O Kene Kuĩ, ou “desenho verdadeiro”, é um dos principais elementos da identidade do Povo Huni Kuĩ (Kaxinawá). Seus grafismos, tradicionalmente produzidos pelas mulheres, estão presentes em diversas expressões culturais, como tecelagem, cestaria, miçangas, pintura corporal e facial, cerâmica e bancos esculpidos. O Kene Kuĩ representa um conhecimento ancestral transmitido de geração em geração, ensinado às mulheres Huni Kuĩ pela jibóia.

Esse patrimônio cultural, que resiste há séculos, agora recebe reconhecimento oficial: o Kene Kuĩ foi registrado como Patrimônio Cultural Brasileiro de natureza imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A aprovação ocorreu nesta terça-feira (25), durante a 107ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, consolidando um marco na valorização dos saberes indígenas e na luta do povo Huni Kuĩ pela proteção de seus grafismos.

Profº Drº Joaquim Mana, durantea 107ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Foto: Gleison Teixeira

O coordenador do Projeto de Instrução Técnica do Processo de Registro do Kene Kuĩ e secretário da Federação do Povo Huni Kuĩ do Acre (FEPHAC), Profº Drº Joaquim Mana, celebrou a conquista e ressaltou a importância do envolvimento coletivo. Ele agradeceu ao povo Huni Kuĩ, especialmente às mestras, guardiãs desse conhecimento, e a todos os parceiros que contribuíram para esse processo, incluindo o IPHAN, a Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), professores e pesquisadores.

“Após 19 anos de mobilização, finalmente conseguimos o reconhecimento do Kene Kuĩ como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, uma conquista de grande satisfação para nosso povo. Agradeço especialmente à CPI-Acre, cuja equipe estruturada foi essencial para que esse processo chegasse até aqui. Foram muitos os parceiros e colaboradores, impossíveis de nomear um por um, mas deixo minha gratidão aos não Huni Kuĩ e a todo o povo Huni Kuĩ. Somos 17 mil pessoas, 130 lideranças e comunidades, e cada um, de forma direta ou indireta, contribuiu para essa conquista. Muito obrigado a todos!”, destaca Mana.

A luta pelo reconhecimento do Kene Kuĩ como patrimônio cultural brasileiro começou há quase duas décadas. Desde 2006, a FEPHAC vem denunciando a apropriação indevida e a exploração comercial dos grafismos Huni Kuĩ por pessoas e instituições não indígenas. Esse cenário impulsionou a busca por mecanismos de proteção, resultando no diálogo entre a FEPHAC e o IPHAN para o desenvolvimento de projetos e ações públicas que garantissem a salvaguarda desse bem cultural.

A artesã Bismani Huni Kuĩ, jovem do povo Huni Kuĩ, compartilha a emoção dessa conquista:

“Este é um momento histórico para o povo Huni Kuĩ, de muita alegria e comemoração. Nossos grafismos Kene Kuĩ agora são Patrimônio Cultural Brasileiro. Como jovem Huni Kuĩ e artesã, fico profundamente emocionada. Após 19 anos de luta e resistência, o Kene foi registrado e agora é nosso, e essa conquista garante que ninguém mais se aproprie dele, como já vinha acontecendo com os Nawa”, afirma Bismani.

Nos últimos anos, importantes etapas foram realizadas para a instrução técnica do processo de registro (Termo de Fomento nº 890291/2019). Uma equipe formada por pesquisadores Huni Kuĩ e consultores não indígenas conduziu pesquisas documentais e oficinas em terras indígenas Huni Kuĩ do Jordão e Alto Purus, registrando visual, audiovisual, escrita e sonoramente as práticas e conhecimentos ligados ao Kene Kuĩ. Em 2023, a CPI-Acre estabeleceu um novo contrato com o IPHAN (Processo nº 01423.000043/2023-81 – Contrato Administrativo nº 007/2023), assegurando recursos para a continuidade das ações, agora focadas na divulgação dos resultados da instrução técnica e na validação das recomendações sobre as salvaguardas.

O processo de reconhecimento envolveu as mestras do Kene, responsáveis pela transmissão desse saber ancestral, entre elas Maria Moreira Kaxinawá, Elza Napoleão Bardales Kaxinawá, Laíza Sales Kaxinawá, Ozélia Sales Kaxinawá e Judite Carlos de Silva Freitas. Também participaram cineastas Huni Kuĩ, como Gilson de Lima Kaxinawá e José de Lima Kaxinawá, além de pesquisadores como Antônio Napoleão Bardales Kaxinawá, Francisco Bardales Kaxinawá, José Benedito Ferreira Kaxinawá (in memoriam), Norberto Sales Kaxinawá e Josias Pereira Kaxinawá. A colaboração técnica contou com Els Maria Lagrou, Marcos Almeida Matos, Tiago Melo de Macedo, Paulo Roberto Nunes Ferreira, Eudenice Ferreira e Gleyson Teixeira, entre outros, que contribuíram significativamente para a instrução técnica, as pesquisas e os registros necessários à patrimonialização do Kene Kuĩ.

Em 2024, a CPI-Acre, em parceria com o IPHAN (Processo nº 01423.000043/2023-81 – Contrato Administrativo nº 007/2023) e a FEPHAC, promoveu um importante evento para a divulgação dos resultados da instrução técnica. O encontro, realizado no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF), em Rio Branco, contou com a participação de várias aĩbu keneya, mestras do Kene, representando as 12 terras indígenas Huni Kuĩ. Durante o evento, foram discutidas a continuidade dos conhecimentos e práticas associadas ao Kene, sua transmissão às novas gerações e o papel do Estado na proteção e valorização desse patrimônio cultural.

O reconhecimento do Kene Kuĩ como Patrimônio Cultural do Brasil é mais do que um título simbólico: ele representa um avanço na preservação das práticas culturais indígenas e na valorização dos saberes tradicionais. Além disso, fortalece a luta contra a apropriação indevida dos grafismos Huni Kuĩ, garantindo que esse conhecimento permaneça sob domínio e transmissão das próprias comunidades Huni Kuĩ.

A aprovação do registro na 107ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural reafirma a força e a resiliência do povo Huni Kuĩ. Com esse reconhecimento, o Kene Kuĩ passa a ser oficialmente protegido como um bem cultural imaterial do Brasil, garantindo sua valorização e salvaguarda para as futuras gerações.