Representantes de 26 TIs no Acre divulgaram nesta segunda-feira, 20, a Carta das Lideranças e Organizações Indígenas do Acre para os Governos e a Sociedade, resultado das discussões do Seminário de Políticas Públicas que aconteceu de 15 a 17 no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF) da Comissão Pró-Índio do Acre. O documento foi protocolado no Gabinete do Governador, Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esportes (SEE), Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA), Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público do Estado do Acre (MPE). Leia na íntegra abaixo:
CARTA DAS LIDERANÇAS E ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO ACRE PARA OS GOVERNOS E A SOCIEDADE
Nós, lideranças indígenas, homens e mulheres, dos povos Ashaninka, Huni Kuĩ, Shawãdawa, Yawanawa, Nukini, Noke Koe (Katukina), Shanenawa, Puyanawa, Manxineru, Kuntanawa, Jaminawa, Madija de 26 terras indígenas do Acre e 29 associações indígenas, reunidos em Rio Branco, de 15 a 17 de maio, no Centro de Formação dos Povos da Floresta, para discutir a grave situação de retrocesso dos direitos indígenas frente aos ataques do governo federal, e a morosidade do governo estadual, em definir, participativamente, políticas para os povos indígenas.
A ofensiva do governo federal contra todos os povos indígenas se materializa no apoio ao agronegócio e compromissos com os ruralistas, mas também com outros setores poderosos que defendem arredamento e exploração de recursos naturais das terras indígenas; no descaso com as evidências e os impactos das mudanças do clima em nossas vidas; nas falsas afirmações de que somos povos que não produzem alimentos; no equivocado processo de integração, que somente aumenta a contra informação, o preconceito e a desigualdade. Não é isso o que defendemos e estamos dispostos a reverter essa situação.
Com base em informações, reflexões, testemunhos e depoimentos sobre o cenário político; com informações e relatos sobre fatos concretos e a vida cotidiana em nossas terras indígenas, essa reunião visou fortalecer nossa aliança, nossa união, nossas organizações políticas e assim buscar estratégias de como vamos mudar essa situação.
Temos clareza de que os que querem nos prejudicar usam artimanhas como decretos, portarias, projetos de lei e outros, para mostrar que estão agindo dentro de uma chamada “legalidade”. Sabemos dos grandes desafios e temos certeza que essa reunião de lideranças é um momento de união que nos dá muito mais força para lutar pela manutenção dos nossos direitos. Sabemos o que queremos e que nesta terra permaneceremos por muitas gerações que virão. Isso é inquestionável.
Desta forma, após três dias de discussões, firmes e fortalecidos para reverter esse grave quadro, queremos que os governos respeitem e cumpram nossos direitos constitucionais, bem como o direito de Consulta Livre, Prévia e Informada, conforme estabelecido na Convenção 169 da OIT que é lei no Brasil (Decreto Presidencial n° 5051/2004), presente também na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), e assim exigimos o que segue:
Governo Federal:
Que a FUNAI permaneça no Ministério da Justiça com suas atribuições institucionais e orçamento suficiente para funcionar e que retome os processos de demarcação das terras indígenas, como sua atribuição exclusiva, com o acúmulo de experiência que possui para esse trabalho;
Que seja revogado o Decreto Nº 9.709 de abril passado, que extingue os espaços de participação e diálogo dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e sociedade civil com o governo federal;
Que seja cumprida a Política Especial de Saúde Indígena e as reivindicações das Conferências Locais, entre as quais: a) formação dos conselhos locais; b) contratação dos profissionais de saúde indígena por capacidade técnica; c) formação de agentes de saúde, enfermagem e técnicos de enfermagem; d) formação das equipes multidisciplinares sobre os povos indígenas; e) construção de postos de saúde, devidamente equipados nas terras indígenas; f) criação de um Centro de Referência no SECON para tratar do PCCU das mulheres indígenas, g) realização de campanhas educativas sobre bebida alcoólica e ilícitos;
Que seja reconhecida e valorizada a saúde tradicional;
Que seja feito um estudo sobre a situação da entrada e crescimento de ilícitos e que se investigue sobre a entrada de organizações criminosas em algumas terras indígenas e que seja feito um trabalho permanente de prevenção e diminuição desta situação nas comunidades.
Governo do Acre:
Que seja criada uma Secretaria Especial Indígena para formulação e implementação de políticas para os povos indígenas no estado do Acre;
Que sejam incluídos na Lei Orçamentária Anual recursos específicos para investimentos em terras indígenas;
Que se promova com urgência o funcionamento da Comissão Estadual de Educação Indígena, da Comissão Estadual de Validação e Acompanhamento do SISA e sua Câmara Temática dos Povos Indígenas, assim como os demais espaços de participação e diálogo;
Que os programas, políticas e ações para as terras indígenas sigam o que está estabelecido na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental (PNGATI);
Que seja garantida a execução do Programa REM, com atenção para: a) a manutenção dos recursos do Subprograma Territórios Indígenas nos componentes já estabelecidos, ampliando para as terras indígenas ainda não contempladas; b) o fortalecimento da Câmara Temática Indígena e criação de sua secretaria executiva; c) que os projetos contemplem recursos que garantam às associações indígenas equipe técnica e informação qualificada para a elaboração, execução e avaliação dos trabalhos nas terras indígenas;
Que seja mantido o PROSER destinado à todas as terras indígenas com as ações e recursos como foram pactuados nos dois últimos anos, com atenção para: a) a criação de uma instância de diálogo com os povos indígenas para o planejamento, monitoramento e avaliação; b) que os projetos sejam elaborados nas terras indígenas segundo suas especificidades e seus Planos de Gestão Territorial e Ambiental tendo como foco a soberania e segurança alimentar, proteção territorial e o fortalecimento cultural; c) que as associações sejam fortalecidas para gestão desses projetos; d) que seja garantida a continuidade e ampliação da formação dos agentes agroflorestais e a remuneração dos mesmos pelos serviços prestados; e) que a ATER Indígena seja realizada pelos agentes agroflorestais indígenas e sua organização de representação (AMAAIAC); f) que sejam fortalecidas as parcerias entre as organizações indígenas e indigenistas com a SEMA, IMC, SEPA, SEE, IMAC, FUNAI, IBAMA e SESAI para a necessária articulação entre as ações; e) que programas como PAA e PNAE recebam atenção para que possam viabilizar a regionalização da merenda escolar e geração de renda;
Que os recursos do Programa REM e PROSER, o que cabe aos povos indígenas, sejam geridos pela SEMA, que é o órgão mais estruturado para acompanhar as ações nas terras indígenas;
Que a Secretaria de Estado de Educação e a Universidade Federal do Acre se articulem com a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) para a criação de um programa de formação de professores indígenas em magistério;
Que a Comissão Estadual de Educação Escolar Indígena seja a instância responsável pela definição de critérios para o ingresso nos cursos de formação em magistério e licenciaturas indígenas;
Que sejam garantidos recursos para o desenvolvimento de pesquisas e produção de material didático pelos professores indígenas em parceria com a OPIAC, CPI-Acre e UFAC;
Que a SEE avance na articulação com a UFAC para garantir o acesso aos diversos cursos de graduação, implementando a política de cotas e de assistência estudantil;
Que se organize uma reunião com as associações indígenas que assinam esta carta para definições conjuntas sobre as políticas, programas e projetos do atual governo.
Por fim, informamos que outro ponto discutido foi sobre as parcerias e cooperação internacional e fazemos publicamente uma solicitação ao KfW, BIRD, BID, Governo da Noruega: que, diante do cenário acima colocado, considerem como necessário e urgente abrir linhas de financiamento direto para as associações indígenas, como uma maneira de continuar contribuindo com a defesa dos nossos direitos, com a proteção da maior floresta tropical do mundo e de sua sociobiodiversidade.
Com isso reafirmamos nossa disposição em nos mantermos unidos para romper com este momento de dor e injustiças contra nossos povos. Somos a fonte das informações para as nossas comunidades. Reafirmamos que pode sobrar um só indígena, mas nenhum de nós fugirá com medo de lutar por nossos direitos!
Rio Branco, Acre, 17 de maio de 2019.