Em 1987 a liderança Ashaninka, Antônio Piyãko, da Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, enviou uma carta para o mundo denunciando a terceira invasão que a madeireira Marmud Cameli e Cia fazia em seu território. Era também a mais devastadora, tendo afetado ¼ do território Ashaninka. Naquele ano foram derrubadas mais de 600 toras de mogno, cedro e outras madeiras nobres, impactando brutalmente a vida dos Ashaninka não só pela ameaça aos direitos originários e o pânico que as máquinas pesadas causaram na população, mas pelos danos causados à saúde da população, afetando segurança alimentar, poluindo as águas, destruindo biodiversidade que prejudicou importantes conhecimentos e práticas culturais Ashaninka. Começou ali uma batalha que representa um dos importantes processos de reparação de crimes ambientais em Terra Indígena no país.
O processo está no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2011 e agora foi celebrado um acordo histórico que dará início à resolução deste conflito que no sistema Judiciário dura 24 anos. No dia 1º de abril, na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, a Associação Ashaninka do Rio Amônia (Apiwtxa), o espólio de Orleir Messias Cameli, a Companhia Marmud Cameli e Cia., e representantes do Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional do Índio (Funai) e Advocacia-Geral da União (AGU), assinaram um termo de conciliação que reverterá para o território Ashaninka, que possui uma área de 87.205 hectares de extensão, 14 milhões em indenização e outros R$ 6 milhões para a sociedade em geral, que serão destinados a fundo de proteção a direitos sociais.
“A nossa riqueza está no nosso território e no nosso conhecimento. O dinheiro não está acima disso, ele nos ajuda a manter essa riqueza que nem todo mundo vê e nem todo mundo compreende. Não temos o dinheiro para nos colocar na dependência do que é de fora, da cidade, e sim para viver mais dentro da nossa terra”, conta a liderança Ashaninka Francisco Piyãko.
O recurso da indenização será destinado aos projetos da própria comunidade e a defesa da floresta Amazônica. A Apiwtxa vai enviar para a Funai e para o MPF, relatórios das atividades executadas a partir dos projetos aprovados em assembleia-geral da comunidade. “Vamos continuar executando os trabalhos que já fazemos, aplicar nos nossos projetos. Não é para distribuir para que as pessoas dependam do dinheiro. Queremos plantar muito, manejar nossos recursos para que tenhamos uma vida mais longa. Há 30 dias os Ashaninka estão sem ir para as cidades, por conta da pandemia do coronavírus. Estamos prontos para ficar o tempo que for necessário”, completa Piyãko.
Também faz parte do acordo, o registro formal de desculpa por parte dos madeireiros “por todos os males causados, reconhecendo respeitosamente a enorme importância do povo Ashaninka como guardiões da floresta, zelosos na preservação do meio ambiente e na conservação e disseminação de seus costumes e cultura”, diz o termo de conciliação. Continua sendo alvo de ação STF o madeireiro Abrahão Cândido da Silva, que não aceitou participar da conciliação e no último recurso, pediu a prescrição do dano ambiental, que já teve sua imprescritibilidade reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como um tribunal constitucional, a importante decisão do STF irá definir se deve existir prazo para a condenação de responsáveis por dados ambientais, afetando crimes como o de Brumadinho e Mariana, por exemplo.
Vigilância e proteção do território
Apesar da enorme crise causada pela invasão dos madeireiros, os Ashaninka se organizaram para enfrentar esses problemas com uma grande mobilização política que deu início ao processo de demarcação do território, finalizado em 1992, conforme Decreto s/n de 23/11/1992. Um ano antes a Associação Ashaninka do Rio Amônia (Apiwtxa) foi criada para ser instrumento de representação comunitária e política junto aos órgãos públicos e começou a atuar em defesa do seu território denunciando exploração entre os anos 1981 a 1987 da empresa Marmud Cameli e Cia, e iniciando esse longo processo judicial.
Com as denúncias da Apiwtxa a Polícia Federal instaurou um inquérito para incriminar os responsáveis pela retirada ilegal de madeira, impedindo de imediato a entrada no território Ashaninka, mas esse inquérito foi arquivado. Em 1996, a partir de uma carta das lideranças, encaminhada ao Procurador Geral da República no Acre, foi solicitado a sua reativação e uma vez acatada, instaurou-se a Ação Pública de indenização por atos ilícitos, danos morais e ambientais, colocando como réus Orlei Messias Cameli e Abrahão Cândido da Silva.
Livres do “patrões” que os exploravam, os Ashaninka se fortaleceram com uma política de proteção e recuperação ambiental, executando uma série de projetos de desenvolvimento sustentável em parcerias com diferentes ongs indigenistas e ambientalistas, tornando-se uma referência em gestão territorial para outros povos indígenas no Brasil e no Peru. Iniciaram em 2004 o levantamento e sistematização dos conhecimentos Ashaninka sobre o território por meio do etnomapeamento, que subsidiou os acordos comunitários para a gestão territorial e resultou no Plano de Gestão Territorial e Ambiental e no etnomapeamento “O Mundo Visto de Cima”, publicados em parceria com a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) e a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas no Acre (AMAAIAC). Várias iniciativas foram desenvolvidas pela Apiwtxa tendo como ferramenta política o etnomapeamento, cujos mapas facilitaram o diálogo com as autoridades brasileira e peruana, contribuindo para atender as demandas de vigilância e fiscalização do seu território e da fronteira.
Ainda nos anos 90, os Ashaninka se depararam com uma nova frente de invasão dentro do seu território, no limite da fronteira com o Peru, após o governo peruano conceder à empresas grandes áreas para atividades de manejo florestal. Sem o controle e fiscalização por parte das autoridades do Peru, começou um processo de exploração madeireira na Amazônia peruana por meio das chamadas “concessões florestais”, que se expandiram de forma descontrolada, até ultrapassar os limites e entrar em território brasileiro. Esta atividade promoveu a abertura de estradas que chegam até a linha de fronteira com o Brasil, próxima a comunidade Ashaninka, Sawawo Ito 40, vizinha da TI Kampa do Rio Amônea, e até hoje facilita a caça e pesca ilegal por parte de pessoas de outras regiões, muitas vezes se instalando numa área que serviu de acampamento a uma empresa madeireira peruana.
A exploração madeireira naquela fronteira e o anúncio, pelo governo peruano, sobre a instalação de frentes econômicas na região, foram elementos para uma grande articulação política que se deu no âmbito do Grupo de Trabalho Transfronteiriço (GTT) e promoveu, a partir de 2005, diversos encontros com lideranças indígenas de várias regiões do Brasil e do Peru. Na época, os indígenas no Peru trabalhavam a extração madeireira dentro das suas comunidades o que gerava tensões. Por este Grupo de Trabalho foi possível mostrar um novo modelo de gestão territorial e ambiental sustentável para a região, baseado na proteção e conservação da floresta, tendo como exemplo os projetos desenvolvidos pela Associação Apiwtxa, como a recuperação de áreas por meio dos SAFs e o manejo de quelônios e peixes. Hoje essas comunidades no Peru não aceitam a entrada de empresas madeireiras e petrolíferas na região.
A política de proteção territorial, conservação e recuperação de áreas desmatadas fez com que, mesmo com a devastação de grandes áreas no passado, a TI Kampa do Rio Amônea possua hoje uma cobertura florestal em 99,5 % do seu território, mais as áreas tradicionais de uso da terra, roçados, quintais e sistemas agroflorestais (SAFs). De 2004 a 2017 a TI Kampa do Rio Amônia obteve 31% de regeneração de sua floresta mantendo o mesmo cenário de preservação nos dias atuais (CPI-Acre, 2019).
Txai Terri Aquino, um dos fundadores da CPI-Acre, que nos anos 80 estava viajando todos os rios do Alto Juruá, junto com Antônio Macedo, Sueiro Sales, Siã Sales, Mauro Almeida, Ailton Krenak e outros companheiros, relembrou a carta manuscrita que recebeu de Antônio Piyãko, denunciando as invasões da madeireira no território. “Era verão amazônico quando subíamos o rio Juruá, desde Cruzeiro do Sul até o rio Breu, limite da fronteira Brasil-Peru e recebemos a carta. Finalmente, neste ano de 2020, em plena pandemia do coronavírus invisível, uma boa notícia, uma luz no fim do túnel”, comemorou.
De fato, o que representa este acordo histórico não só para os Ashaninka, mas para toda a região do Alto Juruá e para outras regiões do Brasil é o respeito e o reconhecimento aos direitos indígenas e à visão de mundo dos povos da floresta, que é indissociável do ambiente que vivem. Em cumprimento às normas constitucionais e internacionais, o reconhecimento da imprescritibilidade de danos ambientais é a decisão correta a ser tomada pelo STF que, por este processo do povo Ashaninka, leva Justiça a outros crimes ambientais no país. (Comunicação/ CPI-Acre)