Escola Indígena da TI Kaxinawa do Rio Humaitá Foto: Paula Lima

E lá se vão quase 20 anos desde que cheguei ao Acre pela primeira vez para integrar como assessora a equipe do projeto de educação da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), o pioneiro ‘Uma Experiência de Autoria’. Lembro-me como se fosse hoje do meu encantamento quando cheguei pela primeira vez no Centro de Formação dos Povos da Floresta, onde estava acontecendo o XVIII Curso de Formação de Professores Indígenas. Eram cerca de 40 professores, pertencentes aos diversos povos no Acre (além de um Apurinã (AM) e um Kaxarari (RO) que anualmente, durante os meses de janeiro e fevereiro, vinham participar do curso. Ao longo do restante do ano, realizávamos as ‘viagens de assessoria’ aos professores e escolas indígenas. Além dos professores que participavam dos cursos da CPI-Acre, havia outros poucos que eram incluídos em nossas assessorias pedagógicas, de forma que a equipe da CPI-Acre dava conta de visitar anualmente praticamente todas as escolas indígenas do Acre.

Desde então, muitas águas rolaram na Educação Escolar Indígena no Acre e no Brasil. Ocorreram muitos avanços. Além da institucionalização – hoje há uma legislação própria e recursos públicos destinados à educação escolar indígena – os números demonstram um notável crescimento. No Acre, hoje, temos 213 escolas, 8.497 alunos e 621 professores indígenas. Entretanto, na prática, a questão da educação escolar diferenciada, ou seja, os embates para o reconhecimento do direito à diferença continuam os mesmos, ou retrocederam, conforme pude constatar no encontro que passo a relatar a seguir.

Realizado entre os dias 3 e 7 de abril, no Centro de Formação dos Povos da Floresta, a Oficina ‘Subsídios para a criação das categorias Escola Indígena e Professor Indígena e outros marcos para a Gestão Intercultural da EEI no Acre’, promovida pela Secretaria de Estado de Educação e Esporte do Acre, Comissão Pro-Índio do Acre e pela Organização dos Professores Indígenas do Acre, com apoio do UNICEF, reuniu a fina flor dos professores indígenas do Acre. Tive a alegria de reencontrar grande parte dos professores que conheci nos idos de 1998. Hoje, são professores experientes, com pelo menos 20 anos de magistério. Acredito que no Acre há muito tempo não havia um encontro de Educação Indígena desta magnitude.

A Educação Escolar Indígena tem um sobrenome comprido, conforme relembraram e reafirmaram os professores indígenas reunidos na oficina: ‘Educação Escolar Indígena Diferenciada, Intercultural, Específica e Bilíngue’. Ela é bilingue porque dentro da escola devem ser faladas e ensinadas duas línguas, o português e a língua indígena; ela é intercultural porque nela devem ser abordados os conhecimentos provenientes da nossa sociedade, como também os conhecimentos próprios indígenas; e específica porque ela deve estar referenciada não somente no indígena genérico, mas no povo indígena específico, Manchineri ou Shawãdawa ou Huni Kuĩ ou Yawanawa ou Ashaninka etc. E ‘diferenciada’ está em oposição à educação escolar propedêutica, da nossa sociedade. A educação escolar indígena é diferenciada por todos os pontos levantados acima e por outros ainda. Conforme lembrou a professora Julia Yawanawa:

“Eu vejo a educação diferenciada como uma liberdade que nós, professores, temos de priorizarmos aquilo que é importante pro povo, pra uma comunidade continuar com o conhecimento próprio. Antes, a gente recebia muitos papéis da Secretaria, conteúdos já prontos para serem aplicados na sala de aula. Quando os professores começaram a voltar do curso da CPI, começamos a ouvir falar de ‘educação diferenciada’, eu me perguntava, o que é diferenciado? Eu me lembro que meu pai gostava de fazer teatro com as nossas histórias. Ele gostava de fazer isto na escola. Ele gostava de falar sobre a lança, flechas, as pinturas. E a gente pensava: será que não vamos estar perdendo tempo levando isto pra sala de aula? Quando a Educação Diferenciada começou a surgir, no início, muitas famílias diziam: ‘Eu não quero o diferenciado, eu quero que meu filho fique de 7h às 11h na escola e não fale nada da cultura e nada do costume. Eu quero que ensine português, matemática, tudo do homem branco, Pedro Álvares Cabral…’. Como o passar do tempo, nós fomos vendo que o bonito não é ser branco, o bonito é ser índio, é ser Yawanawa, Huni Kuĩ, Puyanawa… E a educação diferenciada é pra garantir isto verdadeiramente.”

Durante a oficina, as questões que nortearam as discussões foram praticamente as mesmas que fazíamos há vinte anos atrás (O que é uma Escola Indígena de qualidade? Qual é a responsabilidade dos professores em garantir uma escola de qualidade? Como deve ser a formação dos professores? O que avaliar no trabalho do professor indígena (na escola e na comunidade)? O que fazer com o professor que não cumpre o seu dever? Como são tomadas as decisões nas escolas indígenas? Como garantir que as normas e costumes próprios de cada povo sejam considerados na implementação da organização pedagógica e administrativa das escolas?),mas os debates suscitados foram outros, pois agora calcados na larga experiência dos professores. Discutiu-se não somente as dificuldades enfrentadas devido à ausência do poder público que tem falhado em assumir suas atribuições (falta de cursos de formação e assessoria aos professores indígenas, atraso na entrega de merenda e material escolar, modelo de contratação dos professores, estrutura precária das escolas), como também as dificuldades de cunho político encontradas no âmbito das próprias comunidades.

Dentre os debates travados, aqui gostaria de ressaltar, especialmente, a síntese do que foi apontado como uma ‘Escola Indígena de qualidade’:

  • É a escola que valoriza e respeita os costumes, as culturas, tradições, e que está ligada à vida do povo;
  • É a que tem professores formados nos conhecimentos tradicionais e ocidentais;
  • É a escola que está articulada com a comunidade, e que tem a participação das lideranças, pajés, agentes de saúde, agentes agroflorestais, parteiras, anciões, e as famílias;
  • É a escola com uma estrutura adequada e com recursos para garantir o bom trabalho de professores e outros;
  • É a que tem merenda de qualidade e em quantidade;
  • É a escola que está regularizada, com o PPP;
  • É a escola que tem estrutura e recursos (energia elétrica, laboratório de informática, gravadores e máquinas fotográficas).

Apesar da longa trajetória e do pioneirismo do estado do Acre no que diz respeito à Educação Escolar Indígena, as categorias Escola Indígena e Professor Indígena ainda não são reconhecidas. Isto significa que, formalmente, elas e os professores são categorias comuns não diferenciadas. O reconhecimento dessas categorias, conforme compromisso assumido pelo Secretário de Educação, Marco Antônio Brandão Lopes, durante a abertura do evento, permitirá a criação da carreira de magistério indígena e a realização de concurso público. Embora este seja um desejo de todos os professores e um consenso entre todos as instituições envolvidas, conforme se discutiu naqueles dias, este deve ser muito bem planejado para que ele venha a beneficiar de fato os professores com o perfil em sintonia com o que se entende por `escola indígena de qualidade`.

Neste sentido, é sintomático que à pergunta ‘Qual é a responsabilidade dos professores em garantir uma escola de qualidade?’ foram apontadas as seguintes características: 1 -Ser articulador, pesquisador, organizador e realizar trabalhos na prática dos povos; 2- Respeitar o calendário do povo, valorizar a cultura, a tradição, os costumes; 3- Ser um grande conscientizador, ter boa atitude, bom comportamento. Note-se que, apesar de todos reconhecerem que a ‘formação nos conhecimentos ocidentais’ é importante, ela não foi apontada como requisito fundamental no perfil do professor que tem compromisso com a ‘escola de qualidade’.

No contexto dessa discussão, recebemos a notícia do resultado do vestibular da UFAC para o Curso de Formação Docente para Indígenas. Conforme noticiamos aqui nesta coluna, no dia 9 de abril, nenhum representante dos povos Manxineru, Yawanawa, Katukina, Jaminawa, Shawãdawa, Puyanawa foi aprovado nesse concurso. A prova consistia em uma redação em português, ou seja, considerava apenas a proficiência do candidato na língua portuguesa e na escrita, privilegiando os indígenas que possuem um bom domínio nessas áreas, em detrimento daqueles cuja língua materna é a indígena e que têm o português como segunda língua. Se os próximos vestibulares da UFAC para o Curso de Formação Docente para Indígenas continuarem nessa mesma linha, podemos prever que dificilmente teremos um professor Madijá no curso da UFAC, uma vez que, como se sabe, muitos deles têm pouco domínio do português, pois a língua Madijá é predominante. Justamente em um momento em que muitos povos indígenas estão lutando pelo reconhecimento e sobrevivência de suas línguas, o vestibular da UFAC está definitivamente na contramão deste movimento.

Apesar da frustração geral, a má notícia, entretanto, veio a calhar no sentido de nos alertar para os riscos de um concurso público para um público diferenciado e a importância de se planejar com cuidado como se dará o processo seletivo. Neste sentido, ao final da oficina, foram formuladas as seguintes diretrizes para o futuro concurso público para professores indígenas no Acre:

  • Considerar as línguas indígenas e a oralidade;
  • Considerar a experiência profissional do candidato;
  • Considerar os diferentes níveis de escolaridade dos professores que estão atuando;
  • Carta de indicação / anuência da comunidade (pré-requisito);
  • Distribuição proporcional das vagas de acordo ao número de etnias e população.

Seguindo estas diretrizes, acreditamos que o futuro concurso público para o ingresso na carreira do magistério público indígena estará de fato contribuindo com a ‘escola indígena de qualidade’.

Fonte: http://pagina20.net/v2/escola-indigena-de-qualidade/