foto: Dante Novaes

O Encontro de Mulheres Indígenas no Acre, que ocorreu de 29 a 31 de agosto deste ano, em Rio Branco, reuniu 70 mulheres representantes de diferentes povos da Amazônia brasileira e da região de Madre de Dios, no Peru.  O evento apostou na troca de experiências como uma forma de contribuir para dar visibilidade e fortalecer a participação das mulheres indígenas na vida produtiva, cultural, espiritual e política das aldeias e dos povos indígenas.

“Em Roraima, hoje, temos mulheres professoras, doutoras na medicina tradicional. Elas vêm sendo valorizadas e isso é importante, por mais que não falem português. A mulher tem muito a contribuir no trabalho da gestão territorial, ou na discussão de mudança climática e no trabalho de toda a comunidade. A gente está pensando em enfrentar todos os dias essas mudanças, que afetam a saúde e são percebidas pelos relatos concretos. Temos muita preocupação. A gente precisa se fortalecer para enfrentar”, disse a representante do povo Yanomami (Amapá), Floriza da Cruz Pinto, da associação HUTUKARA. O depoimento de Florinda foi dado em uma das Rodas de Conversas Temáticas, instrumento usado para promover o debate sobre o papel e os desafios da mulher na gestão dos territórios, no manejo dos recursos naturais, na manutenção de suas culturas e línguas, e na vida política – dentro e fora da aldeia.

Ao longo dos três dias de duração, as mulheres indígenas discutiram assuntos como mudanças climáticas, segurança alimentar, a importância do trabalho das parteiras tradicionais, o descaso e o retrocesso com as políticas indigenistas no Brasil. “Dizem que a gente tem que trabalhar um pouco a questão da resiliência, nos tornar mais resistentes para quando chegar as transformações do clima. Vivemos um retrocesso grande em nossos direitos, mas os povos indígenas não estão em crise. Costumo dizer que vivemos nessa resiliência todos os dias, com essas PECs (Projeto de Emenda Constitucional) e um governo que retrocede tudo. A gente está aqui nesse tempo importante de saber e conversar sobre o papel da mulher indígena, nos cuidados e na valorização do território e do nosso ambiente. Somos responsáveis da casa e também do território, é uma visão maior que a mulher tem dentro da casa e na sociedade.  É interessante o conhecimento ocidental e tradicional, como é que os povos indígenas vêm se preocupando com essas mudanças climáticas pois somos os maiores conservadores de nossos territórios indígenas. Os empresários e políticos falam muito do progresso e cada vez vêm destruindo a mata e os nossos territórios vêm sendo afetados”, afirmou Floriza da Cruz Pinto.

O encontro serviu para mostrar também a beleza e a diversidade sociocultural amazônica com as diferentes danças e cantorias das participantes, representantes dos povos Kaxinawá, Katukina, Yawanawá, Shawadawa, Shanenawa, Nukini, Naua, Yaminawa, Manchineri, Arara e Poyanawa (Acre); Wayãpi, Yanomami (Amapá); Waiana Apalai, Kaxuyana Tiriyó (Pará); Macuxi (Roraima); Tariano, Mayoruna, Yanomami (Amazonas); Kaiabi (Matogrosso); Yine, Kichwa Runa, Harakmbut, Esse Eja e Shipibo, da Região de Madre de Dios, no Peru. Houve também exposição de artesanato, troca de sementes e um jantar com a culinária indígena preparada por elas.

O evento foi realizado pela Organização de Professores Indígenas do Acre (OPIAC), a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/Acre) em parcerias com a Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e o Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação do Clima do Acre (IMC), com apoio da RFN e o Programa REM/KfW.

Leia abaixo depoimentos dados por algumas mulheres indígenas durante o encontro:

“A minha comunidade é composta pelo povo Shipibo. Estive ouvindo que aqui, no Brasil, tem muitos problemas com relação aos territórios. Fomos reconhecidos desde 1994, mas nós somos antes do Estado Peruano e, como indígenas, temos um território amplo. Denunciamos os garimpeiros que ingressaram em nosso território, porém muitos de nós tivemos problemas por tentar proteger nossos territórios, pois fomos processados pelos garimpeiros que invadem nossos territórios. Sendo indígenas temos que estar organizados, temos direitos e deveres e vejo que vocês também têm problemas de território. Sou uma das lideranças do meu povo e tenho recebido muitas denúncias, o que importa agora é defender o que é nosso”. (Juana Payaba, representante do povo Shipibo, da Comunidade Nativa Três Islas)

“A nossa amiga do Peru falou sobre a terra… Invadem nossas terras, o petróleo, o mercúrio, invadem as águas, isso é muito ruim para nós, mas temos que lutar para manter nossa identidade e mostrar que somos guerreiras. Vamos falar sobre a cultura e nossa alimentação”. (Juliana Mayunura e Alcinara Mayunura, do Povo Mayuruna e representantes da Organização Geral dos Mayurunas – OGM)

“A importância da gente estar hoje, aqui, é a importância das mulheres como gestoras do território e meio ambiente. A mulher tem o papel fundamental. Vamos imaginar uma casa sem a mulher dentro dela. Como seria? A mulher é a essência para manter, com qualidade, a segurança alimentar. E também ter um cuidado especial no ambiente em que vive e o território onde está inserida. Apesar das dificuldades que passamos com as mudanças do clima, principalmente quando se cuida da terra, que é nossa mãe, nós mulheres que vivemos junto com nosso povo, temos uma riqueza muito grande, que é a nossa terra. É com ela que plantamos e cultivamos. Junto com nossas crianças e esposos, de dia, de tarde e de noite também. E com esse cultivo a gente mantém uma alimentação saudável”. (Maria Bethania Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima-CIR) 

“Sou uma índia mestiça, pertenço a duas culturas e valorizo isso e também o conhecimento cientifico e o tradicional. Conheci uma nova pessoa a partir do momento em que comecei a valorizar nossa cultura. Temos aproximadamente 500 pessoas em nossa comunidade. Os velhos que eram falantes de nossa língua já morreram durante as correrias. Faço parte dos trabalhos espirituais de nossa comunidade, trabalhando com arte, educação. Sou também compositora e faço a representação cultural de nosso povo para fora da nossa aldeia. Essa relação é difícil sendo que hoje temos aproximadamente 90 pessoas que fazem os trabalhos espirituais e tradicionais dos Puyanawa. Faço parte dos guerreiros que receberam a missão de realizar o fortalecimento e resgate cultural dos Puyanawa. Nós tínhamos vergonha da nossa língua, porém, estamos fortalecendo e promovendo nosso desenvolvimento cultural. Me formei na UFAC em Artes e Linguagem e fiz minha pesquisa com músicas tradicionais dos Puyanawa. Foi muito difícil, pois os velhos estavam morrendo e os jovens tinham vergonha de falar na nossa língua e promover nossa cultura. A nossa comunidade mudou muito em 20 anos. Atualmente, temos uma comunidade moderna que produz muita farinha, temos escolas tradicionais para as crianças. Me sinto feliz em dividir a minha responsabilidade com mulheres que chegaram para ajudar a reviver nossa cultura. Eu sou a nova vida de toda a transformação que passei após valorizar nossa cultura. Infelizmente, devido a falta de incentivo, perdeu-se muitas coisas de nossos ancestrais. Trabalho também com artesanato e pinturas, conseguimos fortalecer nossas cantorias, gravamos CD e estamos fortalecendo nossa gramática tradicional. Somos alunos de nossa cultura. O que estamos buscando estamos também divulgando. Temos todos os sábados trabalhos espirituais onde nos enfeitamos, para nós mesmos”. (Vari Puyanawa, representante do povo Puyanawa)

“Sou parteira e trabalho com as medicinas tradicionais. A cultura vem da comunidade do tempo que não havia doutor nem enfermeiro. Fiquei no lugar do meu pai e avô fazendo os remédios e os partos. Com 17 anos fui trabalhar como parteira. Eu fazia de tudo para que não acontecesse nada de ruim com as parturientes. Tenho 73 anos e ainda trabalho fazendo parto. Antes de vir para cá fui ver uma menina que estava sofrendo e encaminhei para o médico, pois a garota tinha problema com anemia. Falavam que eu não tinha capacidade de passar conhecimento e participar de espaços de discussão, pois eu não tinha estudado. Mas eu tenho o dom e aprendi com meus antepassados, meu pai me falava, quando você respeita seu corpo, você respeita a natureza. Se a gente não resguardar o nosso corpo, ficamos doentes, inchados, dá hemorragia. Temos que respeitar o nosso corpo para respeitar a natureza. Por que essa pintura aqui? O urucum é remédio, medicina. A pintura te deixa bonita. O chá do urucum serve para dor de cabeça e para regular a menstruação. O jenipapo que a gente passa no corpo também é medicina. Essa é a nossa cultura. Nós temos a natureza no nosso corpo”. (Lucila Mota de Souza, parteira tradicional e representante do povo Wapixana)

“Tudo o que a Lucila falou é positivo, é isso mesmo. Eu comecei a fazer parto quando eu tinha 28 anos, hoje eu estou com mais de 70. Antes de vir eu fiz um parto, faz poucos dias. Eu já fiz oito cursos, sei quando a criança está atravessada, sei cuidar de tudo. Sei fazer os remédios para cuidar do resguardo, sei os remédios quando a mulher está sofrendo para ganhar neném. Tem um remédio que é o algodão. Eu não tenho problema em fazer um parto em qualquer canto do Brasil. Eu já fiz curso, e fiz muitos partos. Temos parte de cultura organizada, temos nossas plantações para cuidar das nossas crianças. Eu tenho nove filhos, seis homens e três mulheres, tenho 47 netos. A gente precisa dessa terra, se tomarem essa terra, onde que nossos filhos vão ficar? Uma vez, teve um parto e depois vieram me chamar, porque a mulher ganhou e não desocupou. Ele já vinha baixando de barco, a placenta não saiu. Mas eu consegui resolver. Eu já fiz dois partos difíceis. Um na aldeia e outro no hospital. Mas não estava dilatando, o menino estava direito, mas não estava abrindo o canal. O médico não estava conseguindo e ia chamar o avião para levar para cruzeiro, às 4 h da tarde. Eu falei se ela consentia eu fazer o parto e ela disse que sim, não queria ir para Cruzeiro. Eu falei com a família dela e eles autorizaram. Eu fiz o toque e fiz o que precisou para abrir o útero, com um instante a criança veio. O outro, foi da que está aqui. Vocês sabem que uma parteira está cuidando de duas vidas, e eu não saio de perto dela até tá tudo terminado. Quando tiver outro encontro desses eu quero participar. Eu faço parto por amor e não dinheiro. Onde me chamarem para fazer parto eu faço, seja índia ou branca”. (Monica Francisca Pereira Lima, parteira tradicional e representante do povo Shawadawa)

“Pelas experiências narradas durante o Encontro, seja pelas parteiras, artesãs, representantes de organizações indígenas, representantes das mulheres nas suas comunidades, o protagonismo da mulher indígenas está na sua família, na participação política dentro e fora da aldeia, na relação com  as políticas públicas voltado aos direitos dos povos indígenas, discutindo com os homens, com os políticos e a sociedade, todas as questões de interesse dos povos indígenas, buscando a melhoria e projetos que beneficiem as Terras Indígenas. Então a mulher está presente também nessas ações, ajudando o homem. Muita gente não acredita na nossa capacidade e muitas vezes os indígenas homem não acreditam na gente. Aí quando a gente aprende a fazer a gestão somos barreira para certas pessoas. Isso não é só de índio é de branco também. Tenho enfrentado isso aqui dentro do meu trabalho. Não é fácil, por conta do preconceito mesmo, parece que gera ciúme. Eu como mulher indígena trabalho aqui mas tenho enfrentado isso. As pessoas chegam me questionando, sempre dizendo quem sou eu. Na hora de comer estamos todos juntos, temos nossos espaços e nem todas as mulheres não querem vir, e tem muitas políticas que querem obrigar a gente a ser aquilo que a gente não é”. (Francisca Arara, coordenadora da Organização dos Professores Indígenas do Acre e assessora da Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre).