimento sustentável das florestas brasileiras e sistemas socioambientais.

“Aqui eles [AAFIs] conservam a floresta e trabalham a economia sustentável baseado na floresta. Há muita expertise nessas práticas e viemos ouvir deles, como nossos professores, como esse trabalho acontece”, explica Dra. Colleen Scanlan Lyons, professora da universidade do Colorado, que também é Secretária Global da Força Tarefa de Governadores para Clima e Floresta (GCF).

Faz cerca de 30 anos que a CPI-Acre promove esses encontros entre indígenas e estudantes não indígenas, atividade que foi incorporada há 10 anos na programação do Abril no Acre Indígena. Desde então, o evento realiza todos os anos visitas e/ou vivência de escolas de Rio Branco e da UFAC ao CFPF. Receber estudantes não indígenas para aulas e rodas conversas com os indígenas é aproximar os conhecimentos, diminuir a distância entre os povos e valorizar a floresta amazônica.