As parteiras indígenas garantem o meio afetivo e o ambiente que circunda a cena do parto e zelam pela importância do nascer sem violência. (foto: Paolo Altruda)

Por Edilene Machado Barbosa

As mulheres indígenas são as protagonistas de muitas atividades em suas comunidades, como o cuidado com os filhos, o plantio e colheitas, o cuidado com os netos, para que suas filhas possam sair de casa para estudar ou para buscar alimentos nas pescarias; fortalecer a cultura Shanenawa por meio dos cantos e das danças, o cuidar dos idosos, assim como as práticas do parto tradicional.

São as parteiras indígenas que garantem o meio afetivo e o ambiente que circunda a cena do parto. Além disso, zelam pela importância do nascer sem violência, oferecendo apoio emocional durante todo o processo, ou seja, acompanham as mães grávidas, para que haja um bem nascer, ou, traduzido para linguagem do Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS), um “parto humanizado”.

Na Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, na aldeia Morada Nova,  a parteira Nãy Kasha, a Dona Mariléia (nome em português), relata como começou o primeiro parto Shanenawa:
“Todas as mulheres que engravidavam tinham em mente que morreriam. Havia apenas uma mulher que fazia os partos e, de todos que ela fazia, tirava o fígado da mãe para comer com pão de milho. Então, certo dia, uma ‘ratinha’ ouviu a parteira dizendo que comia o fígado todas as vezes que ia fazer um parto. Já levava o pão de milho pronto para então comer com o fígado das mulheres. Em todos os partos que ela fazia, matava a mãe e deixava a criança com o pai. Já era certo que a parteira, quando terminava o parto, pegava o sangue e molhava no pão de milho. Todos os partos eram feitos da mesma maneira. Então, quando a ratinha ia para o paiol comer milho, vendo o sofrimento da mulher, ensinou a maneira mais leve de nascer às crianças Shanenawa. Ensinou a fazer dieta, a fazer o pré-natal, como exemplo, não comer peixe Bodó, pois ele entra na loca dentro do rio, e ela ensinou para as mulheres Shanenawa o que não fazia bem na hora do parto. Outra informação importante é que, após o parto, elas pegam a placenta, enterram e, antes de enterrar, passam parte da placenta nos lábios da mãe ao terminar o parto”.  

Essa narrativa apresenta o modo como as histórias sintetizam os conhecimentos, e em específico os conhecimentos sobre o parto. Há o relato de que o parto foi aprendido com a natureza, através do conhecimento da natureza.  Ou seja, um aprendizado inserido entre as demais formas de nascer presentes na natureza. E foi uma ratinha que ensinou o modo de conduzir um bom parto e a seguir uma dieta para completar todo o processo.

As parteiras eram inicialmente conhecidas como comadres ou aparadeiras, no sentido de auxílio e acompanhamento, distanciando-se do entendimento que o médico ou obstetra ocupa no imaginário social, principalmente, não-indígena, como o responsável pelo nascimento.

Parteira Maxi Shanenawa, da aldeia Morada Nova. (foto cedida por Edilene Barbosa)

As mulheres Shanenawa nunca deixaram de praticar os partos tradicionais. Desde o tempo das onze famílias que vieram para a aldeia Morada Nova, do antigo seringal Brasília, até os dias atuais são praticados os partos tradicionais shanenawa. Por meio de narrativas como as histórias de vida, as parteiras expressam o conteúdo, o limite e as origens dos processos de diferenciação entre grupos sociais.

Dieta da mulher grávida

Para as parteiras Shanenawa a alimentação tradicional e de suma importância. Quando as gravidas vão fazer acompanhamento com uma parteira mais velhas ela faz uma seleção de alimentos e específica para as mães não comer frangos comprados nas cidades, não comer enlatados, etc.

Na comunidade a mulher grávida realiza a sua alimentação por meio do cardápio tradicional dos Shanenawa, que é mandioca, peixe, frango, carne de caça, veado, paca, cutia, tatu e banana comprida. Isso fará com que o bebê nasça mais forte, pois não se trata apenas de uma alimentação saudável. Juntamente com o acompanhamento espiritual, esses alimentos tornam-se uma dieta muito eficiente. Sempre faz os cardápios tradicionais como peixe assado, banana cozida, batata doce, inhame, cará, mandioca, e ensina as mais jovens fazer a massa de banana verde para quando os bebês nascerem eles possam ser alimentar com dieta do povo.

Certo dia, na reunião da comunidade, aproveitei para conversar com a parteira Nãy Kasha, que me contou mais sobre a dieta da mulher grávida:

“Vou te contar como nós antigamente fazíamos na gravidez: Quando a mulher está grávida, a gente faz dieta, não come bodó, porque bodó faz muito sangue. O bodó tem aquelas duas asas que provocam arriscado para o parto.

A gente não come bodó, tambuatá que é de casca; ninguém come capivara, tatu, arraia, jabuti. Também nós, indígenas, não comemos, mas nawa come. Essas são as dietas da gravidez e quando a gente ganha o bebê, o resguardo.

 O parto é a mesma dieta:  não podemos comer mandim, que tem esporão; não come surubim. Então, para comer esses peixes de esporão, a gente tem nossa medicina Shanenawa, a folha se chama tunu sese.  

O pai ou avô vai tirar, a gente faz o cozimento, dá banho na criança, a gente come e não se preocupa mais. Tem mais dieta: o pai vai trabalhar não pode ver a criança com o corpo quente, a criança pode adoecer, o pai durante uma caçada à noite quando chegar não pode entrar de uma vez, tem uma folha para defumar que é fekuniti.

Nem mãe e nem pai pode comer assado, só moqueado, não pode comer porco da mata porque a criança pode ter febre bem alta, pode ter crise. [Não pode comer] cutia, macaco, porque dá dor na cabeça ou dá crise. Essas são as dietas que a gente fazia antigamente quando estava de resguardo.

Quando a gente está de resguardo e tem quer comer assado, o marido ou a mãe têm que assar só na brasa, sem aquelas chamas de fogo por perto. Assa só na quentura da brasa e a mulher come porque [de outra forma] faz mal à criança.

A menstruação a menina nova que menstruar a primeira vez, a mãe passa urucum e usa medicina também, uma folha chamada nenautsi. E kapasheta é outra folha para menstruação, faz pra ela tomar e compressa no pé da barriga se sentir dor de cólica.

Ela seguindo toda a dieta direito, irá menstruar normal, no máximo ela menstruará três dias. Durante essas dietas não pode comer doce e nem tomar água, porque o chá o substitui”.

Com esse relato podemos ver que o modo como se realiza a alimentação da grávida fará com que o bebê nasça mais forte, devido ao fato de não apenas fazer uso de uma alimentação saudável, mas também ao acompanhamento espiritual, realizado pelas parteiras e pajés, tornando-a, portanto, uma “dieta” eficiente, caracterizada para além da utilização da alimentação ou das plantas. Essa alimentação, portanto, vai além do uso das plantas.
A prática desses conhecimentos é muito importante para a continuidade de ações objetivando o chamado “bem nascer”. Acredito que as narrativas dessas parteiras e pajés medicinais revelam a melhor forma de conduzir uma gravidez para que o nascimento não apenas ocorra, mas também seja seguro e sadio, dentro da perspectiva do povo Shanenawa.

 Esse artigo foi retirado da pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade (UFAC), intitulada “Os saberes das parteiras e das mulheres pajés na aldeia Morada Nova do povo Shanenawa (Terra Indígena Katukina/Kaxinawá) em Feijó/AC: linguagens e produções identitárias”, de autoria da Ma. Edilene Machado Barbosa e orientação do Prof. Dr. Marcos de Almeida Matos