Vera Olinda e Isabel Aquino
A campanha de imunização contra o novo coronavírus no Brasil está em andamento há mais de quatro meses e infelizmente ainda lenta na maioria dos estados. Um país como o Brasil que, como afirmam especialistas, o SUS teria estrutura para vacinar mais de dois milhões de pessoas por dia, a lentidão é revoltante e a gravidade da pandemia nos tira o sossego há mais de um ano. Teria sido possível salvar inúmeras vidas, não fosse estarmos sob os desmandos do governo federal que faz a gestão da pandemia com omissão, erros, falta de compromisso, irresponsabilidade com a saúde da população, conforme lemos diariamente em todas as mídias, desde quando começou a grave crise sanitária.
Desse jeito, passamos o ano de 2020 tendo que lidar com essa crueldade e entramos o ano de 2021 com um impacto muito maior. Muito mais gente morreu e continua morrendo e o governo federal parece que tem como plano levar a saúde em geral à exaustão. Liderado pelo presidente da República que não leva a pandemia a sério, não acredita na ciência e continua agindo com descaso, jogando o povo brasileiro ao abismo e com 456.753 pessoas mortas (dados de 27 /05, Consórcio de Imprensa). Este cenário obviamente torna tudo mais difícil e, dessa forma, escrever para a Coluna hoje sobre a imunização contra a Covid-19 nos leva “naturalmente” para o contexto do Brasil.
A vacinação entre os povos indígenas no Acre nos coloca mais uma vez a questão da interligação entre mundos, áreas e fatores. A vida em sociedade não funciona por setores ou em fragmentos. A vida é “um todo”. É sinérgica, para usar um termo da vez, que faz todo sentido. A pandemia demonstra como a saúde tem a ver com educação, com equidade de gênero, com cultura, com arte, com segurança alimentar, com economia. Assegura também que para retomar a vida mais próxima do que vivíamos antes da pandemia, todos precisamos ser vacinados contra o coronavírus.
A imunização chegou no Acre em 25 janeiro de 2021 com 26.960 doses de vacinas destinadas aos indígenas acima de 18 anos, de acordo com o Plano Nacional de Imunização (PNI). Desde o início, nos juntamos aos profissionais de saúde, lideranças, instituições, para sensibilizar e informar sobre a importância da vacina. A Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) está trabalhando em parceria para enfrentar e combater o coronavírus desde o começo da pandemia. Com a chegada da vacina, temos ao mesmo tempo esperança, mas permanece a atenção aos cuidados com os protocolos de segurança e a preocupação, porque ainda há recusa à vacina por parte de alguns indígenas.
Procurando entender o que estava levando à não aceitação da vacina entre alguns indígenas, fizemos escutas e conversamos com eles, e também com profissionais da saúde indígena. O que ouvimos como principal foi o medo de que a vacina seria para instalar um chip na cabeça, que iria fazer alteração genética; outros seguiam orientações de pastores (os negacionistas, fizeram um estrago diabólico nas comunidades). Ouvimos também questionamentos sobre a “facilidade” da vacina. “As coisas nunca foram fáceis para nosso povo. Por que chega a vacina do coronavírus, uma coisa tão nova, e somos os primeiros a serem vacinados?” Outros não aceitam por seguir conselhos de grupos antivacina, que infelizmente encontraram adesão pelas aldeias. No Acre, talvez mais que em outros estados, essa tendência aumentou e hipóteses sobre esse crescimento estão em discussão.
As fakes news são sem dúvida um grande desafio no combate ao coronavírus, além de que missionários/evangélicos neopentecostais estão mais uma vez adentrando as terras indígenas com um projeto maior que afeta os direitos territoriais, as culturas e as línguas indígenas, acende a intolerância, cultiva o preconceito, que provoca mais estragos e reflete no combate ao coronavírus. Muita gente no Brasil foi bastante impactada pela produção sistemática de fake news e, não por acaso, nosso país tem índice elevado na curva epidêmica. Essa produção de fake news dissemina falsidade e nega a gravidada da pandemia, mas abre para o desmatamento, para exploração de recursos naturais, torna legal o que é ilegal e estabelece o que é imoral como medidas reguladoras na gestão pública do Planalto.
Desde então, intensificamos um trabalho de informação, com boa fé, colocando para as comunidades nas terras indígenas que a vacina para os povos indígenas não se trata de facilidade, não se trata de um reconhecimento do governo federal. Ao contrário, se for seguir o presidente da República, provavelmente não teria sequer uma dose de vacina aos indígenas, na mesma linha do prometido e cumprindo – de que não demarcará um centímetro de terra para os indígenas, seguindo um modo cruel de gestão. Como amplamente divulgado, a inclusão dos povos indígenas como grupo prioritário no PNI é uma importantíssima conquista do movimento indígena, sob coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) junto ao Superior Tribunal Federal (STF). Não fosse isso, as mortes entre indígenas seriam ainda maiores. A Apib desde o ano passado informa que o impacto é enorme: são 1.088 óbitos de indígenas e 54.667 infectados no Brasil por Covid-19. No Acre foram 33 mortes, 2585 indígenas afetados de 14 povos (ver imagem abaixo). Então, a vacina para os povos indígenas é resultado de luta para salvar vidas.
Vacinação entre indígenas no Acre
No Acre, dados da Secretaria de Estado de Saúde (Sesacre), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Observatório da Covid-19, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e de colaboradores da CPI-Acre, reunidos no trabalho de monitoramento que a instituição realiza, mostram que desde o início da campanha de imunização nas terras indígenas, em 25 de janeiro deste ano, foram vacinados 8.171 indígenas com a primeira dose e 5.657 com a segunda dose nas TIs do Acre, sendo a meta vacinar 12.384 indígenas. Ou seja, diante da população estimada para vacinação, até agora 66% dos indígenas foram imunizados com a primeira dose, enquanto com a segunda dose foram 45,7% vacinados.
O Dsei Alto Rio Purus é responsável pelas seguintes TI’s no Acre: TI Alto Rio Purus, TI Cabeceira do Rio Acre, TI Mamodate, TI Manchineri do Seringal Guanabara, TI Jaminawa do Guajara, TI Jaminawa do Rio Caeté e TI Jaminawa. Destas populações, segundo dados divulgados no dia 25 deste mês, foram vacinados 2.056 indígenas com a primeira dose e 1.499 com a segunda. Já pelo Dsei Alto Rio Juruá, foram vacinados 6.115 com a primeira dose e 4.158 com a segunda dose, segundo informações divulgadas no dia 27 deste mês, sendo a meta vacinar 9.596 indígenas no total. Os indígenas que moram nas cidades não estão ainda sendo vacinados, embora já exista a determinação do STF para que estes sejam incluídos no grupo de prioridade. No início de maio, a Justiça Federal acolheu a determinação e exigiu a inclusão de indígenas não aldeados e que moram em áreas urbanas no Acre como prioridade de imunização. Foi indicado um prazo de 30 dias para a União produzir um levantamento dessa população e fazer o cadastramento no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi).
Durante toda a pandemia, a parceria com os Dsei Alto Rio Juruá e Alto Rio Purus tem sido bem importante para que diferentes trabalhos e instituições se juntem no esforço de combater o coronavírus. Acreditamos que tem sido uma boa aprendizagem para todos. Em termos de sistematização, divulgação e acesso às informações temos ainda um hiato no Acre que não podemos desistir para superar. Discutimos em várias reuniões do GT interinstitucional para monitoramento, estudos e sugestões sobre os impactos da Covid-19 em TI, a necessidade de ter um “Acre único” no que se refere às informações sobre a Covid-19 em terras indígenas. Essas informações trariam, claro, benefícios os povos indígenas e políticas de saúde, desde o controle da doença, a planejamento de atividades, a otimização de recursos, entre outros.
Apesar de alguns esforços, não chegamos ao ponto necessário. As informações semanais sobre vacinação disponibilizadas pelas instituições, caso fossem por TI ou mesmo aldeias e TIs, seria um salto no monitoramento da Covid. Hoje são apresentados pela SESAI e Sesacre os dados por município. Sobre o monitoramento das contaminações, a realização de testagem em massa, como recomendam os cientistas seria outro salto de qualidade. Também ações interinstitucionais de educação para a saúde é um caminho. O censo da população acima de 18 anos é um dado importante para a informação sobre a cobertura da imunização, além de continuar investindo nos protocolos de segurança, que é um trabalho constante para controlar a pandemia.
Já sobre a presença de missionários e evangélicos nas terras indígenas o antropólogo Terri Valle de Aquino, fala sobre o ingresso desses ditos apóstolos nas terras indígenas do Acre:
“A presença dos missionários e evangélicos no Acre é antiga. Desde a década de 60, há sessenta anos atrás, eles já estão presentes na vida dos índios. Sobretudo essas missões evangélicas, fundamentalistas, americanas, chamadas new tribres, que querem conviver com os indígenas, aprender a língua para traduzir o novo evangelho, o novo testamento com aquela ideia de pregar o evangelho a todos os povos do mundo. Eles chegaram no Acre ainda no tempo do cativeiro e esses missionários prestavam algum tipo de serviço de saúde, distribuíam remédios e outros serviços. Faziam cultos, tentavam sempre converter a família do chefe, que era uma estratégia deles de se estabelecer na área. Quando os índios começaram a viver o tempo de direitos no Acre isso foi mudando. Hoje esse tempo de direitos está cada vez mais ameaçado no governo atual e por órgãos que deveriam cuidar da proteção dos índios e fazem o contrário. O Brasil está todo invertido. Isso favorece o retorno desses missionários e a conversão. Há indígenas pastores ligados com as igrejas nas cidades que conseguiram dificultar a aceitação para a vacina”, diz Terri.
No contexto da pandemia transparece esse conjunto de desafios complexos e que ficam maiores diante da crise sanitária. A começar pela questão acima, porque analisar o grau de influência das religiões nas culturas é tarefa bastante difícil, ao passo em que também se percebe prejuízos causados por essa presença nas terras indígenas. A pandemia está mostrando fragilidades e fortalezas: fragilidades no Sistema de Saúde em geral e no de Saúde Indígena, em particular, na segurança alimentar de algumas comunidades. Fortaleza no poder de cura da medicina tradicional dos povos, nos modos de resistir.
Especificamente sobre a vacina, informações do Dsei Alto Rio Juruá mostram, felizmente, que a situação está se revertendo e que hoje é maior a quantidade de pessoas aceitando a vacina. O que é prioridade ainda é controlar a pandemia, tomar a vacina, para que os impactos sejam menores e vidas sejam mantidas. Com isso será possível reorganizar uma grande aliança pela vida, pela floresta em pé, pelas culturas, pela alegria. Uma aliança contra esse desgoverno e todo o retrocesso e violência que ele representa.