A fronteira do Brasil com o Peru está sendo objeto de uma série de projetos, ações e desregulamentações que põe em risco o patrimônio ambiental brasileiro, os direitos territoriais das populações locais e representam sério risco à legalidade.

A Comissão Pró Índio do Acre, em sua missão de apoiar os povos indígenas no exercício de seus direitos coletivos, por meio do Programa de Políticas Públicas e Articulação Regional em parceria com associações indígenas e organizações não-governamentais da região, está monitorando as propostas de projetos de construção de duas estradas para integração rodoviária do oeste acreano com cidades peruanas que causam preocupações. Apresentaremos sucintamente os interesses envolvidos na construção de cada um das duas estradas, os direitos individuais e coletivos que estão sendo violados, e os riscos e ameaças que seus projetos representam.

A CONSTRUÇÃO DE ESTRADA ENTRE CRUZEIRO DO SUL E PUCALLPA

O projeto de construção de uma rodovia interligando as cidades de Cruzeiro do Sul, estado do Acre, e Pucallpa, departamento de Ucayali, levanta uma série de questões relacionadas aos impactos socioambientais em uma região de alta diversidade biológica e sociocultural, com a presença de terras indígenas regularizadas, terras indígenas em processo de demarcação, indígenas em isolamento voluntário e contato inicial, unidades de conservação de uso sustentável e de proteção integral e, também, comunidades tradicionais marcadamente extrativistas e ribeirinhas.

No Brasil, a construção está em fase de planejamento, com previsão de recursos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2021. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) informa que já foram realizados os estudos prévios e que há expectativa de lançamento de edital de licitação para contratação de projeto executivo de engenharia a ser concluído ainda no ano de 2021. No Peru, foi aprovado em 21 de maio de 2021 o Projeto de Lei nº 6486/2020, que declara a necessidade pública e interesse nacional do projeto, autorizando o poder executivo a estabelecer os mecanismos necessários à sua consecução.

A proposta de construir essa estrada carrega muitos riscos a serem analisados. Esses podem ser divididos entre os decorrentes dos impactos do traçado da rodovia e os que serão consequência dos interesses envolvidos em sua construção, ou seja, o contexto regional, binacional, de exploração econômica de recursos naturais, assim como de movimentação de investimentos na relação entre o setor público e o privado. Apresentaremos, a seguir, o andamento dos projetos de construção das estradas organizados conforme os atentados e as ameaças que representam.

  1. Falta de participação social e de transparência sobre o projeto

A construção de estradas foi a ponta de lança para a intervenção e alteração da paisagem amazônica nas últimas décadas. Há um acúmulo de análises sobre as consequências de grandes obras de infraestrutura viária que ensinam como projetos autoritários ensejam a desorganização da vida das populações nativas ao submetê-las aos impactos socioambientais decorrentes da abertura de vias impostas em nome de projetos alheios à dinâmica local, orientados pelo interesse na exploração predatória e não sustentável dos recursos naturais, assim como de alocação intensiva e temporária de mão de obra. O tempo dos projetos de colonização, invasão de territórios e submissão das populações nativas é parte do nosso passado. A Constituição Federal de 1988 protege as populações de arbítrios injustificados ao garantir o direito à participação social cidadã e ao controle social das ações do Estado. O exercício desse direito depende da transparência e publicidade das ações praticadas pela administração pública.

  1. Direito de Consulta Prévia, Livre e Informada

            Apesar das notícias sobre o andamento do projeto, não há qualquer inciativa que responda ao imperativo de realização de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais, conforme determina a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho, tratado internacional do qual o Brasil é signatário e que é parte do ordenamento jurídico nacional por meio do Decreto 5.051, de 19 de Abril de 2004.

  1. Impactos socioambientais e proteção dos povos em isolamento voluntário

A área que seria impactada pela construção da estrada de Cruzeiro do Sul a Pucallpa é constituída por um mosaico de Unidades de Conservação, Projetos de Assentamento, Terras Indígenas e territórios resguardados para os povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato. Destacam-se, como áreas de influência direta do lado brasileiro, os territórios dos povos Puyanawa, Nawa, Nukini, projetos de assentamento da reforma agrária, o Parque Nacional da Serra do Divisor e áreas com notícias de avistamento e vestígio de indígenas em isolamento voluntário. No território peruano, destacam-se áreas destinadas à conservação ambiental e numerosas comunidades nativas tituladas e em processo de reconhecimento territorial, afetando especialmente as comunidades de San Mateo, do povo Ashaninka, a comunidade Flor de Ucayali do povo Shipibo-Conibo, e a Reserva Territorial Isconahua, destinada a indígenas em isolamento voluntário e contato inicial.

A análise de viabilidade de um empreendimento depende de um diagnóstico qualificado que leve em consideração os conhecimentos sobre o ambiente das populações locais e sua participação efetiva na definição dos eventuais impactos socioambientais e área afetada. Essa análise, necessariamente prévia, deve considerar que os impactos de rodovias pioneiras vão muito além do traçado principal, pois um complexo de estradas secundárias e ramais afluirão para o seu eixo; e, também, que os impactos sempre se relacionarão diretamente com a abrangência das sub bacias hidrográficas.

A projeção dos impactos socioambientais em um estudo de viabilidade deve considerar as dinâmicas ecossistêmicas e sociais que surgem como efeitos em cadeia de sua implantação e como consequência das alterações na paisagem, dos atentados contra o equilíbrio ambiental e da inserção de uma economia que busca renda e lucros não sustentáveis, que provocam a desorganização social e produtiva das comunidades.

  1. Alterações na dinâmica regional: desmatamento e concentração fundiária

As primeiras consequências de um projeto de construção de uma rodovia pioneira são conhecidas: o desmatamento, com a derrubada de florestas primárias, e a concentração fundiária[1].

A concentração fundiária e a grilagem ensejam grandes preocupações, pois não há um ordenamento territorial prévio pacificado, que garanta segurança jurídica de posse, propriedade e usufruto exclusivo dos titulares de direitos coletivos sobre terras da União. Há, na região, conflitos de sobreposição entre unidades territoriais e indícios de violência no campo que devem ser previamente solucionados, sob o risco de fragilizar os direitos das populações.

  1. Atentado contra o patrimônio ambiental brasileiro e comprometimento dos recursos hídricos

O projeto ameaça ferir um sensível ecossistema de características únicas dentre as unidades de conservação brasileiras. A Serra do Divisor, que limita as águas das bacias dos rios Ucayali e Juruá, é considerada uma das regiões com maior biodiversidade do planeta e possui singularidades relacionadas ao seu lugar de transição entre as terras baixas da Amazônia e os Andes. Em suas proximidades estão as cabeceiras do Rio Juruá, responsável por cerca de 2% da descarga anual do Rio Amazonas. A estrada interceptaria nascentes e cursos d’água fundamentais para a segurança hídrica regional. Em seu desenho de aproximadamente 285 km de comprimento, atravessará entre 32 e 40 cursos d’água das sub bacias dos rios Ucayali, Juruá e Tamaya.

Trata-se de uma área que prevê a continuidade de estudos científicos e que pode conter espécies preciosas para benefícios diversos, inclusive farmacológicos. Comunicações científicas apontam um ritmo intenso de descobertas de espécies endêmicas, além de abrigar muitas espécies de fauna ameaçadas que demandam atenção.

  1. As medidas legislativas que enviesam o projeto da estrada e ameaçam a legalidade

A construção da estrada entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa está acompanhada de uma estratégia de desregulamentação da proteção territorial e ambiental com vistas a promover facilidades no processo de planejamento, licitação e instalação do empreendimento. Tal estratégia ofende as bases republicanas que regem a relação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário.

Há Projetos de Lei (PL) que pretendem alterar a modalidade e o perímetro de áreas protegidas. Esses visam driblar a ação governamental de gestão e fiscalização ambiental dessas áreas, assim como os direitos coletivos e difusos, em uma ação coordenada de desregulamentação. Citamos os PL diretamente relacionados com o projeto.

  • PL 6024/2019 visa “alterar os limites da Reserva Extrativista Chico Mendes e modificar a categoria do Parque Nacional da Serra do Divisor”, transformando-o em Área de Proteção Ambiental.
  • PL 191/2020, “estabelece condições para a realização da pesquisa e lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas”; e suspende vedação para pesquisa e cultivo de organismos geneticamente modificados em terras indígenas.
  • PL 510/2021, conhecido como PL da grilagem, tramita no Senado Federal e “dispõe sobre a regularização fundiária, por alienação ou concessão de direito real de uso, das ocupações de áreas de domínio da União de até 2.500 hectares”. O PL retrocede ao dispensar vistoria prévia, a substituindo por declaração do próprio ocupante.
  • O Projeto de Decreto Legislativo 177/2021 que pretender autorizar o Presidente da República a denunciar a Convenção 169 da OIT.
  1. Grupos de interesse econômicos e riscos à soberania nacional

O desejo de promover a integração binacional motivou a construção da Estrada do Pacífico, também conhecida como Rodovia Interoceânica. Do lado brasileiro, a BR 317 interliga a BR 364, em Rio Branco, até a fronteira. No território peruano, essa rodovia segue a oeste até o porto de San Juan de Marcona e, em direção sul, aos portos de Matarani e Ilo, todos localizados na costa do Pacífico.

Planejada no âmbito da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), de 2000, a Rodovia Interoceânica visou favorecer os intercâmbios comerciais, em especial de produção agropecuária. Contudo, os planos que orientaram o investimento ainda estão em potência, pois não houve, com essa via, incremento significativo no transporte de grãos e outras mercadorias destinadas ao mercado asiático ou aos países vizinhos. Ou seja, há uma estrada construída há apenas uma década com o mesmo objetivo de integração apresentado para esse novo projeto.

Se o comércio exterior de produtos não a justifica, quais os interesses que justificam tamanho investimento em mais uma rodovia binacional? Demandas exógenas, de grupos de interesse que patrocinam o projeto de uma estrada que lhes garanta acesso a riquezas que são, por lei e por direito, da União e das comunidade locais.

A identificação dos interesses envolvidos demanda observação do contexto regional e binacional. Primeiramente, há o interesse de extração madeireira em áreas vizinhas à estrada. Há o interesse na exploração de recursos minerais, como indicam a existência de requerimento de lavras. Há, ainda, o horizonte de prospecção para exploração de petróleo e gás em áreas de proteção integral. Essa ambição se inspira na concessão, por parte do governo peruano, de lotes destinados a exploração de hidrocarburos próximos à fronteira com o Brasil.

Importante considerar, ainda com relação aos grupos de interesse e aos aspectos de observância da boa aplicação de recursos públicos, que a execução de obras referentes ao Sistema Nacional de Viação deve ser precedida por estudos de viabilidade econômica “que se ajustem às peculiaridades locais, que justifiquem sua prioridade e de seus projetos de engenharia final” (Lei nº 5917 de 1973).

A ESTRADA ENTRE NUEVO ITÁLIA E PUERTO BREU

Outro projeto que, se realizado, impactará enormemente a região da fronteira entre Brasil e Peru é a construção de estrada para interligar os Rios Ucayali e Juruá. Essa estrada, que interliga as localidades peruanas de Nuevo Italia e Puerto Breu, prevê em seu traçado um inusitado desvio ao norte em sua passagem pelo Rio Amônia, quando toca o ponto exato da fronteira entre os dois países, na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia.

Os mesmos impactos socioambientais descritos para a estrada entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa são extensivos a esta outra iniciativa. A estrada acarretará impactos socioambientais transfronteiriços por ser uma região com unidades de conservação e residência de nove povos indígenas, além de comunidades tradicionais. Afetará diretamente trinta e quatro Comunidades Nativas peruanas e, no Brasil, as Terras Indígenas Kaxinawá Ashaninka do Rio Breu, Kampa do Rio Amônia, Arara do Rio Amônia, Kuntanawa e a Reserva Extrativista do Alto Juruá.

Essa estrada começou a ser construída em 1988 por uma empresa petroleira. Em 1998, começou a ser recuperada pela Forestal Venao, empresa madeireira que causou danos irreparáveis às comunidades nativas em território peruano. A expansão dessa estrada e de suas trilhas para exploração madeireira ilegal alcançou o território nacional e foi rechaçada em seu propósito de invasão pelos Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia. Nos últimos anos, o investimento para a abertura dessa estrada foi retomado e, desta vez, com o patrocínio de empresários e promotores de atividades ilícitas. Informações oficiais do governo peruano e monitoramento por satélites demonstram o intenso desmatamento recente, o alto investimento na construção de pontes para travessia dos cursos d’água e dezenas de pistas clandestinas para pouso de avião.

Organizações dos povos indígenas (ACONADIYSH, ACCY, AACAPPY[2]), representações de dezesseis comunidades nativas[3] e autoridades municipais de Yurúa, reuniram-se em assembleia no dia 29 de abril de 2021 e deliberaram por rechaçar e negar absolutamente o interesse na construção dessa estrada que nomeiam ilegal.

A DEFESA DA DIVERSIDADE COMO PRECAUÇÃO

As mudanças no clima, na floração das árvores, nas atividades de caça e pesca de subsistência e no regime de chuvas que impactam os roçados e a produção de alimentos, são sentidos e reportados por todos os povos e comunidades tradicionais que vivem em relação intensa com os ciclos de vida e da natureza. A responsabilidade do Estado em garantir o zoneamento do território nacional de forma a defender a diversidade sociocultural, os conhecimentos tradicionais, a soberania alimentar e a preservação ambiental respondem aos princípios de precaução e prevenção diante das incertezas do futuro.

 

[1]     87% do desmatamento acumulado no estado do Acre está ao longo de rodovias e ramais, conforme publicação “Dinâmica do desmatamento em 2019 no estado do Acre – PRODES”, da Secretaria de Meio Ambiente, Governo do Estado do Acre, 2020.

[2]     As siglas correspondem a Asociación de Comunidades Nativas para el Desarrollo Integral de Yurúa Yono Sharakoiai (ACONADIYSH), Asociación de Conservación Comunal Yurúa (ACCY) e Asociación Ambiental de la Comunidad Ashéninka Pocharipankoky Pikiyako Yurúa (AACAPPY).

[3]     As Comunidades Nativas presentes foram: Onconashari, Nueva Luz de Arara, Nueva Vida, Paititi, Nueva Bella, Dulce Gloria, San Pablo, El Dorado, Santa Rosa, Shoniro, Beu, Selva Virgen, Nuevo Edén, Sawawo Hito 40, Alto Tamaya Saweto, Koshireni.