Gleyson Teixeira

 

O campo cultural está entre os mais prejudicados pela pandemia da Covid 19. Sua dependência de público, de aglomerações, de coletividade para produzir e compartilhar arte e cultura, sofre pela necessidade de isolamento social, única possibilidade presente de controle da pandemia enquanto a imunização pelas vacinas demora a alcançar a todos.

É nesse contexto, que surgiu uma iniciativa específica voltada aos trabalhadores da cultura, que deve também beneficiar os povos indígenas e populações tradicionais, a Lei nº 14.017 de junho de 2020 –  Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, que reservou investimentos no total de 3 bilhões de reais que foram distribuídos pela União para estados, Distrito Federal e municípios em 2020.

Esses recursos são para garantir renda e apoio necessários a artistas, mestre(as) e a manutenção de iniciativas coletivas dos diversos segmentos culturais, comunidades e povos durante o período da pandemia de Covid 19. A expectativa é que esses recursos cheguem na ponta, com rapidez, transparência, respeitando a diversidade sociocultural constitutiva de nosso país, mobilizando esforços para o atendimento às especificidades e beneficiando o maior número de pessoas, segundo os requisitos estabelecidos pela própria lei.

Essa lei é o resultado de uma grande mobilização da sociedade civil, dos agentes de cultura, artistas e outros atores sociais, que encontraram apoio no Congresso Nacional. Ela deve ser destacada como um importante instrumento de política pública no contexto de crise que vivemos. Como ação emergencial temporária, a previsão de pagamento de auxílio (renda) e promoção de editais era até dezembro do ano passado. A mobilização permanente dos segmentos culturais, resultou na prorrogação da lei para 2021, ao menos para utilização de recursos remanescentes.

Pensando nos contextos socioculturais indígenas, esse apoio emergencial é fundamental. A pandemia vem afetando muito o cotidiano das aldeias; hábitos, formas de convivência e práticas culturais. Põe em risco as famílias e seus velhos, mestres(as) que detém conhecimentos valiosos cuja transmissão para os jovens precisa ser incentivada e existem iniciativas em desenvolvimento para isso, algumas carecendo de apoio. Na pandemia, tem sido justamente a cultura, a espiritualidade que tem fortalecido as comunidades indígenas. O conhecimento ancestral sobre as medicinas da floresta, as pajelanças, tem contribuído para o enfrentamento desse momento, com um renovado interesse dos jovens por esses conhecimentos.

O momento tem exigido a suspensão dos festivais culturais. Essas festas que contam com a presença de visitantes, ou melhor, turistas, ganham importância interna cada vez maior nas terras indígenas, chamando atenção para a centralidade dada a musicalidade e o uso da ayahuasca, envolvendo significativo número de jovens.

Jovens do povo Shanenawa, aldeia Shane Kaya, TI Katukina-Kaxinawa. (foto: Paolo Altruda)

Um (des)caso na implementação da Lei Aldir Blanc

Não se trata aqui de estabelecer uma avaliação das várias frentes que chegaram de alguma forma a alcançar indígenas, empreendidas pelos municípios ou mesmo pelo governo estadual, mas um caso específico e bastante significativo pelo que mobiliza até o momento em esforços, recursos e resultados frustrantes. Trata-se do processo envolvido no Edital 004/2020 Povos Originários do Acre, sob responsabilidade da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansur – FEM.

Com a criação da comissão estadual gestora da lei, no início de julho, a FEM começou formalmente sua interlocução com os seguimento culturais, povos indígenas (as chamadas “escutas culturais”), buscando mobiliza-los e informa-los sobre os mecanismos e requisitos estabelecidos para acesso aos recursos. Cientes da importância da participação nesse processo para a garantia de investimentos para as iniciativas indígenas, um coletivo de lideranças com parceiros  ativistas culturais e indigenistas se articulou para formulação de uma proposta para o futuro edital e, posteriormente, dar apoio as candidaturas de projetos. O foco, portanto, estava naquelas ações emergenciais que se traduziriam em editais, chamadas públicas, prêmios, e informar e apoiar outros indígenas no cadastramento para obtenção de auxílio (renda) emergencial.

Durante os meses de julho e agosto, esse coletivo indígena promoveu reuniões virtuais, que resultaram na elaboração da “Proposta dos Povos Indígenas do Acre para a execução da Lei Nº 14.017/2020” entregue à FEM. Essa proposta foi baseada nas demandas e iniciativas existentes nas terras indígenas, assim como experiências acumuladas e originadas em políticas de apoio público anteriores, como por exemplo, o “Prêmio de Cultura Indígena”. Diálogos também foram mantidos com a Fundação Municipal Garibaldi Brasil.

As áreas temáticas defendidas na proposta foram: 1) Religiões, rituais e festas tradicionais; 2) Músicas, cantos, danças e confecção de instrumentos; 3) Línguas indígenas; 4) Narrativas simbólicas, histórias e outras narrativas orais; 5) Educação e processos próprios de transmissão de conhecimentos; 6) Meio ambiente, territorialidade e sustentabilidade das culturas indígenas; 7) Medicina indígena, Pajés, Parteiras, Agentes de Saúde Indígena; 8) Alimentação indígena; 9) Manejo, plantio e coleta de recursos naturais; 10) Culinária indígena; 11) Arte, produção material e artesanato; 12) Pinturas corporais, desenhos, grafismos e outras formas de expressão simbólica; 13) Arquitetura indígena; 14) Memória e patrimônio: documentação, museus e pesquisas aplicadas; e 15) Produção audiovisual e fotografia.

Cerâmica do povo Shawãdawa. (foto: Paula Lima)

A FEM concluiu as reuniões com os segmentos e representações indígenas para a discussão de propostas em agosto. Seguiram-se dois meses de espera para a publicação dos editais, entre eles o destinado aos povos indígenas. Considerando que um dos grandes desafios para implementação da lei no país era o pouco tempo estabelecido para a execução dos recursos, a demora da FEM gerou grande preocupação para realização do passo seguinte. Se por um lado, a instituição acolheu a proposta indígena para o edital específico (Edital 004/2020 Povos Originários do Acre), por outro, logo essa relação seria marcada por uma série de frustações para os indígenas, pelo despreparo dos gestores públicos em compreender as condições necessárias para garantia de acesso das comunidades aos recursos.

O edital foi lançado em novembro apresentando 108 premiações, nas seguintes modalidades: formação, pesquisa, práticas de fortalecimento das culturas originárias e produção. Cada proposta selecionada receberia o valor de R$ 22.000,00, totalizando R$ 2.376.000,00 investidos nesse edital. Os 20 dias estabelecidos como prazo para as inscrições já seriam curtos em condições normais. Não se considerou o contexto de pandemia, as dificuldades logísticas de comunicação e de acesso às sedes dos municípios. É de amplo conhecimento que as comunidades indígenas se encontram em lugares onde a comunicação é bem mais difícil, muitas vezes a enormes distâncias das cidades. Isso demanda tempo e esforços para que possam ter a informação e mais que isso, o entendimento das condições dadas para apresentação de um projeto cultural. O tempo destinado reduziu sim a possibilidade de um número maior de inscrições.

Outro aspecto que marcou o período de inscrições, foi a falta de respostas as solicitações encaminhadas aos canais indicados pela FEM em sua página na web e presentes no Edital, como e-mails e telefones de locais nas sedes dos municípios indicados para o recebimento de propostas. Muitas foram as reclamações sobre esse fato. A mobilização para que as comunidades tomassem conhecimento do edital, tirassem suas dúvidas e recebessem apoio para a apresentação de propostas foi em grande medida uma ação daqueles que integravam o coletivo indígena que esteve à frente na interlocução com a FEM.

Foram divulgadas 97 inscrições na primeira lista, número que se revelou impreciso dado a aparente repetição de nomes de candidatos e inscrições surgidas posteriormente. Ao final do processo, apenas 38 foram contempladas.

Nas etapas de análise e divulgação dos resultados (aptos, classificados, resultado provisório e final), vários questionamentos surgiram a partir das listas publicadas pela FEM no Diário Oficial do Estado (27/nov, 09/dez, 18/dez e 21/dez). Quem comparar os resultados presentes nelas, perceberá sem muito esforço, a presença de erros. Algumas candidaturas indígenas que foram declaradas aptas a concorrer na primeira lista, não foram citadas na lista seguinte, sejam como classificadas ou não. Outras candidaturas não citadas antes, surgiram a cada nova etapa de análise. E, ao menos um caso, em que uma inscrição feita, só aparece na lista final como candidato desclassificado.

Da mesma forma que houve pouco tempo para o processo de inscrição, menor ainda foi aquele para a apresentação de recurso, o que desestimulou proponentes. Não foram garantidas as condições necessárias, uma vez que era preciso ter acesso à informação, redigir documentos e enviar por e-mail, muitas vezes, sem ter o conhecimento do que especificamente deixou uma proposta com uma pontuação baixa. Em alguns casos, comunicados sobre ajustes nas propostas “classificadas com ressalvas” não foram enviados. Candidatos(as) indígenas buscavam informações para decidirem se ficariam nos munícipios mais tempo, no caso de terem que apresentar recurso; outros, com acesso apenas a telefone público em suas aldeias, esperaram notícias para decidirem se viajariam para o município próximo para atender alguma solicitação a tempo. Alguns ainda conseguiram contar com o apoio de parentes na cidade e assessores indigenistas, que acompanharam os problemas relatados aqui.

As lideranças indígenas ao constatarem as desclassificações sem justificativas, resolveram apresentar um Recurso Coletivo, solicitando urgente revisão do resultado. Não era a primeira manifestação do grupo. Através dos representantes indígenas no Conselho Estadual de Cultura (ConCultura), cartas anteriores foram encaminhadas para o presidente da FEM apontando problemas no processo em relação aos prazos estabelecidos, ao atendimento a dúvidas e as solicitações de certidões.

Diante da recusa da FEM em aceitar o Recurso Coletivo e corrigir seus erros, a Associação MATPHA – ManxineruneTsihi Pukte Hajene (Manchinery de Grandes Aldeias) solicitou a mediação do Ministério Público Federal no Acre, que por sua vez exigiu da FEM explicações e registros dos processos vinculados ao Edital n°. 004/2020. A representação feita pelas lideranças indígenas destacava a falta de transparência e critérios na análise das propostas. Dias depois, a FEM revogou o edital, declarando que providências seriam tomadas para a abertura de um novo com a readequação de todos os termos que foram questionados, sendo necessário para isso a prorrogação da Lei Aldir Blanc.

Nunca na história deste país tivemos tantos recursos destinados a cultura. Também, tão pouco tempo para que estados e municípios pudessem executá-los através do pagamento de auxílio (renda) emergencial e editais. Houve atraso na regulamentação da lei, recursos transferidos a poucos meses do encerramento do ano fiscal para estados e municípios e inflexibilidades colocadas para os órgãos públicos estaduais e municipais para uso desses recursos, gerando preocupação entre os gestores.

Mas, além da alegação de que seriam penalizados pelo Tribunal de Contas da União, esses gestores públicos deveriam também ter medo do que a desatenção, a falta de engajamento e a insensibilidade resultam. O quanto se desrespeita a necessidade e se destrói a expectativa das pessoas nesse momento de crise, sejam elas indígenas ou não, quando são colocadas dificuldades para os cadastramentos e a participação em editais, na ausência de respostas as dúvidas existentes, negativas sem justificativas entre tantas outras atitudes relatadas.

No Acre, desde governos anteriores, lideranças indígenas insistem sobre dois pontos com o Poder Executivo Estadual: nada se faz sem consulta e participação, e o diálogo tem que respeitar as especificidades dos povos, compreendendo-as e as valorizando. O reconhecimento e valorização dos povos indígenas presente em discursos tem que se traduzir em atitudes e ações concretas. É preciso que a gestão pública seja intercultural!

A prorrogação da Lei Aldir Blanc obtida recentemente no Congresso Nacional, uma vez sancionada pelo Presidente da República, possibilitará aos estados e municípios a utilização dos recursos em 2021. Espera-se, portanto, que um novo edital para os povos originários seja lançado pela FEM, como seria o certo mesmo que a prorrogação não ocorresse, buscando para isso outras fontes de recursos, pois é inaceitável que a FEM possa isentar-se de sua responsabilidade, diante de tantos erros verificados. A expectativa das lideranças indígenas é que seja mantido o mesmo montante de recursos. Mas a FEM já havia se encarregado de dificultar isso em dezembro, ao remanejar recursos para outros editais, cerca de R$ 810.000,00 transferidos para o audiovisual (Edital n°. 003/2020) e produção/eventos (Edital n°. 007/2020).

O diálogo com as lideranças indígenas precisa ser reconstruído, com a FEM fazendo sua autocrítica, assumido posições diferentes e claras, deixando de utilizar-se da estratégia de apontar que o problema ocorrido foi na verdade produzido por alguns indígenas que prejudicaram os demais. Com indignação, lideranças indígenas relatam a existência dessas declarações. Há muito o que construir como relações de confiança. Esperamos que o que venha pela frente, seja melhor, pela urgência e com respeito!