Matéria publicada originalmente na coluna Papo de índio do Jornal Pagina 20

Vera Olinda Sena*

Aconteceu, no Centro de Formação dos Povos da Floresta, o Seminário de Políticas Públicas, dos dias 15 a 17 de maio. Definir, discutir, informar, avaliar, acompanhar políticas públicas para os povos indígenas é um trabalho com associações indígenas que cada vez mais desponta como prioridade. Atividades como estas, com lideranças de associações indígenas, datam dos anos 80, quando se realizavam as importantes assembleias indígenas. Hoje elas permanecem com pautas e formatos diferentes, mas regidas pelos mesmos princípios: autonomia e protagonismo, participação, informação, boa fé, respeito, fortalecimento da diversidade cultural, entre os principais.

Organizado pela Associação dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), pela Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) e Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre), o seminário aconteceu com a presença de 62 lideranças de 26 terras indígenas dos povos Huni Kuĩ, Ashaninka, Yawanawa, Shanenawa, Shawãdawa, Manchineri, Katukina – Noke Koe, Madija, Jaminawa, Nukini, Poyanawa, Kuntanawa, indigenistas e apoiadores da causa indígena. A presença das mulheres indígenas foi um dos destaques, como também se destaca a coordenação e mediação dos indígenas Francisco Piyãko, Francisca Arara, Puá Katukina, Eldo Carlos em todo o seminário.

Reunir para informar e refletir sobre o cenário político atual; os programas e projetos que estão em andamento no Acre e que incluem os povos indígenas, além das áreas de educação escolar, saúde indígena, fortalecimento e papel das associações, segurança nas terras indígenas foi o objetivo do evento. As falas e os debates, sempre muito ricos, discutiram políticas a partir do cotidiano das terras indígenas: as boas práticas, os desafios, a organização comunitária, as tensões, as festas, as representações políticas, a segurança das terras indígenas entre outros. Nas plenárias, as diferentes experiências dos indígenas também enriqueceram as discussões. Agentes agroflorestais, professoras e professores, artesãos, pajés, agricultores, ex-gestores públicos trouxeram suas visões sobre o contexto atual.

Valdenira da Silva apresentando o Projeto das Mulheres Indígenas
(foto: Leilane Marinho)

A preocupação com as ameaças às terras indígenas e aos direitos dos povos foi central durante as discussões. Sabe-se que tais ameaças tendem a crescer porque é total a incompatibilidade entre a vida dos povos indígenas e o que os governos estão defendendo atualmente. É agronegócio em oposição à agroecologia, é terra demarcada em oposição à terra explorada, é educação diferenciada em oposição à educação prescritiva conteúdista, é respeito às diferenças culturais em oposição ao preconceito, e assim vai.

Apesar disso, não foi um seminário “esmorecido”, pelo contrário. A determinação e a coragem deram o tom geral e a mensagem final foi a disposição para entender, enfrentar e mudar o atual cenário. Valorizar os povos indígenas no Acre e mostrar que aqui há muitas riquezas, muitas vozes, muitos povos indígenas, línguas e culturas, com uma floresta e uma enorme diversidade biológica, que continuarão a ser defendida.

Publicamos hoje alguns depoimentos dos indígenas que contribuíram para as decisões e encaminhamentos do seminário.

Francisco Piyãko

O Governo Federal está dizendo que as terras indígenas são pobres, que vivem na miséria, que nosso trabalho fracassou, que a pobreza só aumentou. Esse discurso é muito forte. Mas não é bem assim. Eles falam de riqueza, mas só do capital, do dinheiro, mas isso não combina com nosso modo de viver. Dinheiro é um meio para fazer coisas, mas não é tudo. Os ashaninka eram mão de obra dos madeireiros. Não estamos nem um pingo arrependidos e não queremos voltar como era antes. Não queremos ser mão de obra do sistema que era implantado nas nossas aldeias no passado. Muitas vezes somos taxados como miseráveis, mas não é isso. A qualidade e garantia de vida boa não se mede só pelo dinheiro.

Esse momento é de pensarmos em um nivelamento e estratégias para avançar. É o momento de nos unir e manter as conquistas. Eu falei várias vezes que gastaríamos muita energia para manter nossos direitos. E é isso que estamos vivendo agora. Nós estamos discutindo coisas do século passado, tem senadores do Acre que querem transformar terras indígenas em reservas florestais. Nós questionamos muito o governo anterior em suas ações que muitas vezes não chegavam de uma maneira adequada nas terras indígenas. Mas agora não estão olhando o movimento indígena. Não estão olhando as políticas como movimento apartidário. Só que nós existimos muito antes de ideologias. Temos que firmar nisso. Percebemos em nível nacional, que os indígenas estão muito bem articulados para que seus direitos sejam respeitados. Estamos nos preparando para entender qual é a posição do atual governo. Eu acho que essa crise global nos une. Percebemos que não fazemos sozinho. Nós temos muito claro o que a gente quer.

Maria Evanizia Puyanawa

Estamos nesse momento de ouvir todos, respeitar opiniões. É um momento de união porque as ameaças são grandes. Hoje ninguém está seguro em lugar nenhum.

Os recursos para implementar as políticas públicas diminuíram, a exemplo dos cortes na educação pública, que afeta diretamente os povos indígenas. Como esses indígenas vão se manter na educação superior? O que estão fazendo é não permitir que essas instituições cumpram seu papel como deveriam. É toda uma estratégia política que está a serviço para que as coisas não aconteçam.

Petrônio Katukina

Estamos aqui para lutar pela nossa terra, nem todos os jovens sabem que os nossos avós conquistaram o mais difícil. Como vamos viver sem terra, se nós pertencemos à floresta? Os governantes não respeitam nossa Mãe Terra, ela não se vende. É nela que a gente existe. Nós vivemos em cima dela, nós plantamos e colhemos. Eles não têm a mínima ideia do que protegemos e conservamos. Merecemos respeito. Muitas vezes a gente olha as coisas do passado e do futuro. O que foi bom a gente volta, o que não foi bom a gente cria outra lógica. Lideranças jovens, mulheres, todos unidos.

E o governo tem que nos consultar, o que nós precisamos deve sair daqui, de nós. Os Katukina hoje estão vivendo ali, e quando chega a pressão, facções, etc.a BR 164, estamos pedindo força para nos ajudar. Espero que o documento que saia daqui seja acolhido pelo parlamento.

Julio Kaxinawa

Precisamos falar das associações de base e das comunidades. Não deixar fortalecer as facções indígenas nas comunidades. Queremos artesanato, produção agrícola. Sobre política pública e fortalecimento das bases. Sabemos que no nosso país estão apostando muito no agronegócio, dizendo que os índios não podem ser pobres, que precisam ser ricos igual a eles. Mas se a gente acreditar nisso, nós vamos nos acabar.

Também temos que falar que está faltando é uma representação estadual que possa representar o movimento indígena nos locais estratégicos, para fortalecer nossos direitos, que a gente possa brigar para fortalecer as leis. Precisamos de uma bandeira só.

Osmildo Kuntanawa

Estamos nivelando nossos pensamentos, para refletir sobre o nosso passado, as outras lideranças que vieram antes, e o que está agora. Para podermos refletir sobre qual passo temos que dar. Nós somos filho dessas lideranças. Essas pessoas, indígenas e indigenistas, deram um passo na política indigenista no acre. A CPI-Acre, a OPIAC, AMAAIAC, foram criadas outras organizações.

Quando um filho sai da maternidade ele precisa ser registrado, tem o direito da saúde, e depois à educação básica, e assim por diante. Nós nascemos, temos direitos também. É preciso entender que quando votamos em alguém, é pensando que ele pode fazer pelas populações. Nosso voto deve ser valorizado. Querem acabar com a educação diferenciada. Que direito é esse que somos técnicos agroflorestais e não recebemos pelo nosso trabalho? Quando a gente vê governos nos atacando, já sabemos que não são nossos amigos. É triste quando vemos só nós indígenas lutando, porque não somos só nós que dependemos da floresta. Todos dependem. Devemos ser respeitados, desde a educação à saúde. Deixa nós indígenas viver da forma que achamos melhor viver.

Marcondes Puyanawa

Juntos nos mantemos informados dos atos que estão acontecendo no Brasil. Nós Puyanawa estamos preocupados com o que está acontecendo a nível federal, estadual e municipal. Esse retrocesso vem paralisando nossos projetos. Eu sou técnico agroflorestal formado e já estamos deixando nossas funções porque o nosso trabalho está paralisado. Vamos atrás de recurso sem ir atrás de governo, porque uma vez pedimos ajuda para alimentação para realizar um trabalho na terra e o prefeito de Mancio Lima nos disse que índio comia era jacaré.

Grupo de Trabalho sobre educação escolar indígena – Fotos: Leilane Marinho

Airton Ashaninka

Vim falar da comunidade. Quero dizer aqui que cada região, organização, tem sua forma de trabalhar e representar seu povo. Uma das maiores dificuldades que temos hoje é a questão do alcoolismo. Isso é preocupante. Principalmente as comunidades mais próximas do município. Para lá para onde moro, tem outras terras indígenas e já ouvimos conversa de drogas para lá. Nosso maior desafio é combater o alcoolismo, isso desde muitos anos. Onde está nossa representação a nível de município e estado? O alcoolismo nas aldeias esta causando problema, isso é sério. Quando pensa que não, tem índio negociando com os comerciantes e leva é de caixa para a aldeia. São terras muito distantes, o que acontece por lá, por lá fica, ninguém sabe porque não tem comunicação. E essa situação dos ilícitos a gente se preocupa muito.

*Indigenista. Conselheira da CPI-Acre