Oficina com monitores de proteção territorial na aldeia Nova Fronteira, TI Alto Rio Purus (foto: CPI-Acre)

 Branca Opazo Medina*

As Terras Indígenas (TI) no Acre são conhecidas por suas grandes áreas de floresta protegida, e não é para menos: a cobertura florestal do conjunto das TIs do estado é maior que 99%. Contudo, nos últimos seis anos essas áreas estão cada vez mais ameaçadas. São crescentes os relatos e registros dos indígenas sobre invasões de pessoas estranhas principalmente para caçadas ilegais, mas também para pescar, retirar madeira, roubar ovos de tracajás, retirar produtos como açaí, abrir áreas para roçados, e mesmo para desmatar, dentre outros ilícitos. Os indígenas têm informado também sobre o aumento de movimentação de indígenas em isolamento voluntário, e cada vez mais próximo das aldeias. Isso reflete, ao menos em parte, o aumento das pressões sobre as florestas tanto no Brasil quanto no Peru.

Nesse contexto, o Setor de Geoprocessamento (SEGEO) da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre) vem atuando desde 2018, junto com os parceiros indígenas, com mais ênfase na temática da proteção territorial. Da parte da CPI-Acre, uma etapa central das estratégias de proteção territorial é a formação de monitores indígenas em geotecnologias para a qualificação dos registros durante as ações de vigilância e monitoramento. Outros aspectos importantes dessa formação são a contextualização da proteção territorial dentro dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das Terras Indígenas, que inclui:  a discussão do que é e como é proteger e monitorar as TIs; a reflexão sobre o porquê se deve proteger o território e quais são as responsabilidades do monitor; o etnomapeamento das ameaças, dos indígenas em isolamento voluntário e das áreas monitoradas; o planejamento das equipes de monitores indígenas e de suas atividades de monitoramento; noções básicas de cartografia e a qualificação das informações, com o uso de smartphones e aplicativos de geolocalização; a gestão integrada e incidência política (conforme registrado mais adiante); salvaguardas socioambientais e protocolos de segurança. Passaram por essas formações até hoje mais de 300 indígenas de 15 TIs, onde atualmente 22 equipes de monitoramento estão atuantes.

A evolução dos processos formativos

Esse formato não nasceu pronto. Com o passar do tempo, a cada experiência de formação e com avaliação participativa contínua do trabalho realizado pelos monitores indígenas, a equipe do SEGEO, junto com os monitores e monitoras de vigilância, lideranças indígenas e agentes agroflorestais, foi percebendo que ajustes precisavam ser feitos. Faltava, inicialmente, explicar melhor sobre a incidência política, como transformar as informações registradas em ação, e refletir que ações seriam essas, o papel de cada órgão público, suas respectivas obrigações e responsabilidades, com eventuais participações de representantes desses órgãos durante as oficinas. Esses esclarecimentos para os indígenas são muito importantes para que estejam preparados para agir com maior chance de conseguirem os resultados que buscam. A gestão integrada com os vizinhos, em especial comunitários de Reservas Extrativistas (RESEX), tem se fortalecido bastante nos últimos anos. Refletindo e trabalhando juntos – indígenas e extrativistas, a força da proteção dos territórios se amplia.

A discussão sobre salvaguardas socioambientais no contexto da proteção territorial entrou mais recentemente nos processos formativos, e está relacionada também com o início da formação para o manejo de drones. Reflete-se sobre a importância dos equipamentos tecnológicos para o trabalho dos monitores, mas também sobre os perigos que eles trazem e os cuidados que se deve ter, no uso dessas ferramentas e principalmente nos cuidados com a segurança das pessoas.

O protocolo de segurança, em construção conjunta com indígenas envolvidos na vigilância territorial, trata também da questão da abordagem a ser utilizada com os invasores, os cuidados com a segurança dos dados e informações registradas, exposição da equipe de monitoramento na internet, as responsabilidades em relação aos equipamentos e, principalmente, em relação ao território, à comunidade e com sua própria vida, saúde e bem-estar.

Em relação ao drone, tem se dado ênfase cada vez maior ao plano de voo, que reúne os procedimentos primordiais para o bom funcionamento e sobrevida do equipamento, para a segurança de quem o manuseia e de toda a comunidade.

As ferramentas tecnológicas utilizadas nas formações e no trabalho de monitoramento estão em constante avaliação pelas equipes indígenas de monitoramento e vigilância. Levando em conta que os aplicativos para telefones celulares em geral não são desenvolvidos para o público indígena, foi realizada ampla pesquisa com avaliação comparativa de diversos aplicativos e plataformas de armazenamento de dados. No cômputo geral, foi considerado que o Alerta Clima Indígena (ACI), desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e associado à plataforma SOMAI (Sistema de Observação e Monitoramento da Amazônia Indígena), é considerado a melhor opção para a realidade das TIs do Acre e para a equipe do SEGEO. O objetivo do ACI é ampliar a difusão de informações sobre queimadas, desmatamento, chuvas e temperaturas nas TIs da Amazônia brasileira. Foi elaborado com indígenas e para indígenas e sua interface é simples e de fácil acesso.

O monitor indígena cria os próprios alertas, visualiza imagens de satélite e dados de sensoriamento remoto de desmatamento e focos de calor no entorno e dentro das TIs. O aplicativo já vem pronto para uso e não é necessário montar formulários e padronizações como nos aplicativos de base de dados abertas (ODK). Envia foto, áudio e texto e tem alto grau de segurança de dados, com cadastro e senha. Ainda, o ACI envia os dados para a plataforma SOMAI, facilitando a união das informações de diferentes monitores e equipes de cada TI e o acompanhamento e avaliação do uso do ACI, que levam a novas orientações e estratégias nas formações. Os dados reunidos na plataforma possibilitam a sua sistematização e organização para embasar ações de gestão integrada, com diálogo e sensibilização dos vizinhos, ou de incidência política, quando se torna necessário realizar uma denúncia. A plataforma possibilita, também, que os próprios indígenas consigam gerar seus relatórios e mapas.

Mesmo com as formações realizadas no Centro de Formação do Povos da Floresta (CFPF), em Rio Branco, e nos territórios, ainda há dificuldades e dúvidas no uso dessas ferramentas durante os trabalhos. Assim, em 2023 intensificaram-se as viagens de assessoria técnica em geotecnologias, com a participação de assessores técnicos do SEGEO nas expedições de monitoramento indígena. Até o momento, aconteceram três viagens de assessoria, às TIs Nawa, Mamoadate e Kaxinawá do Rio Humaitá que permitiram uma avaliação mais próxima e detalhada do trabalho dos monitores, entendendo melhor suas dificuldades, os potenciais de novos monitores a serem formados, e, o mais importante, a produção indígena de registros com maior qualidade e com uso adequado dos aplicativos.

Ressalta-se que alguns indígenas já começaram a organizar essas assessorias diretamente com suas equipes, realizando treinamentos com smartfones, aplicativos e drones, com destaque para o povo Huni Kuĩ da TI Katukina/Kaxinawá. A última oficina realizada no CFPF contou com a consultoria de um monitor indígena deste povo e TI como facilitador.

O horizonte é que os indígenas se tornem plenamente autônomos e protagonistas desses processos, desde a organização, planejamento e realização das expedições, com registros qualificados, até a elaboração das denúncias, mapas, ou qualquer outro documento que queiram elaborar para comunicar as ameaças; e que aumente o quadro técnico de indígenas consultores, facilitadores e assessores nas formações em geotecnologias para a proteção das terras indígenas do Acre.

* Coordenadora do Setor de Geoprocessamento da CPI-Acre