Durante a 27ª Conferência das Mudanças Climáticas das Nações Unidas (COP27), em Sharm El-Sheikh, Egito, governadores dos estados da Amazônia Legal, entre eles Gladson Cameli, governador do Acre, estiveram reunidos com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, no evento de entrega da “Carta da Amazônia”, em que os mandatários – na sua maioria apoiadores do presidente Bolsonaro – se comprometeram com a conservação da Amazônia com a cooperação do governo federal. No entanto, enquanto a presença de Lula marca a reativação das políticas climáticas no país, o mesmo não se pode dizer a nível de estado, uma vez que Acre permanece na contramão e perdendo seu protagonismo nas políticas de clima.
Na COP 27, Gladson Cameli disse que é preciso fomentar a “economia verde” e fortalecer o agronegócio, que busca se legitimar como solução para as mudanças climáticas, negando o pioneirismo do Acre nas inovações na gestão de serviços ambientais, principalmente na perspectiva da diminuição de emissões de gases nocivos por meio do mecanismo de redução de emissão por desmatamento e degradação (REDD+). Há 12 anos o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA) se tornava uma conquista do Acre para conseguir investimento em conservação. A implementação do Programa REDD Early Movers (REM), que completa 10 anos, tem destinado mais de 100 milhões da cooperação internacional com Reino Unido e Alemanha para conter o desmatamento no estado, no entanto, o que temos visto nos últimos anos é a explosão da destruição da floresta.
Em 2022 foi registrado no Acre o aumento expressivo de 44% em área desmatada em relação a 2021, totalizando 983,2km² até o dia 4 de novembro, em oposição a 682,2km² registrados no ano anterior. Somente no dia 3 foram desmatados 54,5km², um aumento de 763% comparado a todo mês de novembro de 2021. Além dos valores atípicos de desmatamento, novembro também se destacou com uma acentuação das queimadas fora do padrão histórico, aumentando 2.544% em relação ao mês de novembro de 2021, chegando a registrar 1.433 focos de calor em um só dia. As análises foram realizadas pelo Setor de Geoprocessamento (SEGEO) da Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre) com dados do Sistema de Alertas DETER e Programas de Queimadas, ambos do Instituto de Pesquisa Espaciais (INPE).
Felizmente, uma grande área de floresta protegida distribuída nas 35 Terras Indígenas no Acre assegura um relevante estoque de carbono da floresta para o clima global e se opõe ao desmatamento. Pela manutenção de serviços climáticos e ambientais prestados pelas comunidades indígenas, o Programa REM atende o pagamento das bolsas dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs), apoia a gestão territorial e ambiental de terras indígenas, o fortalecimento cultural via editais de projetos, e também a Formação de AAFIs, através do Subprograma Territórios Indígenas.
Contudo, não há informações claras sobre essas ações e nem o monitoramento da execução do Programa REM nos espaços de governança que são a Câmara Temática Indígena (CTI) e a Comissão Estadual de Validação e Acompanhamento (CEVA). A CTI é um espaço de diálogo entre indígenas, sociedade civil organizada e governo, que está ligada a CEVA, que por sua vez tem o papel de realizar o controle social do SISA. Só que o seu funcionamento tem sido falho, e em muitos momentos até mesmo inexistente.
A falta de diálogo e a inércia do governo em garantir uma participação plena e efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais não contribuem para uma boa governança. Como por exemplo, não se avalia a repartição de benefícios do Programa REM, as comunidades ficam sem informação e sem saber se estão atendendo à salvaguarda de que os benefícios do SISA e seus programas sejam compartilhados de maneira equitativa entre todos os titulares de direitos e atores relevantes (Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais – PICTs, produtores rurais, etc). Também não se discute com a CTI a captação de novos recursos para implementar outros programas previstos no SISA, como o Programa de Conservação da Sociobiodiversidade e o Programa de Valorização Cultural e do Conhecimento Tradicional Ecossistêmico, por exemplo.
Nos últimos dias 28 a 29 de novembro, reuniram-se em Rio Branco, no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF), da Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre), lideranças indígenas, representantes das organizações indígenas membro da CTI e lideranças de comunidades tradicionais, para trocar informações, fortalecer articulações e refletir sobre caminhos para participação efetiva e qualificada de PICTs em espaços de incidência no SISA do Acre e em políticas de clima que impactem seus territórios. Este é o segundo encontro realizado em 2022 no CFPF para fortalecer as estruturas de governança e salvaguardas.
Mesmo com todos os esforços da CTI, não há resposta satisfatória por parte do governo do Acre para informar as comunidades sobre os recursos e projetos, além do que foi captado pelo Programa REM desde 2012. Por conta deste silêncio, em maio deste ano a CTI enviou uma carta para a direção da Emergent, que faz a coordenação administrativa da Coalizão LEAF, uma iniciativa público-privada global que administra financiamentos para conservação de florestas tropicais e subtropicais, incluindo negociações para compra e venda de carbono. Na carta se diz: “As Terras Indígenas no Acre são as áreas mais preservadas e isso tem uma influência importante no equilíbrio do clima. Mesmo assim, não está sendo respeitado nosso direito de consulta garantido tanto na Constituição Federal, como na Convenção 169 da OIT. Causa indignação quando somos informados que está sendo negociado um novo projeto para o Governo do Acre, junto a Coalizão LEAF, sem ouvir nossas demandas, sem incluir nossas ideias sobre a repartição de benefícios da proposta apresentada ao LEAF, quando a própria comissão do LEAF exige que o governo informe sobre como se deu a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais na proposta!”.
Outra carta enviada a Força Tarefa dos Governadores para Clima e Floresta (GCF-FT), em outubro, também denuncia a falta de participação e diálogo: “Mesmo com toda estrutura de governança e participação social previsto no Sistema Estadual de Incentivo aos Serviços Ambientais (SISA), que desde 2019 não funciona regular e adequadamente, não há avanços de participação e diálogo entre governo e representantes dos PICTs […] Há ausência de consulta aos povos indígenas e comunidades tradicionais na manifestação de interesse do Governo do Acre à Coalisão LEAF, por exemplo”. Em março a CTI já havia enviado uma carta ao GCF-FT, também sem respostas.
As cartas são exemplos de que os princípios e critérios das salvaguardas construídas no SISA não estão sendo respeitadas. Ao longo dos meses, um coletivo de organizações indígenas, indigenistas e socioambientais vem buscando informações e diálogo com o governo do Acre sobre a participação efetiva em decisões, como neste caso da proposta enviada à Coalizão LEAF pelo estado do Acre em 2021 e toda discussão sobre mercado de carbono que não estão sendo informadas e muito menos tendo escuta sobre as demandas e interesses dos PICTs. O aumento das reclamações formais das lideranças indígenas pela falta de transparência fez com que a Coalizão LEAF passasse a condicionar que o governo do Acre efetue reuniões informativas e engaje a participação dos PICTs para poder avançar nos próximos passos da proposta do Acre.
Nesta quarta-feira, 30, a reunião marcada pelo governo do Acre com a presença do governador Gladson Cameli com mais de 30 lideranças indígenas, membros da CTI e a sociedade civil organizada foi esvaziada pelos indígenas devido o não comparecimento do governador. O encontro na Casa Civil tinha como pauta o funcionamento da governança do SISA e a Coalização LEAF, e poderia ser uma oportunidade para que Cameli apresentasse seu compromisso na agenda Clima com os povos indígenas, as comunidades tradicionais e a manutenção das florestas, e para os membros da CTI e as lideranças indígenas demonstrarem o descumprimento do governo com as salvaguardas e o SISA. “Nós estamos aqui repudiando a não presença do governador, pois já se passaram quatro anos e nunca dialogou conosco. Não ouvimos ele e ele não nos ouviu. Chegamos aqui e demos de cara com uma equipe que nunca resolveu nada, por isso nos retiramos da reunião. É uma falta de respeito”, disse Mário Kaxinawá, representante da OPIRE e membro da CTI.
Para que os incentivos cheguem aos que de fato contribuem com o clima é necessário que o governo do Acre se comprometa com os mecanismos já existentes, mas que não estão sendo levados em conta, como a estrutura de governança e o sistema de salvaguardas, que devem assegurar que os programas e projetos de REDD+ não causem efeitos negativos à conservação florestal da biodiversidade e impactos indesejados nas comunidades. Pela importante contribuição das terras indígenas na adaptação e mitigação do clima, é preciso garantir a participação indígena nas tomadas de decisão e governança.
Considerando o aumento do desmatamento e de queimadas no Acre, fica claro que o Programa REM e a política de REDD+ não deve ser tratada de maneira isolada, e sim articulada à outras políticas públicas em busca da sustentabilidade e igualdade de oportunidades, alinhados à projetos locais e programas de governo que não sejam incoerentes à proposta de reduzir desmatamento e conservar florestas. A COP 27 marca o momento em que o Brasil deixa de ser pária nas discussões de clima e mais uma vez, os indígenas foram porta vozes da agenda climática brasileira, levando a importância da demarcação de territórios e mais financiamento para manter suas ações e preservação, justamente por estar entre as populações mais impactadas pelas mudanças climáticas. Se seguir nesse retrocesso o Acre poderá não se recuperar e os impactos podem ser desastrosos. Não há plano B e é preciso que o Acre volte ao seu protagonismo dando o devido valor a participação indígena e de comunidades tradicionais. (Comunicação/CPI-Acre)