Lucas Manxineru (foto: acervo CPI-Acre)
Paulo César. (foto: Paula Lima)
Nome Paulo César de Oliveira Silva – Liderança
Nome indígena Utista
De acordo com os nossos antepassados, ‘Nukini’, quer dizer ‘onça pintada’. Nós somos um povo de origem da onça. Por isso nós temos respeito por ela e sempre carregamos alguma coisa da onça: um dente no cordão, pulseira ou tiara da pele dela. Hoje, nós vivemos na Terra Indígena Nukini, na fronteira do Acre com o Peru.
História
A história do contato dos povos indígenas no Acre é quase sempre a mesma. Foi por causa dos seringueiros que foram tomando de conta. Conforme eles foram subindo o rio, os povos indígenas foram fugindo para os afluentes, onde os patrões não tinham acesso.
Na nossa região, a gente entrou em contato com um patrão seringalista pela primeira vez devido a uma briga muito grande com os Puyanawa. Nesse tempo, eles [os Puyanawa] se aproximaram de um patrão chamado Veríssimo. Quando eles chegaram no terreiro da casa dele, balançaram uma bananeira e o patrão desceu para ver, mas não viu nada. No outro dia, quando o patrão desceu para dar comida para as galinhas, chegou um, agarrou o patrão e o chamou de ‘papá’. Depois o chamou para ir até a aldeia. Daí o que o patrão fez? Colocou muita bala no rifle e foi. Quando ele chegou de volta, já trouxe o povo Nukini. Eles ficaram um tempo lá, mas ele era um patrão pequeno que não tinha estrutura para aguentar a população que veio.
Havia um outro patrão rio abaixo, onde hoje é a nossa terra, que tinha mais mercadoria, tinha mais o que oferecer pro indígena, e assim foi puxando eles pra lá. O nome desse patrão era Pedro Antônio de Oliveira. E nesse local os indígenas ficaram trabalhando, fizeram engenho, faziam açúcar. Aí um bocado ficou e outros foram pra mata de volta, pois não se acostumaram. Mas sempre o povo Nukini ficou nesta região.
O processo de demarcação da terra indígena começou na década de 1970. Vieram os antropólogos, eles cavavam a terra para saber onde os indígenas tinham morado, onde eram as antigas malocas. Onde eles encontravam os cacos de potes, os vestígios dos antepassados, eles mediam a fundura para saber há quanto tempo os indígenas viveram ali. Este processo de demarcação da terra levou muitos anos, a nossa terra só foi demarcada em 1985 e homologada em 1991.
A Língua e a Cultura Nukini e a Educação Escolar
Atualmente, poucas pessoas ainda falam a língua indígena. Estamos trabalhando com os velhos no resgate tanto da língua quanto da cultura. Se você tem sangue indígena, você busca, você estuda, você resgata; mesmo que nunca tenha visto aquilo, mas está no sangue.
O povo Nukini, antigamente, tomava ayahuasca para descobrir o que tinha acontecido. A história conta que o povo Nukini era um povo muito guerreiro, matava e morria muito. Então ele tomava o chá e se concentrava na pessoa que tinha morrido e a ayahuasca mostrava quem a tinha matado. Daí ele ia lá e se vingava. Ou, então, quando um roubava a mulher do outro, ele se concentrava e descobria através do chá quem a roubou. Quando eles percebiam que os outros povos estavam sabendo da verdade e iriam se vingar e prejudica-los, daí eles furavam o olho do inimigo, porque quando eles tomavam o chá, não conseguiam se concentrar com o olho furado e eram incapazes de ver a verdade. Hoje não se usa mais assim. A gente usa para a consciência, o chá tem esse papel de resgate. Mas hoje o povo Nukini está tomando o chá por brincadeira, antigamente somente os velhos tomavam, os novos não chegavam nem perto.
O rapé é uma coisa nova. O povo hoje está fazendo misturas que antigamente não faziam. A gente usava um rapé diferente, com ervas, que se fumava. Se tinha um bando de queixada por perto, o meu avô fumava no cachimbo esse tabaco com ervas e a fumaça dizia para onde as queixadas tinham ido. Os novos estão se entrosando com este tipo de sabedoria, mas o povo Nukini ainda tem muito o que descobrir. O povo Nukini não é bem tradicional, perdeu uma base de 60 por cento da sua cultura, mas ainda tem muita coisa guardada, pode-se dizer que é uma etnia em reconstrução.
Hoje o povo Nukini tem três escolas na terra indígena, sendo que uma delas é uma escola padrão que vai até o ensino médio. Nós tivemos uma formatura recentemente em que se formaram 18 alunos no ensino médio.
Na escola existem professoras que trabalham só na língua indígena e nós já temos cartilhas. A língua indígena é parte do currículo escolar; se o aluno não aprende, isto aparece no boletim, ele fica reprovado como se fosse outra matéria qualquer.
Há 20 anos a energia elétrica, a televisão, atrapalharam muito a língua Nukini. Hoje, a gente está botando a língua mais em prática. Antigamente, não tinha professor específico de língua indígena e hoje já tem; a gente quer que nossos filhos aprendam os dois lados.
Gestão Territorial e Ambiental
A fiscalização hoje é lei, mas a FUNAI está fraca para ajudar e a gente não tem estrutura para fazer a vigilância. Para fazer a vigilância completa na nossa terra são muitos gastos, porque é tudo feito por canoa. Então a gente teria que ter um recurso fixo, específico pra isto.
Como a frente e a ponta da Terra Indígena são as mais prejudicadas, quando temos verba para o combustível a gente faz a vigilância nestas áreas. Nós temos feito isto uma ou duas vezes por ano, dependendo das condições. Na ponta, tem um assentamento do Incra cujos moradores caçam todo tempo dentro da Terra Indígena. O outro lado, que faz limite com o Parque Nacional da Serra do Divisor, a gente não se preocupa, porque não dá para entrar, nem por terra e nem por canoa, pois fica muito distante.
Existe uma discussão para ampliar a nossa terra. Ela foi demarcada com 27 mil hectares e, na época, éramos 150 pessoas. Hoje nós somos 680 pessoas, então a terra está pequena para a população, com relação à caça, pesca, etc. Nós queríamos um pedaço do Parque Nacional, eu fui nascido e criado ali dentro, no pé de uma serra muito alta. O plano de autodemarcação já foi conversado com a FUNAI, mas não vai pra frente.
Hoje as ameaças ambientais estão mais controladas, com o Plano de Gestão Territorial e Ambiental, os parentes se conscientizaram de que os nossos recursos são para os nossos filhos e para as próximas gerações. Por isso é importante fazer a gestão ambiental.
As caças que nós temos mais são porquinho e veado. De caça pequena temos a paca que é muito procurada na época do verão, todo mundo mata paca. O tatu também é mais fácil encontrar durante o verão. Os indígenas fazem a espera do tatu no pé de buriti e matam à noite. A espera é uma técnica muito usada desde o tempo que ainda era cultural, mas fazia durante o dia, porque não tinha lanterna antigamente.
Na pesca, a gente usa malhadeira, tarrafa. Hoje não usamos mais veneno pra pescar, nós proibimos, pois o veneno matava tudo e a gente só podia pescar naquele local uma vez por ano, depois que limpava a água.
Na agricultura, a gente ainda queima o roçado e planta a roça, milho, arroz, tudo misturado no local. Aí você limpa, colhe o arroz, depois o milho e por último a roça. A roça demora mais, para ela ficar boa é um ano. E também plantamos o feijão junto com a melancia. Esta é a técnica do povo Nukini, numa terra só ele colhe tudo isto. Fazemos assim para aproveitar a terra, se não seriam três roçados. O milho a gente vende e deixa um pouco para as criações de galinha. Hoje, lá em casa, tem uns cem pintos. Também vendemos o arroz, a farinha e a melancia.
Com relação às criações de grande porte, nós criamos porco e boi. Eu acho que nós comemos em torno de 30 bois por ano na comunidade. O povo Nukini tem condições de sustentar todas as Terras Indígenas do Acre, temos produto para isso. A terra é boa para trabalhar e o povo Nukini se preocupa muito com a alimentação sustentável. Temos muita banana, precisa até jogar pro jabuti e pros porcos para não estragar. Estamos começando uma grande criação de jabuti.
O governo também está investindo em açude, a intenção é fazer o peixe desovar lá para termos peixes durante o ano e descansar um pouco a natureza. Nosso plano é comer os peixes do açude e deixar de caçar pelo menos durante uns seis meses, pois pra tu sobreviver todo tempo da floresta, ela vai ficar cansada.
Economia
O povo Nukini é muito ligado no mercado, tem produtor que chega a fazer 12 mil reais por ano com a venda de sua produção. Somando a renda da produção, os salários, aposentadoria e os benefícios do Governo, como bolsa família, auxílio maternidade, dá em torno de 40 mil reais. Para onde está indo este dinheiro? Tem alguns que gastam tudo lá no município, mas parte dessa renda volta pra dentro da comunidade. Nós temos açúcar próprio, muita rapadura, mel, temos tudo dentro da comunidade, o povo Nukini é muito produtivo. Então eu quero que esse dinheiro fique circulando dentro da comunidade, quero que ele volte para o trabalho de novo. A nossa comunidade é rica, só falta o dinheiro voltar pra dentro da comunidade.
Mas é verdade que o acesso ao dinheiro alterou alguns hábitos da comunidade. Se hoje você for fazer um levantamento dentro da Terra Indígena, vai ver que em torno de 50% das pessoas sofrem de gastrite. O problema hoje são os enlatados, eles acabam com o nosso povo porque têm muita química. Mas a gente já está vendo isso e estamos buscando melhorar.
Eu sempre digo para os meus parentes nunca desistirem da sua produção, porque ninguém sabe quem vai ser o governo de amanhã. Eles não devem desistir e acreditar só em bolsa família, porque de uma hora para outra, se a gente pega um governo anti-indígena, vamos sofrer! Se o Governo decidir não pagar mais nenhum professor indígena, isto vai dar um abalo dentro da comunidade. Então se ele tiver sua plantação, sua cultura, seu desenvolvimento dentro da comunidade, ele não vai sofrer, porque tem mercado dentro da comunidade. Tem pessoas que têm medo quando tem eleição, eu não tenho porque não vivo às custas de Governo.
Hoje existe cerca de 15 famílias morando em Mâncio Lima. As primeiras foram pra lá por causa do estudo, que antes não tinha na aldeia e hoje já tem. Então hoje são poucas famílias que estão indo morar na cidade, mas várias famílias Nukini têm casa própria na cidade pra hospedagem. Quando uma família está saindo da casa, a outra está chegando, e fica nesse ciclo. Quando chega a época de receber a bolsa família, eles vão para comprar o que precisam, por exemplo, o combustível. Eles usam muito motor, quase toda família tem seu barco.
Projeto Futuro
Nós temos um projeto de trabalhar com etnoturismo na Serra do Divisor. O turista que quiser visitar o Parque Nacional da Serra do Divisor poderá passar primeiro pela Terra Indígena, onde nós teremos vários pacotes de atividades para oferecer. Além de cachoeira, banhos, trilhas, tem muita gente que não sabe, por exemplo, o que é uma desova de um peixe. Então, se estiver na época, o turista vai poder conhecer tudo isto.
Este é o projeto sustentável do povo Nukini para poder descansar um pouco a floresta. Com esta fonte de renda, poderemos abandonar um pouco o desmatamento para criação. Mas por outro lado, ele poderá aumentar, porque vai ter uma hospedaria e vai precisar de muito porco, boi, galinha para a alimentação dos visitantes. Uma hospedaria com 200 visitantes, por exemplo, iria gerar em torno de 50 empregos para a população, como guia, barqueiro, cozinheiras, vai ter o pessoal que vai trabalhar com a ayahuasca, o pajé que vai trabalhar com a medicina etc. O que eu gostaria de ver daqui a dez anos é que o povo Nukini tivesse realmente este projeto em funcionamento com autonomia.