Por Ana Luiza Melgaço e Stoney Nascimento
As mudanças climáticas vêm ligando o alerta de lideranças globais desde muitos anos, trazendo uma preocupação com os níveis de emissões de gases do efeito estufa (GEE), mas com pouca ação efetiva para mudar os rumos que estão sendo tomados. A comunidade global, cada dia mais, aumenta seu potencial e padrão de consumo, sem que seja construída uma política coordenada entre os países que lideram o mercado global que busque modificar ou mesmo equilibrar esse consumo. Para que haja uma mudança efetiva, e para que boas tomadas de decisões sejam feitas, um dos aspectos mais importantes é a existência de uma boa governança para políticas climáticas. E isso se dá em diferentes níveis, que vão desde a Cúpula do Clima, que iniciou nesta quinta-feira, 22, nos Estados Unidos, até as organizações de bases indígenas e de outras populações tradicionais, que possam coordenar processos para modificação dos cenários existentes.
Os povos indígenas estão no centro das discussões que envolvem o tema, desde a participação em políticas de enfrentamento as mudanças climáticas até, e principalmente, quando estamos falando dos seus impactos, que chegam afetando diretamente os modos de produção, a segurança alimentar e a cultura desses povos. As terras indígenas contribuem diretamente para a manutenção dos serviços ambientais e melhoria do clima, localmente falando. Em todo Acre são cerca de 14,55% (SEMA) de áreas destinadas aos povos indígenas, e de acordo com dados do Setor de Geoprocessamento da CPI-Acre, a cobertura florestal nos territórios indígenas é superior à 99%, fruto da gestão territorial e ambiental que os indígenas fazem em seus territórios, tornando estes uma grande barreira contra o desmatamento e o fogo. São mais de 2.413.137,17 hectares (SEGEO/CPI-Acre) de florestas conservadas que têm um papel importante para evitar o aumento da temperatura do planeta. Mas, apesar de todos os esforços reunidos para a manutenção dessas florestas, os povos indígenas, ainda, estão entre as populações mais ameaçadas pelos impactos das mudanças climáticas.
“Estamos plantando de acordo com a nossa ancestralidade, que os nossos pais e nossos avós nos ensinaram, mas hoje, a plantação, os legumes, as frutíferas não estão nascendo. Esse foi o ano de queimada mais forte, principalmente no município de Feijó. Nós estamos com medo de perder sementes da nossa alimentação. Por conta das mudanças climáticas, a nossa segurança alimentar está sendo impactada, porque tem coisas que não vão nascer. A gente vem comprando cada vez mais coisas que a gente não produz na aldeia, por conta das mudanças climáticas. As coisas estão morrendo, estamos perdendo sementes. Toda a região também está perdendo.” – Edna Shanenawa, TI Katukina/ Kaxinawa (Depoimento enviado para a equipe da CPI-Acre em 2020)
“Preservar é cuidar da vida, pois se cuidarmos da floresta já estamos cuidando dos animais, dos rios, do ar, porque quando cuidamos da floresta já está cuidando de tudo. Enquanto existir floresta existe vida. Então nós vamos cuidar da terra porque a terra é vida, a terra ela é mãe, a terra é o começo de tudo, porque tudo que plantamos nasce, até uma semente que se joga ela nasce. Através da terra que existe a água, é através da terra que existe as plantas, é através da terra que existe os animais, através da terra que os animais se alimentam. E aqui nós temos a chuva e através da chuva as plantinhas começam a crescer, as árvores dão frutos e os animais começam a comer, começa a se alimentar e o homem também vem e se alimenta do animal. Então se tirar a terra, pode dizer que tirou a vida, tirou tudo, sem a terra não somos nada. Então a imagem do planeta é a terra, essa terra que é vida, é luz, é tudo porque a briga sempre é pela a terra e a Amazônia está nesse meio e é poucas pessoas lutando para sobreviver para a maioria que estão lá fora. Que os governantes reconheçam o valor que temos para a riqueza da Amazônia.” – Mailson Manxineru, TI Mamoadate (Declaração na Oficina de Enfrentamento às Mudanças Climáticas, 2019)
“As comunidades indígenas são diretamente afetadas pela ação climática, não porque elas causaram tudo isso. As pessoas precisam ter consciência que as grandes emissões de GEE causam grandes catástrofes, e a grande catástrofe é um povo ficar sem água, é um povo ter o alimento extinto, porque a gente sabe que as florestas quando elas sofrem com a ação climática, muitas árvores deixam de produzir frutos, deixam de produzir sementes, muitos rios com o aquecimento da água, os peixes somem e tem muitas comunidades indígenas que precisam da subsistência do que está na natureza. Então a consciência deve ser das pessoas que emitem, que elas possam fazer um plano de ação no mundo onde a gente possa ter a redução dessas emissões, se aumentar até dois graus a temperatura que nós temos hoje, é bem provável que poucas pessoas resistam, nós vamos ter muitas mortes, porque a quentura é uma coisa que mata muito rápido, então a gente fala isso não só para os seres humanos, mas dos animais, das plantas, tudo isso está envolvido.” – Sinéia do Vale, TI Raposa Serra do Sol, Conselho Indígena de Roraima (Depoimento enviado à equipe da CPI-Acre em 2021).
Como já mencionado anteriormente, a governança climática é um dos pontos altos quando projetamos ações que possam reduzir efetivamente as emissões de GEE (principais causadores do aumento da temperatura do globo terrestre), causando assim uma influência significativa a nível global. Aqui vamos conhecer alguns desses espaços que vem, ao longo dos anos, ampliando a participação indígena.
Governança Climática com participação dos povos indígenas – do local para o global
A Câmara Temática Indígena (CTI) é um espaço de diálogo entre indígenas, governo e sociedade civil organizada, que está ligada a Comissão Estadual de Validação e Acompanhamento do SISA – CEVA, que por sua vez tem o papel de realizar o controle social do Sistema Estadual de Incentivo a Serviços Ambientais (SISA) e está ligada ao Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais do Acre – IMC.
“Esse espaço de governança da CTI, é composto hoje por 19 organizações indígenas, a sociedade civil, o governo federal representado pela FUNAI e o governo do estado, porém precisa ser retomado, ele precisa ter sim a participação dos povos indígenas, ele precisa caminhar, uma hora está forte, outra hora parada e hoje por conta da pandemia a gente está tentando retomar, se esse espaço de governança não for fortalecido fica muito difícil ter o diálogo. Retomar a Câmara Temática Indígena, fazer com que os recursos cheguem nas Terras Indígenas, em tempo de pandemia porque tem uma crise muito grande, impacto da pandemia, impacto da alagação, muitos indígenas perderam sua produção então vão levar aí um ano para recompor toda sua produção que foi perdida. Se o Estado conseguir fazer isso retomar essa importante pauta que é o espaço de governança falando da questão indígena, fazer com que de fato funcione sem ficar no papel é muito importante para as tomadas de decisão, porque ele não só é consultivo, como também deliberativo. A participação indígena e a governança climática precisa avançar no estado do Acre. Não adianta falar bonito lá fora e aqui estar tudo parado, a gente tem que avançar nessas pautas porque vai tá lá governo, sociedade civil e movimento indígena, então é melhor a gente se acertar internamente. A CTI é o espaço de governança, que ainda hoje é o lugar para a gente tratar dessas políticas de baixas emissões e de serviços ambientais.” – Francisca Arara, TI Arara do Igarapé Humaitá (Depoimento enviado à equipe da CPI-Acre em 2021).
“A gente tem feito um trabalho sobre a transformação do tempo nas comunidades, e esse trabalho de base tem sido um subsídio para discutir esse tema tanto a nível local, estadual, federal e internacional. Então, são espaços conquistados através do esforço dos povos indígenas e também do trabalho que a gente vem fazendo e discutindo nas terras indígenas, é um tema discutido em todo o mundo, e principalmente agora nas comunidades indígenas, onde já sentem essas ações climáticas. Mas também, por exemplo, as discussões na câmara técnica da CONAREDD onde os povos indígenas estão inserindo e discutindo toda essa questão de construção da estratégia de REDD+ nos estados, foi uma conquista dos indígenas estarem ali participando, estar também na câmara técnica de mudança climática da PNGATI, é uma conquista que o povo indígena deve estar nesses espaços. Então os espaços de não governo e de governo a gente tem conquistado esses espaços com o subsídio do que a gente tem feito nas comunidades indígenas, do conhecimento do povo indígena nesse tema mudanças climáticas, ou transformação do tempo, e trabalhando sempre no sentido do enfrentamento às mudanças climáticas.” – Sinéia do Vale, TI Raposa Serra do Sol, Conselho Indígena de Roraima (Depoimento enviado à equipe da CPI-Acre em 2021).
A Força Tarefa dos Governadores para Clima e Florestas – O GCF-FT é uma plataforma criada em 2008 para facilitar e incentivar os estados e províncias, que atualmente conta com 38 membros, a consolidarem políticas ambientais e climáticas em seus territórios. Os Povos Indígenas têm cada vez mais garantido espaços importantes para apresentarem suas demandas, uma vez que são os principais conservadores das florestas e toda sua biodiversidade, que influenciam diretamente na regulação do clima a nível global. Ainda no âmbito do GCF-FT as comunidades locais ou tradicionais, mais recentemente, estão buscando dialogar e garantir uma participação efetiva, a fim de ampliar a discussão a respeito do seu papel na conservação de estoques florestais e promoção de serviços ambientais.
“Creio que o GCF-FT é uma oportunidade muito interessante. Não está substituindo outras organizações já formadas que, na realidade, se somam para podermos fazer com que chegue a nossa voz indígena até esses espaços. Sempre é um desafio muito grande fazer chegar [essas políticas] às nossas comunidades indígenas. Como também o que passa em nível global chegar nas comunidades indígenas. Isso é sempre muito desafiador, por que precisamos de muitos anos de trabalho que [se] possa fazer esse diálogo em nível global e local. Uma questão muito importante que estamos tratando agora é pensar uma estratégia para que, a nível global e local, possamos estar bem articulados. Essa composição vai facilitar bastante para colocar quem é que vai estar nos representando. Uma coisa que eu queria ressaltar, que é muito importante também, é a definição do que vai se decidir nesses espaços, pois isso também vai definir o perfil de quem vai nos representar e levar nossa mensagem. Nós precisamos, enquanto comunidades indígenas, decidir o que vai ser decidido sobre nossas vidas.” – Francisco Piyãko, TI Kampa do Rio Amônia, OPIRJ (Declaração no Encontro de Lideranças Indígenas da Amazônia Brasileira – Construindo propostas para a participação indígena na Força Tarefa dos Governadores pelo Clima e Florestas, 2019).
O Comitê Global dos Povos Indígenas e Comunidades Locais, Grupo de Trabalho (GT) dos Povos Indígenas e Comunidades Locais do GCF-FT foi formado em 2016 com o objetivo de fortalecer as parcerias entre governos subnacionais, Povos Indígenas (PI) e Comunidades Locais (CL) e ajudar a dar continuidade e efetividade à Declaração de Rio Branco, firmada em 2014. Tal Declaração, estabelece que os estados e províncias se comprometem a reduzir o desmatamento em 80% até 2020, em havendo investimentos baseados em desempenho. Além disso, os programas de incentivo devem prover benefícios às Comunidades Locais, Povos Indígenas e pequenos produtores.
O GT virou Comitê Global em 2017, na Reunião Anual que aconteceu no estado de Orion, em Klamath, Estados Unidos. O Comitê Global dos Povos Indígenas e Comunidades Locais reafirmaram suas posições para que os acordos estabelecidos no âmbito do GCF se transformem em ações concretas.
Em 2019, na reunião do Comitê Global, obteve-se um avanço relevante, que foi a aceitação da proposta de criação do Comitê Regional para Parcerias com Povos Indígenas e Comunidades Locais da Força Tarefa dos Governadores para o Clima e Florestas. O documento propositivo foi elaborado a partir de recomendações construídas coletivamente em um Seminário realizado no Acre, chamado “A participação indígena em Políticas de Mudanças do Clima: do local ao internacional”, em agosto de 2018. A discussão inicial do Seminário aconteceu em março do mesmo ano, quando foi realizada a primeira reunião com participação de indígenas e de representantes dos governos estaduais da Amazônia brasileira, com o objetivo de construir o diálogo entre os Povos Indígenas e os governos subnacionais da Força Tarefa Brasil.
“No seminário, organizado pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre), e Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais do Acre (AMAIAAC), em parceria com Instituto de Mudanças Climáticas do Acre (IMC) e Earth Innovattion Institute (EII), houve a oportunidade de apresentar para as lideranças da Amazônia brasileira a experiência de políticas climáticas do Acre, pioneiro no Brasil, e discutir os meios de participação mais efetiva na plataforma do GCF-FT. Então, com esse propósito, a gente criou uma proposta do Comitê Regional que precisa ser levada em conta aqui no GCF-FT e no Brasil, para a gente ter uma voz mais qualificada para o nosso trabalho dentro do GCF-FT; para a gente trazer mais força, mais participação e ter a voz de todos os estados, ter a voz do Brasil aqui dentro.” – Francisca Arara, (Declaração no Encontro de Lideranças Indígenas da Amazônia Brasileira – Construindo propostas para a participação indígena na Força Tarefa dos Governadores pelo Clima e Florestas, 2019).
Entretanto, a simples existência dos espaços oficiais que permitem a participação, não é suficiente para o enfrentamento as mudanças climáticas, se eles permanecem sem um funcionamento efetivo. É necessário um esforço ampliado para que esses diferentes espaços possam interagir, coordenando assim processos de tomada de decisão que reconheçam os povos indígenas e populações tradicionais que habitam, fazem uso e protegem as florestas, como provedores de serviços ambientais e contribuem diretamente para a manutenção do clima na terra. É preciso, também, incentivar que ocorram mudanças no padrão de consumo e modo de produção dos grandes países emissores de GEE, sendo todas essas ações possíveis de ocorrer no âmbito desses espaços.
Aqui no Acre, observamos, inclusive, que os espaços de governança participativa existentes estão passando por um momento de fragilidade, e isso implica diretamente na qualidade da execução de políticas públicas, programa e projetos que são importantes para a manutenção das florestas e seus ativos. O bom funcionamento dessas instâncias gera resultados que, embora que executados num nível local, contribuem diretamente para o alcance de metas a nível global, dessa forma é necessário que seja retomada toda a articulação, e principalmente nesse momento que o mundo se volta para o alcance das metas do Acordo de Paris, para que tenhamos os resultados esperados.
A Cúpula de Líderes sobre o Clima, iniciada nesta quinta-feira, 22, indica uma nova etapa no debate sobre as mudanças do clima. No encontro, organizado pelos Estados Unidos, com líderes de mais de 40 países, o governo americano declarou oficialmente um ajuste na sua meta , se comprometendo com a redução de 50% das emissões até 2030. O Presidente da República Jair Bolsonaro fez um discurso com dados falsos e prometeu zerar o desmatamento ilegal até 2030 e neutralizar as emissões brasileiras até 2050, embora não tenha feito esforço algum nos últimos dois anos para conter o avanço de grileiros e desmatadores. Do Brasil, participou também a liderança indígena Sinéia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), convidada pelo governo americano. A participação de uma liderança indígena brasileira sinaliza o reconhecimento da relevância dos povos indígenas no debate sobre o equilíbrio climático e a importância da gestão territorial e ambiental das terras indígenas na conservação de florestas e manutenção dos serviços ambientais para regulação do clima.
“Sempre digo que fazer o caminho de volta para as comunidades indígenas, desses temas que são discutidos no âmbito desses espaços, é que faz com que os povos indígenas possam ter a sua voz dentro dessas discussões, também ampliar esse conhecimento e essa participação para os povos indígenas que estão nas bases, porque se a gente não fizer esse caminho de volta, fica meramente os povos indígenas com seus representantes sempre participando ali, mas não tem aquela tomada de decisão que volta para a comunidade e a comunidade possa discutir e a pessoa tem uma ampla tomada de decisão ali a partir do conhecimento da sua base.” Sinéia do Vale, TI Raposa Serra do Sol, Conselho Indígena de Roraima (Depoimento enviado à equipe da CPI-Acre em 2021).