Quando o governo federal criou, em 1989, o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), no estado do Acre, a Aliança dos Povos da Floresta havia ampliado, anos antes, o conceito de conservação das florestas, colocando indígenas, seringueiros, ribeirinhos e comunidades tradicionais no centro das ações para a proteção da Amazônia brasileira. Passados 35 anos, o povo Nawa, que historicamente vive no território afetado pelo PNSD, vem mobilizando novamente essa aliança em busca da demarcação da Terra Indígena Nawa e da integridade territorial dessa região que faz fronteira com o Peru.
Durante o mês de julho, o povo Nawa realizou a quarta ação, só neste ano, de monitoramento e vigilância na terra indígena. Desta vez, além da presença de comunitários, Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs), professores, agentes de saúde, mulheres, crianças, jovens comunicadores e assessores técnicos da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), a atividade teve a participação de 12 indígenas do povo Nukini, cujo território faz limite com a TI Nawa. Desde 2021, quando decidiram pela autodemarcação, os Nawa têm realizado ações frequentes de monitoramento, expandindo para os vizinhos, incluindo populações tradicionais, as práticas de vigilância e proteção territorial.
“Estamos nessa trilha junto com o povo Nukini. É aqui que fazemos o nosso monitoramento desde quando iniciamos a autodemarcação. Este é um momento de muita concentração, mas de muita alegria também. Já são mais de três anos, com muitos resultados positivos”, diz a liderança Railson Nawa, durante a expedição até a base de monitoramento – agora chamada de aldeia Inu Awa, que fica cerca de 33 Km em linha reta de distância da aldeia Novo Recreio 1. Como a viagem é de barco, dependendo do período de seca, pode durar até um dia e meio pelo igarapé Novo Recreio.
Na aldeia Inu Awa, o grupo de cerca de 50 pessoas organiza o acampamento que dura em média de uma a duas semanas. Com algumas estruturas de tapiris (espécie de abrigo), muitos plantios de raízes, frutas e caça abundante, os indígenas têm o apoio necessário para monitorar os limites do território e trabalhar na abertura e manutenção das picadas, entre outras atividades.
“Os Nukini estão nesse intercâmbio conhecendo as experiências de autodemarcação dos Nawa e fortalecendo nossas parcerias para realizar essas atividades de proteção na TI Nukini. O meu sentimento é este, de fortalecer, sair com esse amadurecimento e juntar os povos para criar esses espaços de monitoramento coletivo”, conta a liderança Paulo Almeida Nukini.
A professora Amalha Nawa, da aldeia Novo Recreio, é uma das 15 mulheres que participaram da expedição de julho. “Eu estou aqui desde quando iniciamos a demarcação, fazendo esse trabalho de monitoramento. E vou até o final para melhorar a vida do nosso povo e das nossas crianças, para quando crescerem, elas terem a floresta para viver”, conta Amália Nawa.
Com um território inserido num contexto de fronteira binacional, o recurso para atividades que envolve monitoramento territorial, vigilância, incidência política e proteção de isolados na TI Nawa é sempre insuficiente. Com isso, é preciso que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) dê celeridade no processo de demarcação da TI Nawa, mas também aloque recursos para o monitoramento das terras indígenas. As ações de proteção territorial na TI Nawa apoiadas pela CPI-Acre fazem parte dos projetos Gestão Sustentável e Proteção Territorial no Acre Indígena, apoiado pela Rainforest Foundation da Noruega (RFN) e Proteção de Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil, financiado pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha, por intermédio da rede WWF.
Gestão Integrada
O Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD) é um dos cinco maiores do país, com uma extensão de 837 mil hectares, onde está localizado o marco divisório das bacias hidrográficas dos rios Ucayali (Peru) e Juruá (Brasil). Felizmente, os dados mais recentes mostram que cobertura florestal do PNSD em 2022 era de 99,7%, ou seja, menos de 0,3% sofreu alguma modificação, segundo o Mapbiomas.
As lideranças Nawa e Nukini, que têm áreas afetadas pelo PNSD, vêm destacando a necessidade de o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) fortalecer a gestão dos territórios indígenas junto com o PNSD e outras Unidades de Conservação (UCs), uma vez que a proteção da região do Alto Juruá passa pela relação entre essas áreas e as Terras Indígenas.
Nos dias 18 e 19 de junho deste ano, lideranças dos povos Kuntanawa, Nawa, Huni Kuĩ, Ashaninka, Puyanawa e Nukini estiveram em Brasília, junto com a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ), discutindo com órgãos e entidades do governo federal a gestão e demarcação das terras indígenas no Acre. Um dos pontos apresentados para a resolução dos problemas de dupla afetação, foi a criação de um Grupo de Trabalho (GT) Interministerial com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) para agir em conjunto na questão fundiária no estado. “É essa união dos órgãos que está faltando para resolver os problemas das nossas terras”, disse Ilson Nukini, liderança da aldeia Kampũ, TI Nukini. A aldeia Kampũ está localizada fora dos limites do território Nukini e dentro do PNSD. Os Nukini pedem o reconhecimento desta área que é considerada sagrada pelo povo.
Além dos projetos de integração regional Brasil-Peru, por meio da expansão de infraestrutura na Amazônia, como a proposta de uma estrada que cruzaria o PNSD para ligar o município de Cruzeiro do Sul, no Acre, a Pucallpa, no Peru, as lideranças indígenas citam como principais problemas as invasões de caçadores e madeireiros ilegais, entre outros ilícitos, e o turismo no PNSD que, sem controle, vem aumentando os problemas de lixo e contaminação dos rios, de onde é retirada a água para consumo das comunidades indígenas.
Um passo para lidar com esses problemas é a parceria do ICMBio com o povo Nawa nas ações de proteção territorial. Desde 2023, os Nawa têm contado com o apoio do ICMBio para montar “armadilhas fotográficas” em pontos críticos do território. Essas câmeras escondidas capturam tanto o movimento dos animais – registrando uma grande diversidade de fauna e o aumento da mesma – quanto atividades não permitidas pelo Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Nawa. Com isso, o ICMBio tem conseguindo qualificar e tornar mais efetiva a fiscalização do Parque.
“Além do monitoramento da fauna, a gente criou essa relação de proximidade com a equipe de monitoramento territorial. Isso tem, de certa forma, municiado a equipe de fiscalização do ICMbio com informações, e a gente conseguiu fazer uma operação lá na área dos Nawa, para combater o que os indígenas definiram como ilícitos pelo PGTA”, diz Guilherme Tebet.
O cacique Railson Nawa destaca o grande número de imagens registradas nesse último ano. “Só de imagens são cerca de 3 mil fotos de várias espécies de animais que estavam escassos”, comenta Railson. O monitoramento realizado pelo povo Nawa em parceria com o ICMBio amplia as ações de proteção nesta parte sudoeste da bacia amazônica, que é estratégica para a manutenção do clima e do regime de chuvas no país. Ações como esta demonstram uma relação diferente da que existia quando o PNSD foi criado, sem consulta aos indígenas que ali viviam, e com conflitos e equívocos, como o cadastro de populações indígenas como comunidades tradicionais.
Segundo o gestor do PNSD, o ICMBio tem avançado, junto com os Nawa, na formalização de um termo de parceria que reconhece a presença e o território indígena no parque e estabelece acordos e regras de convivência na área, com base no Plano de Gestão Territorial e Ambiental da TI Nawa. “A gente saiu de uma situação de conflito para caminhar com uma situação de cooperação. Um dos benefícios da parceria com as câmeras é demonstrar que os Nawa estão sim, conservando aquela área, que é completamente compatível essa ocupação tradicional indígena com os objetivos do parque. A ideia é essa, fortalecer esse monitoramento que já vem acontecendo”, conta Tebet.
Demarcação e vestígios de isolados
O processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Nawa, que se estende desde 2003, foi retomado em 2023 com a recomposição do Grupo Técnico (GT) Nawa, na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O antropólogo Terri Aquino, que é um dos integrantes do GT, tem reforçado a necessidade de uma ação integrada entre os órgãos federais para concluir não só a demarcação da TI Nawa, que está na fase de estudos e delimitação, mas também das outras terras indígenas pendentes no Acre.
Terri coloca como avanço o Acre ter a maioria das terras indígenas demarcadas: são 29 TIs, das 36 do estado. O antropólogo também destaca que não é difícil avançar para demarcar as que faltam, mostrando que o ponto é resolver o problema de sobreposição das áreas. “Não é difícil, pois todas são terras da União, não é tirar fazendeiro e grileiro da terra”, explica Terri.
Importante destacar que não é apenas os Nawa que dependem do território demarcado para ter seus direitos garantidos e seus modos de vida assegurados. Em março deste ano, na viagem de monitoramento e vigilância da TI Nawa, os Nawa se depararam com sinais de presença de indígenas isolados. “Nessas expedições a gente tem achado alguns vestígios dos isolados, outros chamam de ‘desconfiados’. Em março a gente ouviu três assovios, escutamos aqui na nossa trilha, e não era parente nosso, a gente sabe que tem esse povo aqui, sempre andando no nosso território”, conta Francione da Costa Moreira, vice cacique da TI Nawa.
Francione explica que os primeiros registros de isolados no território Nawa são de mais de 20 anos. “Já tem muito tempo que esses parentes vêm tentando se apresentar para a gente. A Funai já esteve aqui conosco, tentando encontrar esses rastros. Dessa vez, meus meninos viram o rastro deles aqui, nesta mata que nós estamos, mas não sabemos se eles vivem do lado de cá ou no Peru”, completa.
Em maio deste ano o governo peruano criou uma reserva indígena localizada nas regiões amazônicas Loreto e Ucayali, para proteger os povos em situação de isolamento. A Reserva Indígena Serra do Divisor Ocidental é território dos povos indígenas Remo ou Isconahua, Mayoruna (Matsés) e Kapanawa, que vivem nessa área de fronteira com o Brasil, onde também estão localizadas a Reserva Indígena Javari Trapiche, a Reserva Indígena Isconhaua e o Parque Nacional Sierra del Divisor, que faz limite com PNSD no Acre, formando uma área contínua.
Como observado nesta área de fronteira do Acre com o Peru, os territórios indígenas e os povos em isolamento voluntário estão sob várias ameaças, entre elas os projetos de governos locais e acordos bilaterais entre Brasil e Peru, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico da região. Nesse cenário, as associações e lideranças indígenas, em parceria com organizações indigenistas e ambientalistas, realizam há alguns anos diversas ações importantes para a proteção dos territórios.
A nível binacional, o movimento indígena de ambos os países vem atualizando estratégias para incidir politicamente junto aos governantes, como a Comissão Transfronteiriça Yurúa/Alto Tamaya/Alto Juruá, que publicou em maio uma carta denunciando os impactos ambientais e sociais dos ramais e estradas, tanto legais quanto ilegais.
Os Nawa, que ainda não têm terra indígena demarcada, também estão nesse movimento, protegendo os povos isolados e uma região de floresta rica em biodiversidade e beleza natural. “Vivemos numa área de fronteira que é muito perigosa. Então precisamos dessa união, dos Nawa, Nukini e Puyanawa nessa luta de proteção do território. Às vezes eu falo assim: a proteção não é só do território, mas é da vida. Começa desde a nossa vida, se nós não proteger, vamos ser mortos”, destaca Railson. (Comunicação/CPI-Acre)