Matéria publicada originalmente na coluna Papo de índio do Jornal Pagina 20
- Por Gleyson de Araújo Teixeira*
Nos últimos anos, observa-se em nosso país a instalação de um momento extremamente preocupante para os povos indígenas diante da violação de seus direitos e o risco de redução e/ou eliminação dos mesmos. Nesse contexto, amplia-se o interesse e a necessidade de aliar os conhecimentos sobre esses direitos e o que os ameaçam, com o debate sobre o acesso à justiça.
O direito ao acesso à justiça é aquele sem o qual os demais direitos não possuem garantia de eficácia. Seu debate, como entendemos, deve ser conduzido principalmente analisando as experiências concretas, avaliando as condições para uma atuação efetiva no campo da assistência jurídica integral, efetivando-se as garantias previstas nos instrumentos jurídicos normativos nacionais e internacionais.
Pensando nisso, no ano passado, a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) em parceria com a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) e a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), inauguraram como ação conjunta na 9ª edição do Abril no Acre Indígena as “Rodas de Conversa sobre Direitos Indígenas e Acesso à Justiça”, com o objetivo de reunir a cada encontro lideranças indígenas e representantes de órgãos com funções essenciais à Justiça como os Ministérios Públicos, as Defensorias Públicas, além de gestores de outros órgãos tanto estaduais como federais relacionados a proteção dos povos indígenas e promoção dos direitos humanos (FUNAI, assessorias especiais, segurança pública etc.).
O caráter inovador dessas rodas de conversa, está sobretudo no que se refere a ideia de criar gradualmente no estado do Acre uma rede de cooperação e troca de conhecimentos, experiências e capacidades para defesa e promoção de direitos dos povos indígenas, com maior compreensão da atuação desses “órgãos de justiça” e das demandas socioambientais que exigem atenção.
Na roda de conversa deste ano, realizada no dia 24 de abril no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF) obteve-se a ampliação tanto do número de participantes indígenas quanto de instituições atuantes no campo da justiça. Estiveram presentes lideranças dos povos Kaxinawá, Katukina, Manxineru, Jaminawa e Shawãndawa. Representantes da Defensoria Pública da União (DPU), do Ministério Público Estadual (MPE/AC) e gestores/técnicos estaduais no que atualmente é o Departamento de Justiça e Direitos Humanos da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Acre, juntaram-se a um coletivo já formado desde o evento anterior em que participam representantes da Fundação Nacional do Índio, do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública Estadual (DPE/AC).
Elegeu-se esse ano, entre diversas experiências com potencial para o desenvolvimento do debate sobre direitos indígenas e acesso à justiça, três que expressam protagonismos indígenas importantes acompanhadas por demandas sociais muito claras por participação/consulta, políticas públicas e assistência jurídica. Cada principal momento dessa roda de conversa foi iniciado pela apresentação de uma dessas experiências, seguida de comentários e perguntas dos participantes e concluído com a identificação das questões centrais que exigem a atenção e possibilidade de apoio dos órgãos de justiça.
Direito à Participação e Direito de Consulta
A primeira experiência a animar o diálogo entre os participantes foi a apresentação do processo de elaboração do Protocolo de Consulta Jaminawa e Manxineru da Terra Indígena Mamoadate e seus resultados, realizada por Jaime Sebastião Manchineri representando os Jaminawa e Manxineru presentes. Foram apresentadas as motivações, um resumo do processo e o resultado alcançado com as declarações presentes no texto do documento, que será publicado na forma de livro nos próximos meses. O protocolo de consulta elaborado pelas comunidades da Terra Indígena Mamoadate é um documento em que elas conjuntamente expõem perante o Estado e instituições não governamentais os procedimentos adequados, as regras a serem seguidas para o diálogo sobre decisões que podem afetar suas vidas, direitos ou territórios. Essa iniciativa é também um desdobramento de debates que desde 2008 diversas organizações indígenas e indigenistas em diferentes regiões do Brasil realizam sobre a necessidade de definição de propostas concretas para a efetiva regulamentação do direito de consulta livre, prévia e informada.
A Consulta Prévia está garantida na Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei no Brasil desde 2004 (Decreto Presidencial n° 5051). Também presente no texto da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas aprovada em 2007. Apesar de mencionada em diversos documentos oficiais dos governos federal e estadual, ambos, assim como os legislativos não tem cumprido suas obrigações no que concerne à consulta e obtenção de consentimento dos povos indígenas a respeito de obras, projetos, programas e políticas públicas, bem como a criação e mudança de leis.
No contexto atual de aumento dos retrocessos vividos no Brasil em que direitos da população estão sendo reduzidos quando não eliminados, veio para o debate a recente publicação do Decreto 9.759 realizada no dia 11 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) que extinguiu colegiados da administração pública federal, impedindo a participação e controle social nas políticas públicas. Uma medida que acabou com pelo menos 35 Conselhos Sociais, afetando políticas como: direitos humanos, igualdade racial, indígena, rural, cidades, LGBT e meio ambiente. Para os povos indígenas, foram extintos canais de diálogo/participação representados pelo Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) instalado em 2016, que substituiu comissão criada em 2007 e, pela Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI) existente desde 2010. O primeiro, criado como instância de proposição de diretrizes, estabelecimento de prioridades e critérios na condução das políticas públicas para os povos indígenas no país. Já a CNEEI como instância consultiva do Ministério da Educação na formulação de políticas para a educação escolar indígena.
Existe nesse momento, uma ação direta de inconstitucionalidade tramitando no Supremo Tribunal Federal contra o decreto de Jair Bolsonaro.
Os protocolos de consulta e os conselhos gestores de políticas públicas são exemplos para uma diferenciação importante a ser feita entre participação e consulta. A consulta é fundamental para a participação, mas esta não se resume àquela.
Direitos Socioambientais
A experiência seguinte foi apresenta pela AMAAIAC através das exposições de Edilson Rosa (Poá) Katukina, Josias Pereira (Maná) Kaxinawá e Francisca (Yaka) Arara sobre os agentes agroflorestais indígenas (AAFIs) e os projetos comunitários de gestão territorial e ambiental. Em resumo, trataram da trajetória dos AAFIs e o que conquistaram com suas comunidades, juntamente com outras lideranças (tradicionais e profissionais), como estratégias de uso e manejo dos recursos naturais e de gestão de seus territórios. Um trabalho que tem sido realizado por esses agentes nas aldeias e fora delas, em experiências de intercâmbio com comunidades localizadas no entorno das Terras Indígenas, capacitando-as também em práticas agroflorestais e mobilizando-as para pensar uma gestão integrada dos territórios.
Destacaram que desde o aparecimento como categoria original no Acre em 1996, o reconhecimento do papel dos AAFIs e a demanda pelos mesmos só vem crescendo nas terras indígenas, inspirando o surgimento de trabalhos semelhantes também em outros estados do Brasil. Esse reconhecimento se ampliou quando os governos começaram a entender e apoiar iniciativas como essa com marcos legais e políticas públicas a exemplo da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI (Decreto 7.747/2012) e antes no estado do Acre, fomentando a realização dos Etnozoneamentos/Etnomapeamentos e os Planos de Gestão como importantes instrumentos locais de diagnóstico, planejamento e implementação de ações voltadas a fortalecer, nas comunidades, a produção agroflorestal, a segurança alimentar, a vigilância territorial e a valorização cultural.
Um importante passo lembrado nesse processo de reconhecimento da categoria foi a criação da Lei estadual 3.357/2017 que instituiu o Programa de Bolsas de Apoio à Formação Profissional do Agente Agroflorestal Indígena (regulamentado pelo Decreto 10.426/2018), como iniciativa complementar e institucionalizadora dos esforços desde 2012 empreendidos para obtenção de recursos para remuneração dos serviços prestados pelos agentes em suas aldeias e apoio à sua formação profissionalizante.
Diante desse quadro de resultados alcançados, as preocupações são muitas e manifestadas por vários presentes ao encontro. O que fazer para que o interesse público prevaleça e que experiências como as relatadas não sejam prejudicadas com tensões políticas e descontinuidades administrativas? Que a alternância de poder, necessária a democracia, não conduza, segundo o humor e a ideologia dos governantes, a uma redução ou eliminação de conquistas no Acre, baseadas que foram no reconhecimento de direitos que os povos indígenas, comunidades tradicionais e outros possuem.
Nos últimos anos, esforços do executivo estadual em conjunto com a sociedade civil, lideranças indígenas e suas organizações, garantiram maiores condições em investimentos para implementação e/ou continuidade de projetos sustentáveis propostos/desenvolvidos pelos povos indígenas, traduzindo decisões presentes em seus Planos de Gestão. O esperado com os atuais recursos nacionais e internacionais de distintas fontes (dentre elas, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento e, mais recentemente, o KfW Development Bank) é a ampliação dos benefícios para mais terras e comunidades indígenas, com o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação e realização de consultas prévias. Estima-se que a gestão anterior teria deixado mais de 30 milhões de reais previstos em programas e ações para as Terras Indígenas no estado do Acre. Recentemente, representantes do novo governo anunciaram cortes ocorridos que calcula-se possam chegar a ordem de 18 milhões de reais. Notícia que exige explicações públicas sobre as causas dessa decisão.
Direito à Educação Escolar Indígena Intercultural
O último relato de experiência dessa roda de conversa coube a coordenadora da OPIAC, Francisca (Yaka) Arara. Ao descrever os embates e conquistas do movimento de professores indígenas no estado, apresentou a educação escolar indígena ainda como um setor com déficit de ações estruturantes para a sua efetividade. Apesar das conquistas institucionais ocorridas no ano passado com as leis e atos administrativos que regulamentaram/criaram as Categorias Escola Indígena e Professor Indígena (Lei 3.467/2018), a Gestão Democrática Intercultural (3.466/2018) e a Comissão Estadual de Educação Escolar Indígena, ainda está presente a descontinuidade em ações para a formação, valorização e condições dignas para os profissionais indígenas atuantes (professores, técnico pedagógicos, gestores, merendeiras etc.).
Para exemplificar, o processo de seleção de professores (contratação temporária) realizado o ano passado representou novo adiamento para o enfrentamento da necessidade de ingresso permanente dos profissionais já atuantes e com qualificação para carreira no Magistério Público Indígena. Demandas vem se acumulando para construção/reforma de escolas, fornecimento de materiais escolares, construção de projetos políticos pedagógicos e regionalização da merenda escolar.
O ponto mais destacado foi o da formação de professores. Desde 2014, ano da realização do último curso de formação de professores no magistério de nível médio, a Secretaria de Estado de Educação não tem conseguido retomar essa ação. A falta de cursos de formação tem um conjunto de efeitos negativos sobre os professores indígenas em serviço nas escolas indígenas e consequentemente sobre todos os alunos. Estes professores nutrem importante expectativa e apresentam grandes necessidades em relação à sua participação anual em cursos presenciais, como também aguardam as viagens de assessoria para acompanhamento técnico de sua prática pedagógica.
Os professores indígenas enfrentam questionamentos de suas próprias comunidades escolares; veem o projeto político e pedagógico de escola indígena específica, diferenciada, intercultural, bilíngue e de qualidade não se realizar pela ausência do Estado; tem sua escolarização e ingresso no ensino superior impedidas e, ainda são cobrados por frequência e desempenho diante dessa e de outras condições adversas.
Como nas experiências apresentadas antes, essa também destacou a relevância dos órgãos de justiça como importantes parceiros na luta pela implementação de políticas públicas que garantam e coloquem em prática direitos dos povos indígenas que são previstos na Constituição Federal e em outras leis nacionais e internacionais.
São muitas as experiências a serem apresentadas e debatidas. Nessa 2ª roda de conversa foram escolhidas três, mas diante da realidade de nosso país e, em particular, de nosso estado, outras exigem nossa atenção, não apenas experiências positivas que precisam ser garantidas, mas outros sérios problemas que afetam os povos indígenas. São os próximos alvos de novos encontros. Nesse sentido, teremos novos elementos para uma compreensão conjunta de direitos e acesso à justiça, partindo das especificidades de cada situação e dos povos envolvidos.
*Coordenador Executivo CPI-Acre