Há mais de uma década, a sociedade civil do Brasil e do Peru, por meio de organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas que atuam no estado brasileiro do Acre e nos departamentos peruanos de Madre de Dios e Ucayali, vêm discutindo e divulgando as dinâmicas e problemáticas dessa região de fronteira da Amazônia. E, também, propõem e desenvolvem, inclusive junto a governos locais e nacionais, estratégias de proteção dos territórios, tanto dos que conservam modos de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais, como das áreas destinadas à conservação da biodiversidade.
Entretanto, ao longo do tempo, acordos bilaterais para realização de empreendimentos entre os governos do Brasil e Peru têm sido discutidos e firmados sem a participação dos povos e comunidades afetadas. É o caso da proposta de construção da estrada que liga Pucallpa (Ucayali, Peru) a Cruzeiro do Sul (Acre, Brasil).
Diante dessa iniciativa, as comunidades que vivem na floresta e organizações indígenas, agroextrativistas, indigenistas e socioambientais vêm por meio desta carta alertar os governos dos dois países para os impactos dessas políticas de integração regional, construídas com base em um modelo de desenvolvimento que não dialoga com a realidade local e que se opõe aos princípios da conservação e da sustentabilidade socioambiental.
Grandes projetos de infraestrutura e de exploração de recursos naturais, que se sobrepõem às áreas naturais protegidas e territórios indígenas e seu entorno, não seguem compromissos assumidos em tratados internacionais de direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Não há processo de consulta livre, prévia e informada às comunidades e às suas organizações, conforme recomendam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, das quais o Brasil e o Peru são signatários.
O projeto na região do Alto Juruá, na fronteira Acre-Ucayali, da expansão da BR 364 com vistas à integração rodoviária entre o Brasil e Peru, afeta o Parque Nacional (PN) Serra do Divisor no Brasil, que além de abrigar alta biodiversidade, tem informações sobre a presença de grupos indígenas isolados. Também coloca em risco a segurança hídrica de diversos municípios.
A estrada deve atravessar o PN Serra do Divisor, passando próxima às Terras Indígenas dos povos Nawa, Nukini, Jaminawa e Poyanawa, e também da Reserva Extrativista Alto Juruá, gerando impactos negativos. No lado peruano afetará a Comunidade Nativa San Mateo, a Reserva Territorial Isconahua, destinada a proteção de povos em isolamento voluntário e de recente contato e o Parque Nacional Sierra del Divisor.
É necessário garantir os direitos dos povos indígenas e de comunidades tradicionais e assegurar o respeito à legislação ambiental. No Brasil, na lei nº 9.985 de 14 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), protege os parques nacionais que são uma categoria de Unidade de Conservação (UC) de proteção integral e, portanto, não é permitida a construção de estradas em seu interior e, a rigor, não há previsão legal para implantação de rodovia nesta categoria. Em razão desses fatos, somados à ausência de um estudo de viabilidade econômica e socioambiental que justifique a construção dessa estrada, externamos nossa preocupação e questionamos o entendimento de que uma obra de infraestrutura como essa estrada, seja uma estratégia de desenvolvimento.
Além da proposta de construção da estrada que integra Pucallpa a Cruzeiro do Sul, nos preocupa a projeção de outras duas estradas em Ucayali no Peru, que afetarão também a região de fronteira no Alto Juruá no Acre, Brasil. Um desses casos é o projeto da estrada conhecida por Nuevo Itália – Puerto Breu, que pretende chegar em Puerto Breu, Distrito do Yuruá, passando na linha de fronteira com o Brasil, exatamente nas comunidades Sawawo Ito 40 e Nueva Shawaya, limite com a TI Kampa do Rio Amônia no lado brasileiro, interessando somente a empresas que atuam na concessão florestal peruana.
A região do Breu/Yurua, no Peru, é habitada por povos Ashaninka, Amahuaca, Jaminawa e Chitonahua, distribuídos em 34 Comunidades Nativas. No Brasil, essa estrada passará próxima às TIs Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu, Kampa do Rio Amônia, Arara do Rio Amônia e na Reserva Extrativista Alto Juruá.
A outra estrada proposta é a de Santa Rosa de Masisea, no Peru, até a fronteira com o Brasil, na região do rio Tamaya, onde se encontra a Comunidade Nativa Alto Tamaya Saweto. No Brasil essa estrada chegará próxima à porção norte da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia e parte sul do Parque Nacional Serra do Divisor.
Os diferentes projetos de leis e emendas constitucionais que foram apresentados por congressistas, nos dois países, com o objetivo de flexibilizar e violar as legislações indigenistas e ambientais, assim como as normativas nacionais e internacionais que garantem os direitos coletivos fundamentais dos povos indígenas, também nos causam grande preocupação.
Com relação às áreas protegidas no Acre, está em análise o projeto de lei 6024/ 2019 de autoria da deputada federal Mara Rocha, que possibilita extinguir o Parque Nacional da Serra do Divisor e permitir o desenvolvimento de qualquer atividade econômica, reduzindo substancialmente a proteção da biodiversidade. O referido PL também propõe a redução de outra unidade de conservação no Acre, a Reserva Extrativista Chico Mendes.
Questiona-se também a falta de transparência e participação dos povos indígenas, comunidades tradicionais e sociedade em geral nas discussões de definição do investimento, e nos estudos de viabilidade dos projetos.
Analisando os planos elaborados pelos governos locais, agências estatais e organizações que representam os setores econômicos, verificamos uma ideia de futuro com crescimento econômico, em que não existirão mais povos indígenas, comunidades extrativistas e florestas. Temos essa impressão analisando o “Plan Vial Departamental Participativo 2017-2026, Gobierno Regional de Ucayali – Dirección Regional de Transportes y Comunicaciones de Ucayali – Dirección de Caminos”; o programa “Rotas do Desenvolvimento”, elaborado pelo Fórum de Desenvolvimento do Acre em 2020, do qual o Governo do Acre é parte; e o estudo Microeixos de Transportes dos estados do Acre, Maranhão, Mato Grosso e Rondônia, elaborado pela SUDAM em 2017. Em nenhum deles há participação de representantes dos povos indígenas e comunidades tradicionais, tampouco da sociedade civil socioambiental.
Diante de perspectivas desfavoráveis ao desenvolvimento e consolidação de uma economia florestal e agroextrativista, característica dos povos indígenas e comunidades agroextrativistas das regiões do Juruá e Ucayali, as organizações signatárias desta carta, requeremos aos governos das nações, aos governadores de estados e departamentos no Brasil e no Peru, às agências de fomento bilateral e aos agentes de grandes fundos de investimento, que não financiem ou autorizem tais empreendimentos sem que esteja garantida a participação social e o efetivo compromisso com a sustentabilidade e manutenção dos povos indígenas e a integridade das áreas protegidas e da biodiversidade da região.
Assinam:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Associação Ashaninka do Rio Amônia – Apiwtxa
Asociación Ambiental de la Comunidad Asheninka- Pocharipankoky Pikiyaco Yurua -AACAPPY
Associação Agro-Extrativista Poyanawa do Barão e Ipiranga – AAPBI
Asociación de Comunidades Nativas para el Desarrollo Integral de Yuruá Yono
Sharakoiari – ACONADIYSH
Associação Floresta Viva
Associação Indigena Nukini – AIN
Associação dos Kaxinawa do Rio Breu – AKARIB
Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre – AMAAIAC
Associação Nacional dos Servidores Ambientais – Ascema Nacional
Associação do Povo Indígena Jaminawa Arara
Associação do Povo Arara do Rio Amônia
Asociación Pró Purus
Associação SOS Amazônia – SOS Amazônia
Asibama/AC – Associação dos Servidores do Ibama e do ICMBio no Acre
Centro de Trabalho Indigenista – CTI
Comissão Pró Índio do Acre – CPI-Acre
Comitê Chico Mendes
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
Derecho Ambiente y Recursos Naturales DAR
Iepé – Instituto de Pesquisa e Formaçao Indígena
Instituto Yorenka Tasorentsi
Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato – OPI
Organización Regional Aidesep Ucayali – ORAU
Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira – OPIRE
Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá – OPIRJ
Rede de Cooperaçao Amazonica – RCA
Upper Amazon Conservancy/Conservación Alto Amazonas
União das Mulheres Indigenas da Amazonia Brasileira – UMIAB
WWF-Brasil