Camila Martins e Leilane Marinho

No último dia 30 aconteceu o encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização indígena do país, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Neste ano, o evento apresentou mais de 60 atividades online com discussões em torno da situação dos povos indígenas na pandemia, da mineração em terras indígenas, do protagonismo da juventude e das mulheres na garantia de direitos, entre outros assuntos chaves para a mobilização indígena na atualidade. Por meio de encontros virtuais, foi possível reunir lideranças de diversos povos em conversas que continuam disponíveis nas redes sociais, e atingirão ainda mais pessoas.

O primeiro ATL produzido em formato virtual, realizado no ano passado, proporcionou discussões majoritariamente sobre a pandemia da doença COVID-19, que já afetava as populações indígenas. Naquele momento tornou-se ainda mais urgente levar a luta indígena para o campo virtual e “demarcar as telas”, como ressaltado por Sonia Guajarara, coordenadora da APIB, durantes os ATL on line. A mortalidade entre os povos indígenas por COVID-19 é pelo menos duas vezes maior que entre não indígenas de todas as faixas etárias, conforme pesquisa realizada pela Fiocruz. Segundo dados organizados pela APIB, 53641 indígenas foram infectados pela COVID-19 até o momento, sendo 163 povos afetados e 1063 óbitos registrados.

No Acre, o monitoramento realizado pela Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre), Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), mostra que 14 povos foram atingidos pela pandemia, afetando mais de 2500 indígenas, sendo que 31 vieram a óbito por complicações da COVID-19.  Dos mais de 12 mil indígenas que devem ser vacinados no estado, 4.683 receberam a segunda dose, de acordo com dados divulgados pelos DSEIs Alto Rio Juruá e Alto Rio Purus.

Os povos indígenas tiveram seus territórios e modos de vida impactados devido à gestão ineficiente da pandemia aliada à consolidação do projeto de desmonte de políticas ambientais e indigenistas, explicitamente apresentado pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao defender “passar a boiada”, no início da crise sanitária no Brasil. Desde então,  projetos de leis foram criados, materializando o processo de desmonte, como o  “PL da Grilagem” que estimula a invasão de terras públicas e que, após intensa mobilização, foi retirado da pauta do Senado no final de abril (28).

Tramita também no Congresso a proposta do governo federal de legalizar a mineração em Terras Indígenas, o PL da Mineração (191/2020), que fere gravemente direitos indígenas, ameaçando a proteção de seus territórios.  Um grupo de jovens indígenas de diferentes povos assinaram no final de abril a coluna “Ricardo Salles, somos indígenas e usamos a tecnologia para denunciar seus retrocessos” na Folha de SP, jornal de grande alcance no país. O texto foi produzido em resposta à fala racista de Ricardo Sales, quando referiu-se aos indígenas que protestavam contra o PL da Mineração como da “tribo do Iphone”.  No artigo, os jovens escrevem: “Nós somos indígenas e usamos a tecnologia para ecoar a voz da juventude, quebrar preconceitos e demarcar nossas terras para impedir a entrada de invasores”.

Em meio a este cenário de violação de direitos dos povos indígenas, iniciativas de mobilização são criadas e atualizadas, considerando as restrições impostas pelas medidas de cuidado em contexto de pandemia e as novas possibilidades que emergem no debate público, a partir dessas limitações. Felizmente, em todo Brasil diversos povos indígenas estão se apropriando da virtualidade, especialmente compartilhando protestos e denúncias, comunicando legitimamente que suas vozes não serão caladas. Saber transitar no ciberespaço, recriando-se e resignificando-se é mais uma forma de resistir às estratégias baseadas em práticas coloniais – como a negação de direitos, discriminação e violência institucionalizada.

Informações qualificadas para o controle da pandemia

Além de aumentar as estratégias de mobilização social mediante as investidas do atual governo federal contra os povos indígenas, o uso da internet tornou-se uma ferramenta de enfrentamento à COVID-19 nas cidades e nas terras indígenas. Foram produzidas lives, podcasts, vídeos e informativos nas línguas indígenas, tendo como meta apresentar  informações claras sobre a doença COVID-19 para as comunidades.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que informar a população sobre os riscos à saúde apresentados pela COVID-19 é tão importante quanto outras medidas de proteção, reforçando que no combate à pandemia, “o acesso às informações certas no tempo certo e no formato certo é essencial!”. O direito à comunicação, além de ser um direito fundamental da Constituição Federal  de 88, é garantido pela Lei de Acesso à Informação (LAI), de 2011, que sofreu tentativas de alterações em março do ano passado, por meio da publicação da MP 928/2020. A medida provisória previa a suspensão dos prazos de resposta para os pedidos de informações de interesse da sociedade, enquanto durasse a pandemia. O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu as restrições à Lei de Acesso à Informação previstas na MP, no entanto a opacidade dos dados sobre a COVID-19 permanece.

No esforço de difundir informações sobre a COVID-19 e suas implicações, a CPI-Acre junto com a AMAAIAC e OPIAC estão, desde março de 2020,  produzindo e divulgando  nas redes sociais, sites e aplicativos de mensagens, diversos materiais preventivos com recomendações e informações atuais, fáceis de entender e provenientes de fontes confiáveis.  Um deles é o podcast  “Atenção, Txai!” produzido semanalmente e está no 49º episódio, sendo também veiculado na Rádio Difusora Acreana em todo o estado do Acre. O podcast apresenta sempre  as medidas de prevenção, a importância da vacinação e contextualiza a situação da pandemia nos territórios indígenas. Também por meio de diferentes mídias é divulgado semanalmente um informativo com os casos de COVID-19 entre indígenas no estado, auxiliando no monitoramento da doença –   necessário para a compreensão da situação da pandemia nas terras indígenas e nos municípios e assim poder controlar o contágio.

Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs) Jackson Sereno e Francisco Elivalter Shawadawa escrevendo diário de trabalho na Aldeia Jacobina, TI Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu (foto: Paula Lima)

 Comunicação nas TIs no Acre

Um levantamento realizado em abril pela CPI-Acre junto com parceiros indígenas, mostra que das 35 terras indígenas do Acre, 13 possuem algum tipo de acesso à internet nas aldeias. Esses acessos são por internet via satélite ou dados móveis, muitas vezes limitados, alguns alimentados por placas de energia solar, e apenas em algumas comunidades. Há aldeias que até possuem sinais de telefonia móvel, mas como não há energia elétrica é necessário carregar o celular nos geradores de energia a diesel, e o acesso a comunicação fica fixado em horários específicos, poucas vezes na semana. Em outras terras indígenas há orelhões em poucas aldeias, e em mais de 10 terras não há nenhum tipo de acesso à comunicação (rádio, internet, telefonia fixa).

 

 

Nas enchentes que afetaram todo o Acre em fevereiro deste ano, houve aldeias que por não possuírem nenhum tipo de comunicação, ficaram vários dias com dezenas de famílias desabrigadas, algumas delas em barcos, sem água potável e comida, impossibilitados de pedir ajuda imediata, como ocorreu na Aldeia 18 Praias, na TI Igarapé do Caucho. Somente após a chegada de pessoas da comunidade nos municípios que a grave situação se tornou conhecida e pode ser priorizado o auxílio.

A boa nova é que em 2020 houve um aumento na disponibilidade de internet nas comunidades indígenas do Acre. O isolamento social tornou o apoio às tecnologias de informação uma importante estratégia também para a continuidade de trabalhos não-presenciais inclusive nas aldeias. Há um ano a CPI-Acre vem trabalhando remotamente e estabeleceu uma comunicação diária com Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs), caciques, mulheres e professores indígenas em 14 terras indígenas. Com isso, foi possível realizar diversas ações junto com as comunidades, organizadas pelas lideranças locais e AFFIs. Sementes foram plantadas, os Sistemas Agroflorestais (SAFs) e roçados foram fortalecidos,  projetos de galinheiros saíram do papel, novos peixes enriqueceram lagos nativos e os AAFIs junto com a comunidade fizeram expedições para vigilância dos territórios, ensinando para os mais jovens os limites da TI, além de saberes da cultura do povo.

No primeiro semestre deste ano, as TIs Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu (Aldeia Vida Nova), Kaxinawá do Rio Jordão (Aldeia Boa Esperança), Mamoadate (Aldeia Extrema) e Arara do Igarapé Humaitá terão pontos com acesso a internet, que serão instaladas em aldeias estratégicas para as ações de proteção e monitoramento territorial. As instalações fazem parte das ações de projetos que a CPI-Acre desenvolve, em parceria com diversas associações indígenas, entre os quais o Projeto Corredor Sociambiental Alto Juruá-Purus e o Projeto Experiências Indígenas de Gestão Territorial e Ambiental do Acre, com apoio da Rainforest Foundation Norway (RFN), BNDES – Fundo Amazônia e WWF-Brasil.

Na TI Mamoadate há uma emergência por comunicação, principalmente por conta da dinâmica dos povos em isolamento voluntário com os quais os Manxineru e Jaminawa dividem o território, e também por ser uma área de fronteira com o Peru constantemente ameaçada por atividades ilícitas . Uma comunicação rápida pode ser determinante para o sucesso ou não de contatos com os grupos de isolados. Os orelhões instalados nas aldeias frequentemente apresentam defeitos e é necessário ir para os municípios para fazer ligações ou enviar mensagens, o que é preocupante neste momento da pandemia do coronavírus.

O acesso à comunicação de forma segura com tecnologias adequadas se tornou um aliado na luta pela defesa dos direitos.  A divulgação de dados sobre incêndios ilegais, desmatamentos,   invasões de madeireiros e outras ameaças, pode ser estratégia para  mobilização nas redes e cobrança de ações urgentes dos órgãos de governo responsáveis. As estratégias de gestão territorial e ambiental das terras indígenas certamente serão atualizadas à medida que o acesso à internet for incorporado nas comunidades. “Usamos a internet para fazer monitoramento do território. Pelo celular enviamos fotos, áudios e vídeos, para os  nossos parceiros desse trabalho. Têm muitas terras indígenas que não tem internet nas aldeias, querem comunicar com o pessoal que está fora, mas não tem como. Agora mesmo estou aqui na estrada, em um local que dá sinal no meu celular, para te enviar essa mensagem porque lá na aldeia o sinal é fraco”, explica Ismael Siã, da aldeia Shane Kaya, TI Katukina Kaxinawa.

A necessidade da internet e usos de mídias virtuais se intensificou no contexto da pandemia. Desde então, houve um crescimento da demanda pelo uso de tecnologias da informação para proteção da vida – na gestão dos territórios, no fortalecimento das culturas, na segurança alimentar, no empoderamento de mulheres e nas manifestações artísticas. No entanto, é preciso vencer a enorme deficiência da infraestrutura de comunicação nas comunidades indígenas para dar o próximo passo.