foto: acervo CPI-Acre
Os Índios e os Limites Nacionais
Muito antes dos limites nacionais existirem, diferentes povos indígenas viviam na Amazônia ocidental, e em terras que compõem hoje os territórios brasileiro e peruano. Esses povos começaram a estabelecer os primeiros contatos com o homem branco no final do século XIX, quando chegaram os primeiros exploradores à região da fronteira Acre-Peru.
A crescente demanda por borracha no mercado internacional tornou a exploração da árvore seringueira o principal empreendimento dos governos na época. A Amazônia passou a dar lucro, e a ordem era ocupar uma floresta inexplorada economicamente, e indefinida territorialmente. O processo de formação dos dois territórios foi marcado pela incorporação gradual dos diferentes povos, e suas terras, às nações em construção.
A linha de fronteira entre Brasil e Peru foi acertada em 1909 pelo Tratado de Limites, e os trabalhos de levantamento, demarcação e sinalização aconteceram entre 1920 e 1927. A equipe da Comissão Mista de Demarcação encontrou as populações indígenas trabalhando para patrões seringalistas e caucheiros na região.
Alguns se tornaram figuras emblemáticas do início da exploração da borracha, como Fitzcarraldo, o “Rei do Caucho” no Peru, e o seringalista brasileiro Felizardo Cerqueira. Esses homens protagonizaram a história de dizimação e escravização das populações nativas dos territórios que atualmente constituem os departamentos peruanos de Ucayali e Madre de Dios, e o estado brasileiro do Acre.
Ao longo do processo de ocupação, alguns índios conseguiram fugir das “correrias”, expedições organizadas para exterminar os índios que se opunham à abertura dos seringais e à extração caucheira. Estabeleceram-se nas terras mais altas da região, nas cabeceiras dos rios, onde até hoje se mantém.
Os documentos da época relatam a permanente necessidade de vigilância nos acampamentos da equipe da linha de fronteira por conta do temor de possíveis ataques de índios . Ao contrário dos homens da borracha, a comissão respeitou seus roçados e malocas, e, em algumas situações, entregou ferramentas contemporâneas a eles.
Os índios que não escaparam das ordens dos seringalistas e caucheiros, também foram incorporados ao trabalho demarcatório. Os Kaxinawa participaram como mateiros, carregadores e caçadores durante o reconhecimento e a demarcação das terras acreanas e brasileiras. O conhecimento dos povos indígenas sobre a floresta foi um importante aliado na definição dos limites nacionais na Amazônia.
Marechal Rondon institui a política indigenista do Brasil em 1910, fundando o Sistema de Proteção do Índio (SPI), o primeiro aparelho de Estado responsável por definir e gerir a questão indígena no país. O órgão, extinto em 1967, com a criação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), teve um papel geopolítico fundamental na construção da soberania nacional, ocupando territórios, “civilizando” índios, e marcando a presença do Estado nos rincões amazônicos.
Ameaças a uma Floresta Demarcada
Quase um século após o início da demarcação da fronteira Brasil-Peru, a região segue sendo um lugar onde os Estados precisam ocupar e atuar. As políticas dos dois governos são pautadas em projetos de desenvolvimento econômico, infraestrutura e integração regional, que promovem a construção de rodovias e hidrelétricas, a exploração madeireira, a mineração, e a prospecção e extração de petróleo e gás dos subsolos dessa região da Amazônia.
Por outro lado, a sociedade civil organizada dos dois países, através de organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas, vêm alertando há anos sobre os impactos negativos que esses projetos podem acarretar aos recursos naturais e ao modo de vida das populações originárias e tradicionais da floresta. Em encontros, debatem as dinâmicas transfronteiriças e propõem ações, que visem a sustentabilidade socioambiental de um lugar que apresenta os maiores índices de biodiversidade do planeta.
Atividades ilícitas como a exploração ilegal de mogno, cedro e outras madeiras, a extração predatória do ouro, e o tráfico internacional de drogas, ameaçam à integridade desse valioso território, habitado por diferentes povos indígenas e ribeirinhos. Hoje, a fronteira também é ocupada por madeireiros ilegais e narcotraficantes, que invadem unidades de conservação, terras indígenas, e territórios criados para povos em isolamento.
Na segunda década do século XXI, as políticas de desenvolvimento dos Estados têm que atuar em uma floresta demarcada por diferentes áreas protegidas amparadas por leis.
No Brasil, existem hoje 185 terras indígenas situadas na faixa de fronteira em todo o país, das quais 34 têm seus limites colados na linha divisória. Do total, 75% encontram-se demarcadas e tituladas, após os trabalhos de identificação e delimitação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Na fronteira Acre-Peru há um mosaico contínuo de 15 milhões de hectares, formando um corredor de conservação composto por terras indígenas, reservais comunais, parques nacionais e estaduais, reservas extrativistas, e outras áreas protegidas. No Acre, as terras indígenas e unidades de conservação somam quase 8 milhões de hectares. Destes, 4,2 milhões estão distribuídos ao longo da faixa de fronteira em 9 terras indígenas e 4 unidades de conservação.
Os povos indígenas, representados em suas organizações, começaram a se articular para o reconhecimento e a vigilância de seus territórios desde o final da década de 1970. As demarcações também vieram como resultado dos avanços da política indigenista brasileira que, com o Estatuto de Índio de 1973, e a Constituição de 1988, reconheceu o direito às suas terras tradicionais, bem como à preservação de suas identidades. Hoje, o grande desafio é o uso sustentável e a conservação das suas florestas reconhecidas.
No Peru, a Lei de Comunidades Nativas foi promulgada em 1974, marcando o início do processo de titulação dos territórios indígenas de todo o país. Atualmente, os povos indígenas amazônicos têm o direito de uso e/ou posse de mais de 21 milhões de hectares, ou 27% da Amazônia peruana. Dessa porcentagem, 17% está legalizada, e 10% ainda não possui titulação. Boa parte dessas áreas está localizada na sua fronteira com o Brasil e com os seus outros vizinhos amazônicos.
Em 2005, o Instituto Nacional de Desenvolvimento dos Povos Andinos, Amazônicos e Afro Peruanos (Indepa) foi criado com o objetivo de implementar a política indigenista peruana. Ao longo dos anos, o órgão estatal sofreu diversas reestruturações que contribuíram para a sua falta de autonomia, de recursos, e de qualificação técnica.
A incapacidade do Indepa em atender as principais demandas do movimento indígena, somada à uma política agressiva dos governos, nos últimos dez anos, em promover os territórios amazônicos para a inversão privada e internacional, vem gerando cada vez mais protestos e conflitos sociais na Amazônia peruana.
Com a mudança da Presidência do Peru, em julho de 2011, o Indepa sofreu mais uma reestruturação, com o desafio de acertar “contas” antigas com os índios, e de propor novas diretrizes de atuação política, que garantam efetivamente o reconhecimento e a proteção dos territórios das comunidades nativas, e reservas comunais e territoriais, criadas pelo Estado.
Em 2010 com a criação do Ministério de Cultura do Peru, se inicia um processo de enfraquecimento de Indepa. Em 2014 são transferidas atribuições relacionadas as políticas indigenistas para o ministério, responsabilidade que vigora até o momento.
O contexto contemporâneo da fronteira Acre-Peru representa uma ameaça às populações indígenas e seus territórios tradicionais. Reverter essa situação depende, do fortalecimento da Funai e do Ministério da Cultura, mas, sobretudo, da mobilização e articulação interinstitucional dos dois órgãos, e de outros, cuja competência é garantir os direitos, o combate a ilícitos e a defesa das soberanias nacionais. Enquanto a conversa e os acordos entre os dois países se limitarem aos grandes projetos, de desenvolvimento econômico e infraestrutura regional, os riscos continuam.
Invasão Madeireira
O governo peruano instituiu em 2000 a nova Lei Florestal e de Fauna Silvestre, que criou os Bosques de Producción Permanente de domínio do Estado, e exclusivos para o manejo florestal. Extensas áreas de floresta começaram a ser entregues à grandes empresas e pessoas físicas para a exploração da madeira por 40 anos. Com a política de concessões, instalou-se uma corrida madeireira nos departamentos peruanos de Ucayali e Madre de Dios, na divisa com o Acre.
Segundo dados do Organismo de Supervisão dos Recursos Florestais e de Fauna Silvestre (OSINFOR), existem mais de 7 milhões de hectares de concessões madeireiras na Amazônia peruana. A delimitação dessas áreas foi feito sem um registro qualificado de propriedades da região, e produzindo sobreposições com comunidades nativas legalizadas, e terras indígenas que não haviam sido inscritas e/ou tituladas.
Sem fiscalização, a medida contribui para a atuação de ilegais, que desde então vêm desmatando a floresta, e abrindo caminhos clandestinos para a retirada de madeiras nobres. A atividade ilícita é baseada em um sistema conhecido na Amazônia pelo nome de branqueamento. Donos das concessões florestais compram madeira de extratores ilegais e usam as guias de autorização concedidas pelo Estado para a comercialização. A retirada da madeira é feita por trabalhadores locais, e a venda, por intermediários e mafiosos do negócio.
Os madeireiros também invadem as áreas naturais protegidas, e as reservas comunais e territoriais da Amazônia do Peru, e os limites fronteiriços nacionais, adentrando à floresta legalmente protegida do território brasileiro.
Inúmeras denúncias sobre a invasão de madeireiros peruanos no Parque Nacional Serra do Divisor, na Reserva Extrativista Alto Juruá, e na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Acre, foram feitas na década passada. Os índios Ashaninka da aldeia Apiwtxa, do lado brasileiro, encabeçaram uma luta contra os invasores lançando campanhas na imprensa regional e nacional. Ameaçaram expulsar os madeireiros caso as autoridades não tomassem providências para acabar com às invasões em seu território.
Quando o assunto ganhou a atenção internacional, o governo brasileiro realizou operações na área envolvendo Polícia Federal, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Exército. O problema também foi levado às esferas diplomáticas dos dois países, sendo tratada pelo Itamaraty junto ao governo peruano.
Em 2003, a representação da Apiwtxa na Procuradoria da República no Acre resultou em uma Ação Civil Pública contra a União Federal, os Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, a Polícia Federal, a Funai e o Ibama. A condenação na Justiça Federal exigiu que o Ministério das Relações Exteriores reavivasse os marcos fronteiriços, pois alguns já haviam sido destruídos e retirados pelos madeireiros invasores.
Os Ashaninka do rio Amônia no Brasil viram que a questão exigia uma articulação política mais ampla, e impulsionaram um movimento da sociedade civil organizada: o Grupo de Trabalho Transfronteiriço. Criado em 2005, o grupo reúne o movimento indígena, ONGs indigenistas e ambientalistas de ambos os lados da fronteira Brasil/Acre-Peru para debater problemas e propor diretrizes sustentáveis para o desenvolvimento da região.
Nos encontros do grupo, os Ashaninka do Peru expõem a situação complicada em que viveram após se associarem, em 2000, à empresa Forestal Venao em uma extração de madeira certificada por selos internacionais, mas ilegal e predatória. Flagrada em terras brasileiras, a madeireira viabilizou rapidamente a titulação do território de seis comunidades Ashaninka, Jaminawa e Amahuaca. Em troca, retirou madeira e usou a mão de obra dos índios. O acordo provocou desastrosos impactos nas comunidades. Em 2010, a empresa foi a falência e saiu da região.
A atividade madeireira realizada por empresas peruanas, sob regime de concessão, ou por meio de planos de manejo florestal, incidentes em comunidades nativas, ainda resulta em invasões e em diferentes impactos sobre os povos indígenas da região. Em setembro de 2011, os Ashaninka da aldeia Apiwtxa, no Acre, e da comunidade Soweto do alto rio Tamaya, no Peru, ganharam a mata em uma missão transfronteiriça. O objetivo foi buscar vestígios para demonstrar mais uma vez a ação ilegal de madeireiros peruanos na fronteira.
A missão encontrou um acampamento no lado peruano a 200 metros do Brasil e próximo a uma estrada. Também foram achadas árvores de cedro e mogno marcadas para derrubada e retirada na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Brasil. Uma estratégia conhecida no passado pelos índios: os madeireiros montam acampamento próximo à linha demarcatória para retirar a madeira no território brasileiro.
Após a denúncia da Associação Apiwtxa, a Polícia Federal, o Exército brasileiro, o Ibama, a Funai, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), realizaram em conjunto a Operação Copaíba, visando apurar novamente indícios da extração ilegal de madeira em terras brasileiras. A última apreensão do governo brasileiro na região havia sido feito em 2008. Mas durante a infiltração terrestre da equipe operacional, e o sobrevoo de helicóptero, foram achadas evidências apenas no lado peruano da fronteira.
A extração ilegal da madeira no Peru ocorre ainda nas Reservas Territoriais Murunahua e Mashco-Piro, e no Parque Nacional Alto Purus, três áreas com alta incidência de povos em isolamento. As invasões resultam em “correrias”, contatos com índios isolados, e conflitos entre povos da floresta por território. Em 2007, a Funai constatou a migração de um grupo de isolados do território peruano para uma terra indígena brasileira. Esses índios fugiram de madeireiros que invadiram suas terras.
Amazônia Peruana Loteada
No Peru, as atividades de exploração de petróleo e gás em territórios indígenas começaram na década de 1970. Ganharam força nos anos 1990, quando a argentina Plus Petrol iniciou operações nos altos rios Pastaza, Corrientes e Tigre, território ancestral do povo Achuar. Em 2007, o governo peruano intensificou a política de concessões de lotes para pesquisa e extração de matérias-primas energéticas do seu subsolo amazônico à empresas estrangeiras.
Em 2004, esses terrenos ocupavam 13% da Amazônia peruana. Em 2008, a área loteada passou para 72%, ou 49 milhões de hectares da floresta do país. Essas empresas – em sua maioria privadas, mas há também estatais, como a brasileira Petrobrás – têm contrato para a exploração por um período de 40 anos.
Os lotes estão sobrepostos em aproximadamente 80% das terras das comunidades indígenas do Peru, incluindo as reservas territoriais para povos em isolamento. Há sobreposições também em diferentes áreas naturais protegidas.
Muitas comunidades indígenas se surpreenderam quando viram mapas com lotes petroleiros em suas terras. Funcionários do governo e de empresas estrangeiras visitaram aldeias isoladas para anunciar que tinham um contrato para explorar petróleo em seus territórios. Para obter o consentimento das comunidades, prometeram programas de geração de emprego e renda, e de mitigação e compensação pelos impactos, que nunca foram cumpridos.
As organizações indígenas peruanas, liderados pela Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep), começaram a denunciar que o processo de concessões estava sendo feito no pais sem a consulta prévia às suas organizações, conforme recomenda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, e a Declaração das Nações das Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Esses documentos recomendam procedimentos de consultas no caso de atividades de prospecção e exploração de recursos minerais e outros.
O caso da exploração no rio Corrientes, no qual produziu numerosos derrames de petróleo com graves impactos no meio ambiente e na saúde das populações nativas nas últimas décadas, foi denunciada pelas lideranças indígenas de todo o Peru. O drama da povo Achuar serviu de exemplo do desastre que a atividade petroleira pode provocar sobre os recursos naturais e os modos de vida das populações indígenas da Amazônia.
Campanhas de divulgação e ações ajuizadas nas organizações sociais e indígenas, nacionais e internacionais, provocaram a resposta do então presidente do Peru. Em 2007, Alan García publicou em seu famoso artigo “El síndrome del Perro de Hortelano”: “Contra o petróleo criaram a figura do nativo selvático, não contatado, para que milhões de hectares não sejam exploradas e o petróleo peruano permaneça debaixo da terra, enquanto o mundo paga 90 dólares por barril”.
Em junho de 2009, a intensa onda de manifestações indígenas contra um conjunto de decretos leis que pretendia abrir ainda mais os seus territórios ao investimento privado culminou no histórico massacre da cidade de Bagua, no norte do Peru. Mais de trinta pessoas, entre policiais e índios, morreram após conflito armado. Os decretos foram derrogadas dias depois, mas a política de Estado de incentivo à exploração de hidrocarbonetos em terras amazônicas se manteve.
Hoje, na região de Ucayali, os Lotes 126 e 138 estão sobrepostos aos territórios de comunidades Ashaninka no rio Tamaya, titulados ou não. Com extensão contínua de 1,4 milhão de hectares, os dois lotes estão em fase de prospecção, e têm limites com a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, e o Parque Nacional da Serra do Divisor, no Acre. O Lote 126 foi concedido para a canadense Veraz Petroleum, e o Lote 138 para Pacific Stratus Energy, também canadense. Este último tem sobreposição com a Reserva Territorial Isconahua para povos isolados.
A Petrobrás assinou em 2005 com a Peru Petro, empresa estatal peruana responsável pela promoção da exploração de petróleo e gás, o contrato de concessão do Lote 110, na região de Ucayali. Sobreposto à Reserva Territorial Murunahua, e aos territórios de várias comunidades nativas, o lote foi anulado em maio de 2010, após a pressão do movimento indígena e da sociedade civil organizada.
O lote 169, está sobreposto à Proposta da Reserva Comunal Yuruá, Comunidade Nativa Sawawo e demais comunidades nativas do Alto Juruá, e no entorno do da Reserva Territorial Murunahua, que faz limite com a TI Kampa do Rio Amônia, TI Ashaninka/Kaxinawá do Rio Breu e a Reserva Extrativista do Alto Juruá, no Brasil.
Na região de Madre de Dios, o Lote 76 está sobreposto à Reserva Comunal Amarakaeri, território ancestral dos Harakmbut, Yine e Matsigenka. Apesar da oposição da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad), a empresa estadunidense Hunt Oil, e a espanhola Repsol YPF, concluíram os trabalhos de sísmica. Em 2012, está previsto o início da etapa de perfuração.
Apesar dos Lotes 111 e 113, concedidos à empresa estatal chinesa SAPET, e sobrepostos à Reserva Territorial para Povos Isolados de Madre de Dios, terem sido anulados, antes de terminar o seu mandato, Alan García anunciou vinte novos lotes para serem abertos para concurso público nos próximos anos. Três deles estão em Madre de Dios: os Lotes 190 e 191, na fronteira com a Bolívia, e o 187, quase no limite com o Brasil. No novo mapa, observa-se inúmeras comunidades indígenas que serão afetadas direta e indiretamente com os projetos.
Menos de dois meses após tomar posse em julho de 2011, o presidente peruano Ollanta Humala promulgou, na cidade de Bagua, a Lei de Consulta Prévia. Pela primeira vez na história da constituição do Peru, o Estado outorga às comunidades indígenas o direito de serem consultados sobre o desenvolvimento de projetos mineiros e energéticos em suas terras ancestrais. Uma vitória do movimento indígena peruano, mas também uma estratégia do governo para conquistar novos investidores.
Em agosto de 2015, de acordo com as declarações de PERUPETRO, devido à baixa cotação internacional do petróleo cru, e a falta de interesse das empresas petroleiras, foi suspensa a licitação pública internacional para a outorga de contratos para exploração e extração de petróleo deste lote e de mais outros seis.
O Petróleo do Alto Juruá Acreano
Os primeiros estudos sobre a possível presença de combustíveis fósseis na Serra do Divisor foram realizados na década 1930 pelo Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM). Nos anos 1970, a Petrobrás começou pesquisas sobre o potencial petrolífero da bacia do Alto Juruá, mas depois o projeto ficou parado por décadas. O assunto entrou em pauta novamente em 2007, quando a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) divulgou o início do processo de licitações para a prospecção da porção oeste da Bacia Sedimentar do Acre.
Os trabalhos aerogravimétricos foram realizados pela empresa vencedora Lasa Engenharia e Prospecções, no ano seguinte. Aeronaves com equipamentos altamente sensíveis aos gases das jazidas petrolíferas começaram a sobrevoar o Vale do Juruá a alturas reduzidas, causando espanto e temor aos moradores da floresta, desinformados sobre a atividade e seus objetivos. O aerolevantamento foi concluído, sem qualquer divulgação dos resultados a nível local.
A segunda fase da prospecção se deu em terra, com o levantamento geoquímico. Em 2008, amostras do solo foram coletadas e examinadas, com o propósito de se encontrar traços dos dois minerais. A High ResolutionTechnology Petroleum coletou cerca de duas mil amostras. 530 pontos de coleta estavam situados nos limites, e a distâncias de até 10 quilômetros, das Terras Indígenas Nukini, Poyanawa, Jaminawa do Igarapé Preto, e Campinas/Katukina. Outros 84 pontos incidiram nos limites do Parque Nacional da Serra do Divisor.
A atividade geoquímica no Vale do Juruá realizada pela empresa foi isenta de Licença Prévia Ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Não houve também qualquer pronunciamento decisivo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para impedi-la.
A Georadar Levantamentos Geofísicos ganhou a licitação no início de 2011, e adquiriu mais de mil quilômetros de linhas sísmicas 2D para processar 40 mil registros de sísmica de reflexão na bacia do Acre. A emissão destas vibrações na superfície se dá por meio de dinamites ou outros materiais que podem causar grandes impactos para as comunidades da floresta. Ao todo, serão em torno de 120 mil detonações, com até 180 toneladas de explosivos à base de nitrato de amônio.
No entorno das linhas sísmicas estão seis terras indígenas, uma unidade de conservação de uso sustentável, além do Parque Nacional da Serra do Divisor. As linhas guardam distância de 10 quilômetros dos limites da zonas de amortecimento destas áreas, protegidas por leis, além de atravessarem comunidades ribeirinhas e projetos de assentamento.
A empresa requereu ao Ibama a Licença de Operação para a atividade de levantamento sísmico, mas não foi determinado a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). A Georadar se comprometeu a apresentar um Plano de Contingência Ambiental (PCA) para o governo do estado do Acre. O contrato com a ANP também prevê alguns compromissos e responsabilidades, como, por exemplo, divulgar o projeto para as comunidades vizinhas, antes do início da atividade.
Em agosto de 2011, a equipe da agência estatal brasileira foi ao Acre, apresentar aos setores públicos e privados os resultados dos estudos já feitos na região. Confirmou-se a existência de gás natural e de petróleo fino e especial no subsolo acreano. A camada petrolífera do Vale do Juruá é uma extensão da Bacia do Solimões, onde estão os campos de Rio Urucu e Leste de Urucu, operados pela Petrobrás, e que lideram a produção de gás natural do país.
Em novembro de 2013, foi realizada a 12ª rodada de licitação de blocos exploratórios de gás e petróleo. O leilão envolveu 240 blocos exploratórios terrestres, em sete bacias sedimentares, com potencial para gás natural, em 12 estados brasileiros. Na bacia do Acre-Madre de Dios, foram oferecidos 9 blocos, sendo o bloco AC-T-8 arrematado por 295 milhões pela Petrobrás. O bloco conglomera terras no Vale do Juruá, onde estão localizadas as Terras Indígenas Nukini, Naua, Poyanawa, no Acre, e Vale do Javari, no Amazonas.
Em 2015, por ordem da Justiça Federal, foram suspensas todas as atividades do processo de licitação referentes ao lote AC-T-8, assim como a outorga de contrato para a exploração e produção de petróleo e gás natural, por métodos convencionais ou não convencionais. Os argumentos e estudos apresentados colocam que a licitação da ANP continha irregularidades, tanto do ponto de vista ambiental, quanto do social.
A exploração de petróleo e gás não é um atividade recomendada, ou contemplada, pelo Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) do Acre. Todas as etapas da prospecção têm sido realizadas sem oitivas das populações locais. As organizações indígenas reclamam da falta de consulta prévia, conforme recomendam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Declaração das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, dos quais o Brasil é signatário.
O Desastre da Busca Pelo Ouro em Madre de Dios
Um exemplo de como a exploração do ouro pode provocar um verdadeiro desastre na Amazônia está na região peruana de Madre de Dios, na fronteira com o Acre. Rapidamente, suas florestas estão sendo convertidas em desertos contaminados por mercúrio. Alto índice de violência e prostituição de menores são apenas alguns dos problemas graves que o Estado têm que resolver para dar fim ao caos instaurado pela busca do valioso metal, e suas trágicas consequências.
Estima-se que cerca de 300 pessoas cheguem por dia à Madre de Dios. A maioria vem das regiões andinas de Cusco e Puno, no Peru, atrás de trabalho nos garimpos da floresta. São estimulados pela subida do preço do ouro no mercado mundial, que vem batendo recordes nos últimos anos. Mas também pela facilidade de acesso gerada pela construção da rodovia Interoceânica Sul, que liga o estado acreano aos portos do Pacífico, cortando os Andes.
À beira da estrada, e a 100 quilômetros de Puerto Maldonado, capital de Madre de Dios, acampamentos mineiros surgem de um dia para o outro com hospedagens, cantinas, bares, prostíbulos, e comércio de produtos para mineração. Verdadeiras comunidades vão sendo formadas com o objetivo de explorar o ouro da floresta à sua volta. Ambientalistas calculam que mais de 32 mil hectares já foram desmatados pela mineração na região.
Nos KMs 98, 100, 102, um cenário de abandono. Barracas erguidas, junto com o início das obras da rodovia Interoceânica, foram deixadas para trás. O ouro acabou, sobrou desmatamento. O movimento migrou para o KM 115, onde os garimpeiros seguem de moto por uma trilha até à bacia do rio Malinowski, na zona de amortecimento do Parque Nacional Bahuaja Sonene e da Reserva Nacional Tambopata. As duas áreas naturais protegidas registram recordes de diversidade de espécies, e estão na fronteira com o território boliviano.
O mercúrio, que serve para separar o metal dourado, polui água, ar e solo. A Fauna e flora se contaminam, além, claro, dos seres humanos. A impacto não é só local, estendendo-se por toda região de fronteira e afetando uma importante bacia trinacional: o rio Madre de Dios, contaminado, deságua no Bene, na Bolívia, e no Madeira, no Brasil. O lugar abriga um valioso reservatório de água doce no mundo, mas não conta com políticas transnacionais de proteção e gestão de recursos hídricos.
A mineração em Madre de Dios tomou impulso a partir da década de 80, diante dos altos preços para ouro na época, e também em um contexto de processos migratórios gerados pela recessão econômica e o terrorismo em todo o país. Em 1996, estimava-se que existiam 30 mil mineiros se dedicando a mineração na região. Mas este número só foi aumentando com a progressiva chegada de homens operando máquinas cada vez mais pesadas e sofisticadas.
Durante o processo de formação dessas zonas mineiras foram se estabelecendo conflitos sociais, gerados, em parte, pelo próprio Estado, que desde 2002, com a “Lei de formalização e promoção da mineração de pequena escala e artesanal”, surgiram concessões mineiras sobrepostas a floresta onde vivem índios, extrativistas e pequenos agricultores.
Hoje, 99% das operações de mineração são informais em Madre de Dios e trabalham sem qualquer supervisão pelo Estado e estudos de impacto ambiental. Das 1546 concessões mineiras existentes em 2010, apenas 16 contavam com as licenças ambientais estabelecidas por lei. Muitas delas fazem sobreposição com áreas naturais protegidas, zonas de amortecimento, e terras indígenas.
A Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad) há anos denuncia às autoridades sobre os enfretamentos que acontecem entre nativos e mineiros por conta da invasão de garimpeiros em territórios das Comunidades Nativas. Como estratégia de proteção territorial, a organização também recomendou ao Estado que as comunidades tenham direitos preferenciais na solicitação de concessões. No entanto, algumas destas estão gradualmente mudando de mãos, e chegando a terceiros.
Na Comunidade Nativa Kotzimba, por exemplo, formada por colonos e indígenas, seu presidente se associou à garimpeiros chinenes para extrair ouro de uma zona que fica nos limites de duas áreas naturais protegidas. Segundo a Direção Regional de Energia e Minas de Madre de Dios há 10 comunidades nativas envolvidas na extração do ouro.
Em Madre de Dios, a produção mineira é também milionária. Em Heupetuhe, onde chegaram os primeiros serranos atrás do ouro há mais de 30 anos, ao menos 70% da atividade é semi ou totalmente mecanizada. Homens foram substituídos por retroescavadores em uma mineração que dá lucro certo, mas não paga os seus devidos impostos.
Segundo o Ministério de Energia e Minas, em 2008 foram produzidas 16 toneladas de ouro na região, um valor aproximado de 500 milhões de dólares. No mesmo ano, o Estado recebeu apenas 18 mil dólares em tributos desses mineiros Esse ouro representa 9,5% do que é produzido no Peru, o quinto país do mundo no mercado.
O problema exige cada vez mais ação do governo peruano. Em fevereiro de 2010, foi publicado um decreto de urgência que suspende os petitórios mineiros em Madre de Dios, e que proíbe a operação das “dragas”, tipo de garimpo que usa embarcações que aspiram o fundo dos rios. O Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas (Sernamp) também vem realizando fiscalização em todo o âmbito da Reserva Nacional Tambopata, invadida pelos garimpeiros.
As medidas de emergência do governo não agradam os mineiros. Em abril de 2010, em Puerto Maldonado, a população iniciou uma manifestação promovida por mineiros informais e artesanais, e contra o decreto. Em fevereiro de 2011, 14 dragas foram destruídas em uma operação das Forças Armadas e da Polícia Nacional. Após a ação, organizam-se vários protestos e duas pessoas morreramm. Dois meses depois, a Federação Mineira de Madre de Dios e as autoridades regionais se reuniram para discutir um plano de formalização da atividade mineira.
No Brasil, não existe regulamentação para exploração de minérios em terras indígenas, mas há também invasões de garimpeiros, como nos territórios dos índios Yanomami, no estado de Roraima. No Acre, não existem zonas de garimpo. Atualmente, um projeto de lei regulamentando a extração mineral nas terras indígenas tramita no Congresso Nacional. O líder yanomami Davi Kopenawa é completamente contra a proposta: “Acaba a floresta, acabam os índios”.