A defesa dos direitos indígenas, conquistados há 28 anos com a Constituição Federal, é hoje um dos grandes desafios dos povos indígenas e o tema central das discussões promovidas neste ano na 7ª edição do Abril no Acre Indígena, evento realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre, em parceria com a Organização dos Professores Indígenas do Acre e a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre.
O Abril no Acre Indígena é uma iniciativa que acontece desde 2009 durante todo o mês de abril, e que tem o objetivo de promover a produção dos autores e pensadores indígenas no Acre e de informar a sociedade acreana sobre as suas lutas e reivindicações na atualidade. Também pretende ampliar o horizonte das relações interculturais, ocupando diversos espaços da cidade de Rio Branco com exposições, palestras, apresentações e rodas de conversa, além da produção de textos sobre a questão indígena para a publicação na coluna Papo de índio, deste Página 20.
Neste ano, cinco lideranças indígenas falam sobre os direitos indígenas e seus desafios atuais, abordando temas como política linguística, projetos de desenvolvimento e o direito à consulta prévia, livre e informada, educação escolar indígena no Acre, gestão territorial e ambiental e o reconhecimento da categoria profissional dos Agentes Agroflorestais Indígenas e sobre cultura e políticas culturais.
A programação da 7ª edição do Abril no Acre Indígena contará ainda com uma roda de conversa sobre línguas indígenas no Acre, uma reunião ampliada de professores indígenas para discutir educação, e com o lançamento dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas Kaxinawá do Rio Humaitá, Poyanawa e Nukini, entre outros eventos.
Os Huni kuĩ e sua política linguística
**Joaquim Paulo de Lima Kaxinawá
No Papo de Índio de hoje começo falando sobre o que eu chamo na minha pesquisa de povos verdadeiros, povos originários, que durante os contatos com os colonizadores receberam o nome pejorativo de “índios”, esquecendo que esses povos têm as suas autodenominações. Essa nomeação, “índio”, fixou-se nos “ouvidos e mentes” dos não indígenas e dos próprios povos originários que começaram a falar essa nomenclatura “indígenas”. Mas, na atualidade, esses povos originários estão começando a falar e mostrar quem realmente são, falando das suas autodenominações e das suas línguas e culturas. Isso não aconteceu antes porque os povos originários não sabiam se expressar e explicar nas línguas dos colonizadores. Por isso que os não indígenas falavam por eles, falavam por aqueles que estavam sendo contatados. E nesses contatos aconteceram muitos desastres terríveis, como epidemias causando muitas mortes, invasões de territórios e muitas “correrias”. Alguns fugiram em busca de novos espaços para sobreviver, outros testemunharam as consequências dos atos dos colonizadores: a redução e o desaparecimento de povos, línguas e culturas.
Na chegada dos invasores e colonizadores, entre 1500 e 1600, estima-se que existiam 1300 povos, e que possivelmente eram a quantidade de línguas faladas e culturas praticadas. Mas após cinco séculos houve uma perda enorme e preocupante. Hoje, há 305 povos indígenas e 274 línguas identificadas, sendo que desse total há somente entre 70 e 80 povos falantes de suas línguas e com situações diversificadas, segundo os pesquisadores em linguística da Universidade de Brasília.
Aqui no estado do Acre não foi diferente, na chegada do seringalistas e caucheiros peruanos, por volta de 1700 e 1800 haviam 70 povos, que eram a mesma quantidades de línguas e culturas praticadas na época. Com a expansão da extração da borracha, na abertura dos seringais, foram acontecendo os contatos com esses povos de vários rios do Acre. Com esses contatos foram acontecendo as tragédias e as mortes de bala e epidemias acabando com muitas famílias já contatadas. Os que foram escapando da bala e das epidemias, foram sendo usados no trabalho escravo, fazendo roçados, picando estradas de seringas, abrindo caminhos, sendo caçadores, varejadores, barqueiros e mateiros.
Com a prática dos ataques à bala em seus territórios, os povos foram migrando para as cabeceiras dos principais rios do Acre: Baria, que quer dizer o reflexo do sol recebeu o nome de rio Envira; Taraya, que quer dizer o rio de muitos troncos foi adaptado para Tarauacá; Shawãya, que quer dizer o rio das araras recebeu o nome de Murú; Basia, que quer dizer o rio de muitos capins ou canarana recebeu o nome de Yuruá, que depois foi adaptado para Juruá; Kushu pakenia, que quer dizer o rio que o pássaro cujubim caiu quando esta atravessando recebeu o nome de Purus. Com os ataques e matanças muitos dos povos foram fugindo para o território peruano e outros foram se aliando à outros grupos para se fortalecerem e, assim, atacarem os adversários “nawá” (brancos) ou os próprios parentes “isolados”.
Com todas essas fugas e alianças com outros povos, hoje, no estado do Acre, só restam 15 povos com línguas e culturas bastantes ameaçadas e fragmentadas pela pressão territorial e pelos costumes adquiridos dos povos que fizeram os contatos durante a extração da borracha. Desses 15 povos, 12 são das famílias Kuĩ que, durante os contatos foram nomeadas de Panú e depois de Pano. São povos da mesma família linguística e muitas palavras de animais, plantas, alimentos e nomes próprios são bastante semelhantes. Aqui estão os nomes dos povos das famílias kuĩ: Huni kuĩ, Katukina, Yawa nawá, Jami nawá, Shawã nawá, Shane nawá, Kũta nawá, Puya nawá, Nukini, Sai nawá (Jami nawá arara) e Nawá. Da família linguística Aruak estão os Ashaninka e os Manchineri, e da família Arawá, os Madija.
Toda essa população originária do Acre, hoje composta por aproximadamente 23.500 pessoas, vive em 36 terras indígenas. A população de Huni kuĩ está em torno 1,2 mil pessoas que habitam 100 comunidades em 12 terras indígenas.
A situação linguísticas dos povos de família Kuĩ são: três povos são fluentemente falantes em suas línguas: Huni kuĩ, Noke koĩ (Katukina) e Uni Kuĩ (Yami nawá); seis povos em uma situação de perda da comunicação oral entre jovens e crianças, só os mais velhos são dominadores da língua oral: Uni kuĩ (Yawa nawá), Shawã dawá, Nawá (Arara), Shane nawá, Puya nawá, Sai nawá (Jami nawá Arara); e os povos que não se comunicam mais na língua, apenas os mais velhos lembram de algumas palavras mais fáceis: Kũta nawá, Nukini, Nawá, Apolima arara. Os outros povos das famílias Aruak e Arawa são todos fluentemente falantes nas suas línguas.
Curso de formação em Hãtxa kuĩ
Iniciativas de ensino das línguas dos povos originários, após os aprendizados e ensinamentos da escrita em português, são realizadas desde a década de 1980. Entre os seus objetivos está o ensino de uma forma escrita das línguas indígenas, que usa a ortografia combinando os fonemas orais.
Durante os cursos de formação da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) e da Secretaria de Educação e Esporte (SEE) do Estado do Acre, os povos que falam fluentemente os suas línguas, foram elaborando materiais para ensinar a língua escrita nas escolas das aldeias. Mesmo com muita dificuldade foi sendo motivada e incentivada pelos programas de formação. Por conta dessas iniciativas de vários professores desses povos, hoje temos muitos jovens que escrevem e leem em duas línguas (materna e português).
O povo Huni kuĩ que tomou a decisão de ensinar a língua Hãtxa kuĩ nos anos 90, hoje tem uma proposta de criar o curso de formação em Hãtxa kuĩ para formar os 280 yusinã (professores) do Estado do Acre. No decorrer dos anos 2000, e até 2012, foram sendo definidas as ortografias do Hãtxa kuĩ e as áreas de conhecimentos que podem ser ensinadas nas escolas do povo Huni kuĩ. Em 2011, na Terra Indígena Praia da Carapanã, na aldeia Água Viva, foi realizado um encontro onde apresentei minha dissertação de mestrado (intitulada “Confrontando registros e memórias sobre a língua e a cultura Huni Kuĩ: de Capistrano de Abreu aos dias atuais”). Na ocasião, também aconteceu a revisão das ortografias em Hãtxa kuĩ com a presença dos sábios e de três agentes sociais dessa terra, além da elaboração do livro de alfabetização em Hãtxa kuĩ o “Hãtxa Kenea Meniti” que foi publicado em 2013, pela Editora Literaterras, da Universidade de Minas Gerais, de Belo Horizonte.
Em 2012, também houve um outro encontro para continuar o ensino e fazer avaliação de como gostaríamos de planejar essa formação para a futura geração do nosso povo. Durante as conversas, foram discutidas quatro ideias principais: definição das áreas de conhecimentos; divisão das cargas horarias de 400 horas para o conhecimentos de fora e 400 horas para os conhecimento Huni kuĩ; formação dos professores que irão trabalhar essas áreas de conhecimentos Huni kuĩ e; produção dos materiais didáticos dessas áreas definidas.
Nesta data também foi definida a necessidade de se fazer um novo encontro com os professores e lideranças das cinco regiões do Acre (Jordão, Marechal taumaturgo, Santa Rosa do Purus, Feijó e Tarauacá) para socializar as ideias e as áreas de ensino pensadas durante os dois primeiros encontros para as 12 terras indígenas do povo Huni kuĩ. Seis destas terras já estão com situação de língua e cultura comprometidas, pois só os mais velhos são falantes de Hãtxa kuĩ. Os jovens e crianças entendem mas não estão se comunicando em Hãtxa kuĩ. Portanto, há uma expectativa de se iniciar o curso de formação para formar os agentes comunitários e professores, para eles possam trabalhar o ensino e aprendizado da língua e da cultura Huni kuĩ.
A proposta é que esse encontro aconteça em setembro de 2016. Queremos analisar e debater as áreas de ensino pensadas para essa formação. São elas: Hãtxa kuĩ (língua); Miyui xarabu (historias); Mimawa/munũ xarabu (músicas e danças); Mimã xarabu (artes masculinos e femininos); Rau xarabu ( plantas medicinais); Haska nũ hiwemis xarabu (ciências sociais); Ni inũ yuinaka xarabu (flora e fauna); Nukũ mibã xarabu (produção agrícola) e; Yuxibu xarabu (fenômenos). Nesse encontro também iremos discutir as possibilidades de se criar o plano decenal da Educação Huni kuĩ e, possivelmente, escolas específicas para esse curso de formação nas regiões onde estão o povo Huni kuĩ no estado do Acre.
Hoje, a tendência é que essas iniciativas de educação feitas pelo povo Huni kuĩ, e pelos povos originários do Acre, continuem e tenham suas metodologias, pedagogias e filosofias aperfeiçoadas. O projeto de lei nº 5954/2013, que permitiria ampliar o uso de línguas indígenas e de processos diferenciados de avaliação educacional, respeitando as particularidades culturais das dos diferentes povos, poderia ter sido aprovado para fortalecer e incentivar cada vez mais essas iniciativas. Mas foi vetado pela presidente Dilma Rousseff no final do ano passado. Esse veto é uma demonstração de que o governo não está preocupado em criar leis e políticas públicas que valorizem as línguas e culturas dos povos indígenas. Por outro lado, os povos indígenas nunca desistirão das suas vontades e das suas experiências de querer ensinar as suas línguas e culturas para as novas gerações.
* Texto publicado na Coluna Papo de Índio, do jornal Página 20
** Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília