Aldeia Novo Futuro na TI Kaxinawá do Rio Humaitá (foto: Josy Pinheiro)

 

Por Malu Ochoa e Vera Olinda Sena

Nesta semana o professor indígena Jocemir Saboia Kaxinawa, da aldeia São Vicente da Terra Indígena (TI) Kaxinawá do Rio Humaitá, entrou em contato com a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) para alertar sobre o risco de contágio do novo coronavírus entre povos isolados. “Estamos passando por um momento complicado, em tempo do verão, quando os parentes isolados estão andando nas aldeias e agora esse vírus chegou na nossa terra. Todas as aldeias estão sendo afetadas, em algumas pessoas deu positivo. Estamos com a equipe aqui na aldeia, monitorando as pessoas que estão com febre, sentindo sintomas. Acabamos de perder o Velho Batista da aldeia Vigilante. O Velho Batista fez a sua passagem às nove horas da noite, e o pessoal foi fazer o exame para confirmar se ele estava com o vírus”, disse Jocemir.  Uma equipe do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Juruá está percorrendo as seis aldeias da TI, fazendo o monitoramento e o diagnóstico de casos de COVID-19 (coronavírus).

No Acre, das 36 Terras Indígenas, 15 já foram afetadas pelo coronavírus. Cerca de 350 indígenas que vivem nas aldeias foram testados positivo para COVID-19, conforme monitoramento realizado pela CPI-Acre, com a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC). A confirmação dos primeiros casos na TI Kaxinawá do Rio Humaitá é ainda mais preocupante, pois segundo informações do professor Jocemir Saboia, há pessoas com sintomas de COVID-19 em cinco, das seis aldeias da TI, um território com presença de povos indígenas isolados, que são bem mais suscetíveis a doenças epidemiológicas.

“Não só os Huni Kuĩ estão vulneráveis, mas também a população de um povo ainda desconhecido que vive em isolamento voluntário nas cabeceiras daquele rio [Humaitá]. O contágio dessa misteriosa doença, que nos parece um grande feitiço da natureza, poderá ser transmitida por ocasião dos saques que promovem, quase todos os anos, sobretudo nos meses de verão amazônico, nas casas de seus vizinhos Huni Kuĩ e de moradores indígenas e não-indígenas dos altos rios Muru e Iboiaçu. Se essas populações do entorno forem contaminadas pelo novo coronavírus, os “isolados do Humaitá” também correm o sério risco de serem contagiados por essa doença respiratório aguda grave, contagiosa, que poderá levar ao seu extermínio, como aconteceu com muitos grupos indígenas durante as epidemias do século passado”, esclarece o antropólogo Txai Terri Aquino.

Em abril, quando a COVID-19 ainda não tinha se espalhado pelo interior do Acre, o Agente Agroflorestal Indígena (AAFI) Nilson Tuwe demonstrou preocupação com a regularidade da presença dos isolados próximo as aldeias na TI Kaxinawá do Rio Humaitá. Nilson disse à CPI-Acre que eles estavam aparecendo com mais frequência,  que uma flecha havia sido lançada recentemente e quase atingiu um morador que  estava pescando. “Os isolados estão aqui perto, agora estão [aparecendo] de inverno a verão próximo das aldeias. Temos essa preocupação porque não queremos ser atingidos. Não queremos mexer com eles, nem que eles mexam com a gente. Por isso precisamos articular uma vinda do pessoal da Frente de Proteção Etnoambiental aqui.”

Grupo de Huni Kuĩ sai para viagem de monitoramento e proteção dos isolados (foto ASPIRH)

Isolados do Humaitá

Demarcada em 1996, a TI Kaxinawá do Rio Humaitá está localizada no município de Feijó e possui uma área de 127.383 hectares. Com 99% de cobertura floresta, o território está situado às margens do Rio Humaitá, afluente do Rio Muru. Os Huni Kuĩ compartilham o seu território com povos indígenas que vivem em isolamento voluntário, conhecidos por Isolados do Humaitá, que foram localizados pela primeira vez em 1989 pela Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira (FPERE) da Funai. Estima-se que são os mais numerosos da região. Suas malocas e roçados se encontram nas terras firmes e altas nos divisores de água entre os rios Humaitá e Muru.

Os Huni Kuῖ da TI Kaxinawá do Rio Humaitá estão, desde 2009, fazendo ações de proteção territorial levando em consideração medidas de proteção dos índios isolados, e articulação com o entorno, vizinhos não indígenas moradores do rio Muru, para que também respeitem e protejam os isolados. Estas ações iniciaram com as Oficinas de Informação e Sensibilização promovidas pela FPERE- Funai e a CPI-Acre, onde  ocorreram troca de informações sobre a situação dos povos indígenas isolados, permitindo a atualização dos dados e o monitoramento sobre a presença desses grupos na região. Um dos resultados dos encontros foi a decisão dos Huni Kuĩ em disponibilizar quase um terço do seu território, situado na cabeceira do rio Humaitá, para uso exclusivo dos isolados.

Liderança Vicente Saboia no plantio de roçados para isolados na TI Kaxinawá do Rio Humaitá (foto ASPIRH)

Entre as ações destaca-se também a construção da “Casa de Monitoramento”, que tem o objetivo de diminuir a presença/circulação dos isolados nas aldeias. Os Huni Kuĩ visitam a “Casa de Monitoramento” periodicamente e deixam utensílios como panelas e terçados, itens muito cobiçados pelos isolados quando visitam as aldeias.  Com essa iniciativa evitou-se o contato e possíveis conflitos, não só dentro da Terra Indígena, mas também com os vizinhos do entorno. As oficinas de sensibilização com os moradores não indígenas do entorno dos rios Muru e Iboiaçu acontecem até hoje. Nos últimos anos os Huni Kuῖ perceberam que os vestígios de isolados tem aumentado. Eles também escutam com mais frequência a comunicação característica que imita cantos de pássaros.

Agora, na situação grave de pandemia, com o coronavírus se espalhando por toda TI Kaxinawá do Rio Humaitá, a situação de risco de vida é séria e requer medidas de proteção urgente. Os Huni Kuῖ do Humaitá não podem ficar, por conta e risco, protegendo os povos isolados, com quem compartilham território. É preciso medidas permanentes de prevenção, atendimento, informação e monitoramento do distanciamento dos isolados naquela terra indígena. O coronavírus não pode chegar aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário. O poder público, conforme preceitos constitucionais, deve ser rápido nas ações e respostas, pois a ele compete proteger estes povos, impedir o avanço da doença COVID-19, antes que seja tarde  demais.