Os Nawa iniciaram os trabalhos de  autodemarcação dos limites de sua terra indígena como uma estratégia de sobrevivência. (Foto: Isabel Aquino/CPI-Acre)

Por Terri Vale de Aquino e Isabel Aquino

Para entender as motivações das mobilizações políticas protagonizadas por lideranças e representantes do povo Nawa pelo reconhecimento de sua identidade indígena e por seus direitos a um território próprio, é preciso levar em conta as transformações fundiárias, econômicas, políticas, socioculturais e ambientais em cursos na região do Alto Juruá iniciados nos anos 80.

Vamos apresentar nesse artigo uma breve “linha do tempo” das lutas Nawa ao longo das três últimas décadas, sobretudo no período histórico compreendido entre 1989, quando o governo federal criou o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), e os anos de 2021/2022, quando os Nawa iniciaram os trabalhos de  autodemarcação dos limites de sua terra indígena, como uma “estratégia de sobrevivência” que lhes garantam os seus direitos a uma terra indígena demarcada e regularizada, à saúde e educação indígenas diferenciadas, à formação em agrofloresta de seus jovens, homens e mulheres, e acesso a recursos de  projetos ambientais que lhes ajudem a reflorestar as áreas já desmatadas para instalação de  antigas fazendas e pastagens de gado, tanto nas áreas degradadas da TI Nawa, quanto em áreas vizinhas do próprio PNSD.

Contra a falta de políticas públicas voltadas para a proteção da natureza e para a garantia dos direitos territoriais dos povos da floresta, os Nawa dos Igarapés Novo Recreio, Jesumira, Jordão e adjacências no alto rio Moa decidiram demarcar em 2021, por conta própria e risco, a sua terra indígena, de acordo com os mesmos limites e extensão de 53.218 hectares decididos pela Justiça Federal no Acre. Demarcação com auto-demarcação! Não só dizem, como estão fazendo atualmente os Nawa na sua terra indígena, situada em Mâncio Lima, no Acre nas proximidades da linha da fronteira Brasil-Peru.

A linha do tempo das lutas Nawa

Desde fins da década de 1980, quando a Regional Vale do Juruá do Conselho Nacional dos  Seringueiros  (CNS)  e a Organização  dos  Povos  Indígenas  do Rio  Juruá  (OPIRJ) decidiram unificar suas lutas por direitos territoriais e por projetos comuns no âmbito da “Aliança dos Povos da Floresta”, para fazer avançar os processos de regularização fundiária de terras indígenas e de criação e implantação das primeiras reservas extrativistas na região do Alto Juruá e no estado, o governo federal criou o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD) pelo Decreto 97.839, de 16 de junho de 1989, com uma grande extensão de 843.012 hectares, abrangendo partes dos municípios de Mâncio Lima, Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves, Porto Walter e Marechal Thaumaturgo, onde anteriormente habitavam cerca de 520 famílias de agricultores e seringueiros, com uma população então estimada em cerca de 2.500 moradores tradicionais da floresta.

No entanto, o PNSD foi criado sem nenhuma consulta prévia às populações tradicionais e indígenas que ali viviam desde o início do século passado. A partir de 1999, logo após a elaboração do Plano de Manejo do PNSD, o órgão ambiental oficial do governo federal iniciou o cadastramento da população moradora do PNSD, visando promover a desapropriação, o reassentamento e a indenização de suas benfeitorias. Ou seja, transformando as populações tradicionais da floresta, que tiveram os seus territórios tradicionais sobrepostos pela criação do PNSD, em meros “invasores do Parque Nacional”.

Na eminência de perderem seus territórios tradicionais, os “caboclos misturados” dos igarapés Novo Recreio, Jesumira, Jordão e adjacências no alto rio Moa apelaram à Funai para o reconhecimento de sua identidade étnica Nawa e a identificação e demarcação de suas terras tradicionais, que foram sobrepostas pelo PNSD.

A crise fortaleceu a identidade étnica como forma de resistência à expulsão do PNSD e a disposição de uma luta por um território próprio. Em maio de 2000, o antropólogo Antônio Pereira Neto, então Administrador Regional da Funai de Rio Branco, visitou pela primeira vez os Nawa, ocasião em que realizou um minucioso censo demográfico da população indígena que se identificou como Nawa, que vivia dentro e fora das áreas do PNSD por eles reivindicadas. No seu “relatório preliminar” de 2000,  Pereira Neto registrou oficialmente, e pela primeira vez, as demandas dos Nawa pelo seu reconhecimento étnico e pelo direito as suas terras tradicionalmente ocupadas no alto rio Moa.

Antônio Pereira Neto constatou a existência de 319 indígenas que se identificaram como Nawa, dos quais 258 deles viviam em suas áreas tradicionais que foram sobrepostas pela criação do PNSD; 13 indígenas eram Nukini aparentados  com  os  Nawa  e 48  outros viviam  em  cidades  de diferentes  estados. Segundo o antropólogo da Funai, a população Nawa vivia dispersa pelos igarapés Novo Recreio, Jesumira, Velha, Pijuca e Jordão e ainda pela margem direita do alto rio Moa, bem como na TI Nukini (Pereira Neto, 2000).

No mencionado relatório, Pereira Neto ressaltou ainda a composição étnica dessa população Nawa, constituída pela mistura de diferentes povos: Nawa, Nukini, Puyanawa, Jaminawa-Arara, Arara/Shawãdawa, Ashaninka e brancos casados com membros desses grupos e outros poucos “caboclos” que não sabiam mais a que grupos indígenas descendiam.

Em 2002, a antropóloga Delvair Montagner realizou, por solicitação do MPF e da Justiça Federal no Estado do Acre, uma perícia antropológica que comprovou a “etnogênese Nawa”: “Ressurgiram os Nawa, decididos a enfrentar os obstáculos impostos pelos brancos e se mostrarem como uma etnia, consciente de seu poder de persuasão, união, coesão e habilidade política. Os descendentes de Maria Borges e Maria Ana da Conceição são os atuais Nawa. Maria Ana da Conceição é considerada cabocla legítima Nawa, cabocla pintada (tatuada), que foi pega no mato a cachorro, na atual Cruzeiro do Sul. Francisco Chaga também é considerado Nawa, tendo nascido no igarapé Novo Recreio. Existem mulheres que são sempre lembradas nas citações por serem as matrizes Nawa, como as caboclas que foram pegas, entre elas, Maria Chata, Maria Veia, Maria Paca e Maria Braba, contando-se várias histórias da vida dessas duas últimas”, escreveu Montagner.

Em agosto de 2003, a Justiça Federal no Acre, em audiência com o Ministério Público Federal, Procuradoria da União Federal, Ibama e Funai, reconheceu o povo Nawa, com base nos dados, informações e evidências contidas na perícia antropológica realizada em 2002. Nessa audiência pública, a Funai também se comprometeu em constituir um grupo técnico para iniciar os estudos de identificação e delimitação da TI Nawa, inserida na área norte do PNSD. E ainda se comprometeu, junto com o Ibama, a elaborar um “Plano de Manejo da TI Nawa” que concilie as “normas ambientais do PNSD” com o “plano de gestão da terra indígena”.

Ainda em 2003, a Funai constituiu um grupo técnico, coordenado pelo antropólogo Cloude Correa, para elaborar, com base em pesquisa de campo, um “levantamento prévio” das demandas territoriais dos Nawa e Nukini (visando a revisão de limites da TI Nukini). O relatório do levantamento prévio foi encaminhado à Funai em janeiro de 2004. No mesmo ano a Funai constituiu, com base no Decreto 1775/96 e na Portaria 14/96, o “Grupo Técnico (GT) de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Nawa”. Em julho de 2004, o Cloude Correa, então coordenador do GT da Funai, encaminhou ao órgão uma “versão ainda preliminar” do relatório de identificação da TI Nawa, com extensão de 83.218 hectares, tendo como limites naturais: os igarapés Jesumira, a montante da terra indígena, e Jordão, a jusante, a margem direita do alto rio Moa compreendida entre estes dois igarapés, tida como a frente da terra, e tendo pelos fundos, atravessando a própria Serra, as proximidades da linha de fronteira Brasil-Peru.

O mapa da delimitação da TI Nawa, tal como pactuado com os representantes e lideranças Nawa, também foi encaminhado à Funai, por solicitação da sua Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID) da Diretoria de Proteção Territorial (DPT). Ainda em outubro de 2004, tão logo tomaram conhecimento da “versão preliminar” do relatório de identificação e do mapa de delimitação da TI Nawa, os procuradores do Ibama e da União Federal ingressaram com uma ação judicial na Justiça Federal do Acre, discordando dos limites da TI Nawa, proposto pelo grupo técnico da Funai de 2004, alegando que, com essa extensão proposta de 83.218 hectares, implicaria na “divisão do PNSD em dois”. Acatando a ação judicial apresentada pelos procuradores do Ibama e União Federal, a Justiça Federal determinou “a redução de 30 mil hectares nos fundos da Terra Indígena Nawa” para não dividir o PNSD “em duas áreas descontínuas”.

Os Nawa e suas lideranças ficaram chocados com a decisão da Justiça Federal no Acre. O órgão indigenista federal, por omissão deliberada, não tomou nenhuma iniciativa para constituir um novo grupo técnico para complementar e adequar os estudos de a identificação e delimitação da terra indígena às determinações da Justiça Federal, que por fim estabeleceu uma extensão de 53.218 hectares para a TI Nawa.

Em julho de 2015, decorridos mais de 10 anos de paralização do processo de regularização de suas terras tradicionais, os Nawa mantiveram retidos na sede da aldeia Novo Recreio, por três dias, uma equipe formada por quatro servidores federais, três deles do ICMBio, dentre os quais o Gestor do PNSD, e um da Funai, sendo este o seu Coordenador Regional no Vale do Juruá, com a finalidade de retomar as suas lutas pela identificação e demarcação de sua terra indígena.

Para liberar os quatro reféns, as lideranças Nawa exigiram a continuidade dos estudos de identificação e delimitação de sua terra indígena e, além disso, propuseram uma reunião na aldeia Novo Recreio com as presidências da Funai e do ICMBio, mas ela não aconteceu na aldeia. Uma comitiva de lideranças e representes Nawa viajou até Brasília para discutir com os presidentes da Funai e do ICMBio a continuidade do processo de regularização da TI Nawa, então paralisado há mais de uma década.

Dessa reunião com os dirigentes da Funai e ICMBio, em Brasília, resultou apenas a sugestão para que os dois órgãos federais constituíssem, em conjunto, um novo grupo técnico para retomar os estudos de identificação e delimitação da TI Nawa, de acordo  com a  sentença    judicial  proferida  pela  Justiça  Federal, que determinou  a exclusão de 30 mil hectares nos fundos da terra indígena. Mas esse novo grupo técnico, até o presente momento, nunca foi constituído oficialmente pelo ICMBio e Funai. Mais uma clara omissão dos órgãos federais em postergar a regularização fundiária da TI Nawa.

Em 2016, os Nawa demandaram, em várias ocasiões, novas reuniões com as autoridades da Funai e do ICMBio para saber o que precisava ser feito para destravar o processo de regularização de suas terras tradicionais, paralisado desde 2004/05, permanecendo até hoje ainda na fase inicial de sua identificação e delimitação.

Em nova reunião realizada na Funai em julho de 2016 em Brasília com lideranças Nawa, ficou acordado que a Funai, de acordo com as normas do PNGATI (Programa Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas), poderia resolver a questão da “sobreposição e da dupla afetação” da TI Nawa e do PNSD, mediante a “gestão compartilhada”. Alegando que para isso acontecer, bastaria firmar um termo de acordo com a comunidade indígena e o ICMBio para “construir uma proposta conjunta para essa gestão”. No entanto, a Funai até hoje não consolidou esse “termo de compromisso”, seja com o ICMBio, tampouco com as comunidades Nawa.

Em 2018, o ICMBio realizou um novo cadastramento da população moradora do PNSD, no qual os Nawa foram incluídos. No entanto, esse novo cadastro dos moradores do PNSD foi visto com muita desconfiança pelas lideranças e representantes das aldeias Nawa, como mais uma tentativa para retirá-los da área norte do Parque, mediante indenização de suas benfeitorias e de reassentamento em outros locais,  o  que  consideram  um  grande  desrespeito  aos  seus  direitos  territoriais, socioculturais, ambientais, econômicos e políticos. Os Nawa não se consideram moradores do Parque, portanto, não são “invasores do PNSD”, mas moradores da TI Nawa.

Como o PNSD se sobrepôs às terras tradicionalmente ocupadas pelos Nawa, o que falta mesmo agora é um bom entendimento entre a Funai e o ICMBio para a conclusão dos estudos de identificação da TI Nawa, adequando-os às determinações da Justiça Federal no Acre de 2004/05.Os Nawa ainda esperam firmar esse “termo de compromisso”, especialmente agora com a mudança do governo federal para um novo governo que valoriza a pauta indígena e ambientalista.

Em maio de 2021, as lideranças Nawa decidiram iniciar, com o apoio de todas as suas comunidades, os trabalhos de autodemarcação da TI Nawa, de acordo com os mesmos limites e extensão determinados pela Justiça Federal. No ano seguinte, quando visitamos os Nawa, o cacique Railson Carneiro e o vice cacique Francione Costa, nos levaram diretamente ao Acampamento Pão de Açúcar, no alto igarapé Novo Recreio, onde iniciaram os trabalhos de abertura de uma extensa picada nos fundos da terra indígena, interligando o alto curso do igarapés Jesumira, limite a montante da TI Nawa, e Jordão, limite a jusante da terra indígena. As lideranças Nawa, junto com 36 parentes, entre homens, mulheres, velhos e crianças, decidiram reabrir   o trecho da picada compreendido entre o Acampamento Pão de Açúcar, no alto igarapé Novo Recreio, até o alto curso do igarapé Jesumira, construindo um caminho que mais parece um verdadeiro túnel verde debaixo da floresta, sem derrubar nenhuma grande árvore, como eram feitos os varadouros e estradas de seringa no tempo dos antigos seringais.

Também aproveitaram essa viagem ao Acampamento Pão de Açúcar, na língua “Inu Awa”, para construir quatro novos tapiris permanentes. É digno de nota registrar que a abertura dessa picada, no limite dos fundos da TI Nawa, foi realizada com uso de bússolas manuais, tecnologia antiga usada até hoje pelos caçadores “na mata bruta”, tanto pelos Nawa, quanto por seus vizinhos Nukini e moradores regionais.

Outro ponto importante a destacar é o fato dos Nawa estarem relacionando os trabalhos da autodemarcação ao monitoramento e vigilância de sua terra indígena, construindo caminhos debaixo da floresta na picada dos fundos da terra indígena e ao longo dos igarapés Jesumira e Jordão, limites da terra indígena. Essas ações de proteção territorial são apoiadas pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) no âmbito das atividades dos projetos “Corredor Socioambiental Alto Juruá-Purus”, apoiado pela Rainforest Foundation Norway (RFN), e “Proteção dos Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil”, que é financiado pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha, por intermédio da rede WWF, e realizado por um consórcio de parceiros formado por Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), Comitê Chico Mendes, Fiocruz, Fiotec, Imaflora, Kanindé, Pacto das Águas, Projeto Saúde e Alegria (PSA) e WWF-Brasil.

Os trabalhos de autodemarcação da TI Nawa iniciados em 2021 ainda não foram concluídos. É um processo demorado. A expectativa dos Nawa é dar prosseguimento e finalmente concluir, até este ano a autodemarcação de sua terra. Neste mês de abril, uma comitiva de lideranças Nawa irá à Brasília, no contexto do Acampamento Terra Livre (ATL) –  que acontecerá nos dias 24 a 28 –  com o propósito de reivindicar junto à nova presidência da Funai a continuidade do processo de regularização do território, propondo que seja instituído um novo GT de Identificação e Delimitação da TI Nawa . Aproveitando a oportunidade, as lideranças Nawa irão dialogar com a Coordenação Geral de Populações Tradicionais (CGPT) do ICMBio para a discussão do termo de compromisso entre o ICMBio e os Nawa, com a mediação da Funai.