Por Gleyson Teixeira*
A coluna dessa semana aborda pontos críticos na situação da educação escolar indígena no Acre, por meio de manifestações públicas de professores e professoras indígenas, dirigidas à Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esportes (SEE/AC). Antes, é importante lembrar, brevemente, algumas tentativas de desestruturação das políticas públicas observadas em anos recentes no país.
O Brasil vive desde o ano passado um momento de reconstrução de políticas públicas, após o estrago realizado pelo “governo Bolsonaro”. Algumas dessas políticas, como as de educação, levarão anos para a retomada da trajetória anterior. Os cortes no orçamento promovidos no período, inviabilizaram a continuidade de programas e ações. A dimensão da participação social em âmbito governamental sofreu com paralisações e retrocessos institucionais.
No campo da educação escolar indígena foi observada a paralisação de ações como o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind), o Programa Bolsa Permanência de estudantes indígenas para graduação e pós-graduação, o Programa de Ações Articuladas (PAR-Indígena) e o Programa Saberes Indígenas. Quanto à participação, vários canais de diálogo foram paralisados como a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), o Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (CG-PNGATI) e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), sendo retomados recentemente.
O desmonte no âmbito federal teve efeitos nos estados e municípios, que dependem parcialmente de transferências voluntárias de recursos e assistência técnica do Ministério da Educação (MEC) para o desenvolvimento de ações na área de educação escolar indígena. Todavia, esse contexto anterior só explica em parte a inércia dos gestores públicos estaduais (SEE/AC) na oferta de serviços e equipamentos públicos voltados às comunidades escolares indígenas.
Não ação na educação escolar indígena
A educação escolar indígena vem a bastante tempo sendo alvo de debates e posicionamentos diante da escassez de ações públicas. Manifestações nesse sentido estão registradas em diversos documentos (cartas abertas aos governantes) assinados por organizações indígenas, e resultantes de seminários e encontros que reuniram lideranças de diversos povos e territórios. O mais recente desses documentos é a Carta Aberta da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) enviada ao Secretário de Estado de Educação em outubro de 2023, em que trechos serão replicados a seguir.
“Os momentos difíceis que vivemos anteriormente no país, com a descontinuidade ou paralisação de ações do Governo Federal para os povos indígenas e a ocorrência da pandemia, fizeram acentuar desigualdades e as restrições que estavam presentes antes, nas condições de oferta da educação escolar indígena no Acre. Avaliamos, que o desatendimento de prioridades para as condições básicas à educação escolar indígena, ainda hoje, é exemplo de omissão do Estado que viola nossos direitos.”
Na Carta foram apresentadas 16 medidas para a retomada imediata das políticas educacionais para os povos indígenas no estado, que podem ser lidas na íntegra acessando o documento aqui. Dentre as medidas, destacaremos algumas abaixo.
“A instalação imediata dos trabalhos da Comissão Estadual de Educação Escolar Indígena, criada pela Portaria nº 2.829 de 05 de dezembro de 2018, com condições que garantam a participação efetiva de representantes indígenas e o funcionamento regular da Comissão.” Essa instância representa o principal instrumento e mecanismo de relacionamento Estado/Sociedade com caráter consultivo e deliberativo sobre políticas educacionais estaduais para os povos indígenas. Passados mais de cinco anos da publicação do ato administrativo de criação da Comissão, diferentes gestores que estiveram à frente da secretaria de educação demonstraram falta de interesse em inaugurar os trabalhos e mesmo estabelecer diálogo com a OPIAC.
A necessidade de “realizar um diagnóstico da situação escolar em todas as terras indígenas no Acre que subsidie as decisões da Comissão e a elaboração de projetos do governo estadual para captação de financiamento.” Somada a experiência das comunidades sobre as demandas e os problemas vividos na educação escolar, a realização desse diagnóstico é um passo inicial importante para o estabelecimento de metas e soluções para os problemas e precisa ocorrer em diálogo com a sociedade, com os povos indígenas e suas comunidades educativas.
“Retomar a realização dos cursos de formação de magistério indígena e das viagens das equipes da Secretaria de Educação para a assessoria pedagógica.” A formação de professores indígenas se tornou uma das questões mais preocupantes para as comunidades indígenas. De acordo com dados do Censo Escolar 2022 do IBGE, na rede estadual, entre os 434 docentes atuantes, 14% têm formação superior, 52% com nível médio e 34% ainda com o ensino fundamental. Entre 2011 e 2023, apenas um curso de formação no magistério indígena de nível médio foi ofertado. A realização de oficinas e acompanhamentos pedagógicos pontuais (“jornadas pedagógicas”) não respondem a demanda por formação regular, sistemática e ampla dos professores indígenas.
“Realizar concurso público, específico e diferenciado para a contratação efetiva dos profissionais indígenas de educação, garantindo a consulta livre, prévia e informada junto aos povos indígenas e à OPIAC (segundo determina a Lei 3.467, de 27 de dezembro de 2013).” O único processo seletivo para contratação permanente de professores indígenas realizado pelo governo estadual data do início dos anos 90. Na ausência de concursos públicos, sucessivos governos no Acre vêm impondo contratos temporários. Portanto, professores e outros profissionais não possuem um plano de carreira, não incorporam gratificações de tempo de serviço e evolução funcional aos salários e não possuem todos os direitos trabalhistas de servidores efetivos. Pelo caráter permanente da demanda por educação básica existente nas terras indígenas e, que se amplia a cada ano, o governo não pode continuar dispensando concurso para os profissionais já atuantes e com qualificação para a carreira no Magistério Público Indígena. Uma avaliação dos dados apresentados pelo Censo Escolar 2022 apontam que mais de 90% dos docentes da rede estadual de ensino possuem contrato temporário.
“Realizar a construção e a reforma das escolas nas aldeias com urgência”. A falta de condições básicas para o funcionamento das escolas, com insuficiência de estruturas físicas e materiais, somados aos demais problemas expostos aqui, vem mantendo os povos indígenas ainda bem distantes do básico em oferta de políticas públicas e provocando a saída de muitos jovens estudantes para as cidades.
O movimento de professores e outras lideranças e organizações indígenas vem há anos enviando declarações para o executivo estadual e fazendo denúncias, sem, contudo, obter resposta satisfatória até o momento. “Estamos há muito tempo apresentando à SEE/AC esses e outros problemas, em permanente diálogo na busca por soluções. São muitas as avaliações e declarações produzidas ao longo de anos, frutos de reuniões como essa, seminários anuais sobre políticas públicas, encontros promovidos por organizações indígenas, além das assembleias anuais da OPIAC. (…) Passados 5 anos da gestão do atual governador e dos poucos resultados alcançados na condução das políticas educacionais para nós povos indígenas e o que identificamos como graves e persistentes violações de direitos, nos reunimos mais uma vez na busca por soluções junto à SEE/AC…” diz outro trecho da Carta.
Os problemas públicos recorrentemente apresentados pelas lideranças indígenas, apontam para um aspecto pouco falado, mas observado no comportamento de diferentes governos: as políticas públicas não apenas são o que os governos fazem, mas também o que eles escolhem não fazer! Por mais estranho que isso pareça, não agir para solucionar problemas identificados como públicos também é uma política pública. Observamos isso na resistência dos gestores em implementar políticas, quase sempre utilizando como justificativa a falta de recursos.
Embora os gestores invoquem a falta de recursos para a implementação das políticas, a experiência vem demonstrando que a limitação orçamentária não é um argumento que se mantem em pé. Exemplo que fortalece isso é o fato da existência de recursos via PAR-Indígena (MEC) obtidos pela SEE/AC para formação de professores, que ficaram paralisados e que até onde sabemos não foram executados e não houve qualquer comunicado público sobre o destino desse orçamento e esforços para viabilizar sua execução. Em relação a isso, vale destacar a necessidade de detalhamento e apresentação pública e transparente do orçamento da Educação Básica aplicado às escolas indígenas. Isso envolveria movimentos internos as diversas instâncias executivas da SEE/AC para evitar orçamentos genéricos, que dificultam o acompanhamento de sua execução pelas organizações indígenas e outros interessados
Portanto, a não-decisão, a omissão dos gestores sobre a destinação de recursos, a não instalação da Comissão Estadual de Educação Escolar Indígena para o diálogo institucionalizado, a não realização de outras tantas ações executivas para solução de problemas, evidenciam uma escolha com impactos graves, sobretudo, para a juventude indígena.
A atuação do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual na cobrança pelo cumprimento dos dispositivos constitucionais e legais e implementação dessas políticas públicas é fundamental para a retomada da ação governamental. Dois pontos iniciais são importante e sem os quais, há um enorme risco da resposta da SEE/AC não ser a retomada desejada da educação escolar indígena. O primeiro, que as decisões dos gestores públicos ocorram com procedimentos de participação e consulta aos povos indígenas, sendo o passo inaugural para isso a instalação da Comissão Estadual de Educação Escolar Indígena. O segundo, que a SEE/AC responda com ações imediatas, concretas, articuladas e com prazos para solução dos vários problemas apontados.
*Assessor do Programa de Políticas Públicas e Articulação Regional da CPI-Acre