foto: Renato Gavazzi
Formação, Cultura e Arte Indígena
Em junho de 1994, a Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI Acre) adquiriu uma área rural de 26 hectares a 12 quilômetros do centro de Rio Branco com o propósito de sediar os cursos de formação oferecidos pela instituição que, até então, aconteciam na Fundação Cultural e nas dependências do Colégio Agrícola, locais cedidos pelo Governo do Acre. Em 2002, a área adquirida foi ampliada com a aquisição de mais 5 hectares, totalizando 31 hectares. Desde o início, a ideia era oferecer um local mais agradável aos índios que participavam dos cursos, próximo do ambiente das aldeias, que valorizasse os materiais da floresta e a estética indígena. A aquisição desta área também possibilitou que os participantes dos cursos para formação de professores, agentes de saúde e agentes agroflorestais pudessem ter aulas práticas relacionadas à implantação de sistemas agroflorestais, entre outros sistemas demonstrativos experimentais relacionados ao uso de técnicas agroflorestais e práticas de manejo ambiental
O novo espaço foi batizado de Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF). Na época da compra desta área, ela continha um fragmento de mata com castanheiras e algumas seringueiras remanescentes do antigo seringal Nova Empresa. Uma grande parte da área, no entanto, era campo e capoeira rala, ou seja, uma vegetação resultante da degradação do solo, ideal para se demonstrar a eficácia dos sistemas agroflorestais enquanto técnica para recuperação e restauração de áreas ou ecossistemas degradados. A cada curso, um novo sistema agroflorestal foi sendo implantado no terreno, experimentando-se diferentes espécies e técnicas de reflorestamento. Com isto, foi sendo gradualmente reconstituída a integridade do solo, com a consequente recuperação de sua capacidade produtiva em um quadro de equilíbrio ambiental.
Hoje, a área do CFPF é composta, em boa parte, por florestas. Ao longo desse processo, os índios participantes dos cursos vêm experimentando, na prática, como é possível reflorestar uma área degradada e torná-la produtiva. Em consórcio com os sistemas agroflorestais, também foram implantadas unidades demonstrativas da criação de animais domésticos e silvestres apreciados nas culinárias indígenas, como quelônios (tartaruga e tracajá), peixes nativos, abelhas sem ferrão e várias aves domésticas (peru, ganso, galinha, codorna, pato). O objetivo dessas criações é oferecer alternativas para a produção de proteína animal sem a necessidade de desmatamento.
A principal finalidade da implantação de sistemas demonstrativos no CFPF é que eles sejam replicados nas aldeias. Por conta disso, há a preocupação de que esses sistemas de fato funcionem nas terras indígenas sem grandes dificuldades técnicas e com pequenos aportes de recursos. Por exemplo, os peixes criados no CFPF não se alimentam de ração mas das frutas que caem das árvores plantadas em torno do açude e da produção dos sistemas agroflorestais (safs). Este é um exemplo de experimento que deu certo e que, ao longo de todas as etapas do processo, contou com a participação dos estudantes indígenas que, ao final, puderam comprovar os resultados. Da mesma forma, são experimentadas as práticas indígenas tradicionais de manejo ambiental. Alguns exemplos são as práticas agrícolas indígenas, suas técnicas de controle de formiga saúva, ou a técnica dos Manchineri de manejo da palha para a cobertura de casa sem a derrubada da palmeira. Estas técnicas/práticas são conhecimentos incorporados aos conteúdos curriculares da formação dos agentes agroflorestais abordados durante os cursos.
Os cursos de formação que acontecem no CFPF seguem uma filosofia pedagógica e um entendimento ambiental e intercultural, reconhecidos como tarefas complexas a serem reproduzidas no cotidiano dos cursos. Sem perder a discussão e a dimensão política das formas de poder historicamente construídas, o exercício deste diálogo nas situações de formação permite o acesso criativo e crítico aos conhecimentos de outras culturas, ou aos diversos conteúdos e formas de fazer ciência que tenham relevância e sentido cultural – como também ambiental, social, econômico – nos contextos em que serão pensados e aplicados.
O Centro de Formação dos Povos da Floresta é uma escola de agroecologia, espaço educacional, experimental e demonstrativo para o manejo e a conservação dos recursos naturais e agroflorestais. Dentro dele, existem atualmente áreas demonstrativas com sistemas agroflorestais implantados ao longo dos cursos de formação, alguns dos quais consorciados à criação de animais domésticos e silvestres: avicultura, meliponicultura, piscicultura e quelonicultura (tracajá e tartaruga). Atravessando diferentes estágios de produção, esses sistemas são utilizados pelos estudantes indígenas e agentes multiplicadores em aulas práticas de manejo, durante o processo de capacitação. Os cursos realizados no Centro resultam em ações ao longo do ano nas comunidades às quais pertencem os profissionais indígenas, a fim de permitir a difusão e a extensão nas Terras Indígenas de “novos” e “antigos” saberes e de técnicas relativas ao manejo e conservação dos recursos agroflorestais e naturais.
O Centro de Formação dos Povos da Floresta é uma escola de magistério e de ensino médio profissionalizante para indígenas na área da gestão ambiental
O CFPF é a primeira Escola de Formação de professores indígenas com uma proposta curricular de base intercultural, bilíngue e diferenciada, oficialmente reconhecida no Brasil. Este reconhecimento se deu em 1997 por meio de uma portaria da Secretaria Estadual de Educação que autorizou o seu funcionamento (Portaria Nº 2322/97, posteriormente atualizada pela Portaria Nº 3165/2007). O Centro de Formação dos Povos da Floresta está registrado na Coordenadoria de Registro e Inspeção Escolar (CORINES), no livro Nº 3, folha Nº 35.
No ano seguinte, em 1998, a aprovação pelo Conselho Estadual de Educação do Acre (Resolução N° 05/1998) da Proposta Curricular Bilíngue Intercultural para a Formação de Professores Índios do Acre possibilitou ao CFPF titular professores indígenas em nível médio. Em 2009, foi aprovada pelo mesmo Conselho (Resolução CEE Nº 236/2009 e Parecer CEE AC nº 101/2009) a Proposta Político/Pedagógica e Curricular de Formação Profissional e Técnica Integrada à Educação Básica de Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre, o que permitiu ao Centro de Formação passar a ser uma escola de ensino médio profissionalizante dedicada à formação de Agentes Agroflorestais especializados na área da gestão territorial e ambiental. E a partir de 2009, o CFPF foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como Ponto de Cultura.
A escola Centro de Formação dos Povos da Floresta é um espaço educacional experimental que permite a reflexão e o diálogo entre as diferentes culturas presentes nos cursos, além de acolher outros eventos realizados pela CPI-Acre. Tendo como base os saberes indígenas relacionados aos conhecimentos tradicionais, aos mitos, à história de cada cultura, ao ambiente e sua gestão, os cursos ministrados pela CPI-Acre procuram o significado e a interpretação destes conhecimentos por meio de novas linguagens, como a escrita, o desenho, o mapa, a informática, o vídeo e a escultura em madeira. Durante essas atividades, é proporcionado o acesso aos conhecimentos de outros povos indígenas e às informações da sociedade envolvente, saberes veiculados pelos assessores por meio de discussões de diversos temas.
O Centro de Formação é um espaço de difusão às populações indígenas e regionais (seringueiro, ribeirinho, etc.) de conhecimentos e tecnologias apropriadas para o desenvolvimento sustentável, dentro dos princípios ecológicos, através do manejo dos vários modelos demonstrativos já implantados. É também é um importante polo gerador de atividades demonstrativas desdobradas em âmbito regional por meio da implantação, dentro das terras indígenas, de modelos de desenvolvimento comunitários similares. Possui dessa forma um potencial para se tornar referência nacional, no sentido de que tal experiência pode servir como exemplo para as políticas de Estado voltadas ao desenvolvimento socioambiental, reunindo componentes da educação e da gestão territorial e ambiental.
Busca-se assim apresentar às populações indígenas e tradicionais que participam de cursos ou de outros eventos, e também aos responsáveis pelo desenho das políticas socioambientais do país, um espaço demonstrativo e um método de trabalho que permitem a gestão de um espaço natural dentro dos princípios da sustentabilidade, a partir de um viés educacional e cultural. Tal difusão implica em, a partir de uma visão pedagógica, refletir sobre os conceitos de desenvolvimento sustentável, combinando – no trabalho desenvolvido junto aos alunos dos cursos de formação – a pesquisa aplicada sobre os conhecimentos e as práticas tradicionais de uso com o manejo e a conservação dos recursos agroflorestais e naturais em terras indígenas. São utilizados para tanto os vários sistemas demonstrativos da agrofloresta do Centro de Formação, em um processo educativo onde prática e teoria dialogam permanentemente por meio das atividades desenvolvidas nos sistemas que vêm sendo implantados.
O Centro de Formação possui alojamentos para receber quem por ele passa para participar de cursos e outros eventos, além de cozinha, refeitório, banheiros, salas de aula e um laboratório de produção de polpa de frutas e beneficiamento de produtos agroflorestais, além dos escritórios dos programas e setores da instituição. Dispõe de um Centro de Documentação e Pesquisa Indígena (CDPI), que abriga um rico acervo documental da CPI-Acre, acumulado ao longo de quatro décadas de atuação junto aos povos indígenas do estado, e que foi criado também com a intenção de tornar este acervo mais acessível ao público, incluindo pesquisadores indígenas, não indígenas, estudantes e demais interessados.
Outro espaço importante é a Casa dos Autores, local destinado à pesquisa indígena, à preparação de livros bilíngues e outros materiais educativos e de leitura pelos indígenas do Acre (professores, agentes agroflorestais, lideranças, etc.) durante a formação básica e profissional. A concretização da Casa dos Autores é imprescindível para o desenvolvimento dos trabalhos educativos das escolas da floresta, pois facilita a participação indígena no processo editorial e educacional, garantindo maior qualidade aos materiais destinados às escolas indígenas do estado, além de fortalecer a política da instituição de produzir matérias em língua indígena.
Hoje no Brasil, o Centro de Formação dos Povos da Floresta é considerado uma das principais referências na temática de formação indígena. Por este motivo, além dos índios que participam regularmente dos cursos, o CFPF tem recebido pesquisadores e outros visitantes, incluindo índios de outros povos, que em número cada vez maior, vêm conhecer o trabalho realizado no CFPF e aí se hospedam por períodos variados. Além dos cursos de formação de Agentes Agroflorestais Indígenas, que acontecem anualmente e têm a duração média de seis semanas, o Centro oferece cursos e oficinas em informática, geoprocessamento, ilustração científica, políticas linguísticas, elaboração de projetos, educação digital e práticas culturais. O CFPF é ainda um espaço onde se realizam encontros, seminários, oficinas, fóruns e reuniões, além de ser também colocado à disposição para uso em outros eventos.