Matéria publicada originalmente na coluna Papo de índio do Jornal Pagina 20

  • Por Mara Vanessa Dutra, Vera Olinda Sena

De um olhar que é ao mesmo tempo de longe e de muito perto, nos honra participar desta 10ª Edição do Abril no Acre Indígena, dando nossa contribuição à Coluna de hoje sobre os 40 anos de indigenismo da Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre). Como conselheiras, temos acompanhado esse trabalho, apoiando com análises e orientações, sempre no intuito de somar com a dinâmica e aprimoramento dos eixos e programas da instituição, especialmente diante do cenário preocupante instalado no Acre e no Brasil. Não podíamos, dessa forma, celebrar o aniversário de 40 anos da CPI-Acre senão pelo viés dos desafios atuais, frente às investidas dos governos que ameaçam violar a Constituição do país.

Algumas questões que se colocam dizem respeito a como enfrentar o grande desafio de não ter, hoje, garantias da manutenção dos direitos dos povos indígenas e de enfrentar as terríveis ameaças de todo dia, em especial as dirigidas contra seus direitos territoriais. Os primórdios da luta pela demarcação das terras indígenas foi uma importante retomada no Brasil, tanto para reconhecer e manter a vida destes povos em suas diferentes dimensões – física, cultural, espiritual, ambiental, produtiva – como para elaborar um novo mapa do país, contribuindo para reduzir a exploração humana, o preconceito, as pressões e a degradação dos recursos naturais nas terras indígenas.

40 anos é um tempo de maturidade e nos enche de orgulho ver que podemos celebrar ganhos, conquistas, avanços, frutos de um trabalho bem elaborado, participativo, com o princípio da autoria indígena, sobre o pilar  da demarcação das terras. Um trabalho que sempre buscou valorizar os conhecimentos indígenas, batalhar por justiça social, difundir as estéticas e a visão sensível de autores e artistas indígenas e suas obras. São conquistas alcançadas graças, principalmente, à enorme capacidade dos povos indígenas de resistir e enfrentar tantas adversidades, contando com aliados e parceiros, entre os quais se coloca a Comissão Pró Índio do Acre.

Algumas destas conquistas contribuíram para a construção de uma cidadania mais plena, aquela que se baseia no respeito à diversidade e no convívio com as diferenças. Destacamos a formação de professores e de agentes agroflorestais indígenas e, embora por menos tempo, também de agentes de saúde. Essa formação foi iniciada nos anos 80 por solicitação dos indígenas, que queriam se apropriar da escrita e lidar  de um modo mais justo com as coisas do não índio, sempre se baseou no conceito de autoria indígena que corresponde, no campo político, aos conceitos de autonomia e autodeterminação. Ao longo de mais de duas décadas foram formados 150 professores indígenas no Magistério Intercultural, até que o estado incorporou essa ação como política pública. Muitos dos professores indígenas formados pela CPI-Acre cursaram depois a universidade, alguns seguiram para mestrado e doutorado e hoje há um acúmulo de conhecimento produzido e sistematizado por esses professores-pesquisadores. O processo de autoria incluiu não apenas a autoria de livros didáticos específicos elaborados a partir da pesquisa e para uso das escolas diferenciadas, mas também a própria concepção de escola indígena em várias dimensões. O currículo de formação dos professores indígenas foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação em 1998 e o Centro de Formação dos Povos da Floresta, espaço da CPI-Acre, é a escola credenciada para oferecer essa formação.

Hoje no Acre existem 182 Agentes Agroflorestais Indígenas,  que atendem a 28 Terras Indígenas. Desses, cerca de 120 foram ou estão sendo formados pela CPI-Acre, em processo iniciado em 1996 e que inspirou – assim como projeto de autoria indígena, no campo da educação escolar – a várias outras iniciativas pelo Brasil afora. Esses AAFIs estão à frente de importantes processos de gestão territorial e ambiental nas Terras Indígenas do Acre, com impressionantes resultados, sobretudo no campo da soberania alimentar e manutenção dos serviços ambientais advindos da floresta  em pé.

Ao longo desses 40 anos, a Comissão Pró Índio buscou e consolidou parcerias com as organizações indígenas, apostando fortemente na ocupação indígena de espaços de participação e governança no estado. A Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) e a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), além de várias outras associações indígenas locais, que estão fortes, autônomas, dinamizando seus diferentes projetos, são parceiras que ajudam a orientar o trabalho indigenista da CPI-Acre.

Trazer para o debate da sociedade acreana o pensamento, a estética, a ética, as propostas e as reivindicações indígenas sempre foi uma tônica do trabalho da instituição. Nos últimos dez anos, o projeto Abril no Acre Indígena tem servido para marcar esse espaço, utilizando-se de formas e linguagens diversificadas para trazer para o primeiro plano o olhar indígena no Acre para e sobre os não indígenas.

A partir de 2004, a Comissão Pro Índio ampliou seu foco de atuação com o trabalho transfronteiriço. Povos indígenas na fronteira Brasil – Peru (Acre – Ucayalli)  vivenciam situações semelhantes de ameaças territoriais e outras; são povos cujos territórios são anteriores às fronteiras demarcadas pelos estados nacionais e que têm avançado em construção de saídas comuns para problemas comuns.

Sob muitos aspectos, o trabalho indigenista da CPI-Acre construiu propostas inovadoras e serviu de inspiração para outras iniciativas. Em seu Centro de Documentação e Pesquisa guarda um rico acervo de conhecimento sistematizado por professores, agentes agroflorestais e lideranças indígenas, que é disponibilizado para os próprios indígenas e para a sociedade em geral.

Educação, arte, cultura, saúde, segurança e soberania alimentar, gestão territorial e ambiental, relação intergeracional, equidade de gênero, enfrentamento das mudanças climáticas, questões transfronteiriças, são temáticas que perpassam a prática indigenista da Comissão Pro Índio do Acre. Pontes foram construídas para diálogo com os governos, propostas foram consolidadas de espaços compartilhados de governança e um trabalho constante de formação política é feito com intuito de apoiar lideranças indígenas a monitorar as políticas  públicas de seu interesse. Enfim, os povos indígenas no Acre, nesses 40 anos, demonstraram para o Brasil e para o mundo não apenas sua enorme força de resistir, mas sua plenitude de existir e de marcar sua diferença como algo positivo.

O momento em que a CPI-Acre completa 40 anos de trabalho indigenista é também um momento que chama à reflexão sobre o papel desse trabalho no cenário atual, ameaçador em vários aspectos. Se a luta dos povos indígenas e seus aliados tem sido pela garantia, integridade e gestão de seus territórios e dos recursos naturais neles contidos, hoje o direcionamento do modelo de desenvolvimento proposto para o Brasil e para o Acre vai no sentido oposto. Desconsidera a necessidade de se manter a floresta em pé, não acredita nas mudanças climáticas e na capacidade da floresta de amenizar seus efeitos negativos; propõe que os territórios indígenas sejam abertos para a mineração e para o agronegócio e que os indígenas passem a integrar a sociedade nacional sem nenhuma diferença – exatamente como propôs a ditadura, anos atrás, como projeto de emancipação, visando trazer as terras indígenas para o mercado, exatamente como impõe  o discurso atual.

Mas da mesma forma que a proposta da ditadura foi derrotada pela resistência dos povos indígenas e de seus aliados, certamente a atual ofensiva não passará. A identidade desses povos tem raiz profunda, que não se arranca com ligeireza. Neste momento feito de tantos desencontros, quando a violência nos chega a cada dia com mais força em suas diversas formas – física, simbólica – e quando vemos um perigoso avanço do pensamento monolítico, a atuação indigenista ganha ainda mais peso em sua missão de contribuir para a construção plena de nossa cidadania – nós, não indígenas. Defender os direitos indígenas é uma exigência de cidadania para todos nós, brasileiros. Se queremos que nossa Constituição Cidadã seja respeitada precisamos reconhecer a centralidade do respeito aos direitos indígenas como peça fundamental na construção de um país pluriétnico e multicultural, com sua incrível riqueza de povos.

Portanto, a atuação indigenista da CPI-Acre continua sendo necessária, em aliança total com os povos indígenas, suas organizações e lutas. Mais que nunca, é importante a formação política para se compreender as relações de poder e tudo que está em jogo no contexto atual. São esses mesmos povos que sempre nos mostraram rumos, caminhos e novas formas de ver o mundo; nos mostram  a força de sua resistência, apoiada na ancestralidade e na espiritualidade. São eles hoje que percorrem o mundo todo, este nosso mundo carente de esperança, mostrando um pouco de sua cultura, de sua mensagem de cura, de harmonia, de paz com a natureza. As culturas indígenas são a grande riqueza desses povos e se realizam concretamente em seus territórios ancestrais. Assim, o apoio à proteção desses territórios, que, repetimos, nunca foi apenas o espaço físico, continua sendo uma exigência do trabalho indigenista.