A poucos meses de iniciar o período de intensas chuvas no Acre, conhecido como inverno amazônico, sistemas de aproveitamento deste grande volume de água estão sendo implantados na Terra Indígena (TI) Igarapé do Caucho, município de Tarauacá. Na última quinzena de setembro (16 a 27), foi realizada na TI a Oficina de Captação de Água da Chuva, pelo projeto Experiências Indígenas de Gestão Territorial e Ambiental no Acre, através de uma parceria entre a Comissão Pró- Índio Acre (CPI-Acre), a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e a Associação de Produtores Agroextrativistas Huni Kuĩ da TI Igarapé do Caucho (APAHC).
Tradicionalmente, as comunidades indígenas já fazem a coleta da água da chuva com baldes e bacias. O sistema de captação doméstica trabalhado na oficina permite a coleta e o armazenamento seguro desta fonte de água, em maior quantidade e qualidade, a partir de biqueiras e caixas de água instaladas na beira dos telhados. A captação de água pluvial está descrita em planos de gestão territorial e ambiental como uma proposta para levar saúde à população em um período do ano em que as doenças aumentam devido ao consumo de água contaminada. Mas esses sistemas pretendem acima de tudo melhorar as atividades domésticas das mulheres que durante o inverno atravessam caminhos cheios de lama para buscar água em cacimbas e igarapés, ou descem os barrancos dos rios várias vezes ao dia. Com as caixas de água, além das mulheres, crianças e homens têm o acesso a um recurso hídrico de qualidade, em casa e com a facilidade das torneiras.
Por outro lado, ainda que nas aldeias mais próximas das cidades existam poços artesianos instalados, no período chuvoso é comum a falta de energia elétrica e com isso, a bomba hidráulica não leva água para as casas. Dessa forma, a água da chuva torna-se um complemento importante e, reservados alguns cuidados, como não utilizar as águas das primeiras chuvas e acrescentar o cloro, pode ser consumida seguramente.
Eu sou Ivane, agente de saúde, moro na aldeia Tamandaré. No inverno tem muito problema de falta de energia, e não tem como puxar a água do poço. Quando prepara pra chover já falta energia. Quando não ta chovendo também falta sempre e fica aquele problema. E aí tem que descer aquela terra pra ir pegar água e fica difícil. Esse sistema pra mim eu estou achando que vai melhorar mais. Porque vai ajudar bastante de eu não ter que ir pegar água lá embaixo. E as outras famílias também que moram mais pra trás, vai ajudar bastante. Ela [a vizinha] não vai precisar descer a terra, pra fazer as coisas dela mais perto, com aquela barrigona.”. Pra fazer as coisas dela mais perto sem ser preciso descer a terra. Ontem mesmo eu estava sem água em casa já. Porque eu estou acompanhando a atividade da oficina desde o início e não tive como eu pegar água. Porque o meu mergulhão tá queimado e não deu de descer pra buscar água. Mas aí a água da chuva (que o sistema coletou) já ajudou. O que foi que eu fiz: o telhado já ficou limpo com o sereno. Eu encanei uma mangueira e puxei pra outra caixa no banheiro e foi perfeito. Nem foi preciso usar a torneira. Já me ajudou bastante, com essa água da chuva eu já lavei as coisas e vim pro trabalho. A água tava bem limpinha. Minha filha chegou eu falei pra ela. E ela tem duas crianças e ela precisa demais e ela vai usar também. (Ivane de Sousa Silva, aldeia Tamandaré)
A Oficina de Captação de Água da Chuva teve a colaboração do engenheiro ambiental André Procópio e a presença da coordenadora do projeto Experiências Indígenas de Gestão Territorial e Ambiental no Acre, Julieta Matos Freschi. O professor e presidente da APAHC Francisco Chagas Kaxinawá e o agente agroflorestal indígena (AAFI) Raimundo Ferreira tiveram papel fundamental na articulação política, logística e técnica de toda a oficina. Ao todo, oito sistemas de captação de chuva foram instalados na TI, nas aldeias Dezoito Praias, Caucho, Nova Aldeia e Tamandaré, sendo dois em cada aldeia. A equipe se propôs junto com as comunidades a instalar diferentes modelos de sistemas, que poderão ser comparados entre si.
“Um aspecto muito significativo da oficina foi a participação da comunidade, uma média de 10 a 15 pessoas em cada aldeia, e havia um grande interesse em ver como o sistema é montado. A oficina permitiu que as pessoas fizessem junto o sistema, o conhecimento local foi extremamente importante particularmente para pensar soluções aos desafios que foram aparecendo”, conta Julieta Matos, acrescentando que, por se tratar de um experimento inicial com esses modelos demonstrativos, em novembro deste ano será realizada uma segunda etapa da oficina na TI Igarapé do Caucho para acompanhar as famílias, saber como os sistemas estão funcionando e realizar ajustes e reparos que se mostrem necessários.
O projeto Experiências Indígenas de Gestão Territorial e Ambiental no Acre é financiando pelo Fundo Amazônia/BNDES e executado pela Comissão Pró- Índio Acre (CPI-Acre), em parceria com a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e as associações de oito Terras Indígenas no Acre. O principal objetivo do projeto é apoiar os processos de implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) desses territórios, por meio da formação e trabalho de Agentes Agroflorestais Indígenas, organizado em quatro componentes principais: a promoção de ações de proteção e vigilância territorial, manejo de quintais e sistemas agroflorestais, resíduos sólidos e a instalação de 52 pontos de captação de água pluvial nas 8 Terras Indígenas inseridas no projeto, com sistemas simples e adequados às comunidades.
A água é como a senhora viu: a do igarapé não é água muito boa pra gente beber. Ali nós temos uma cacimba mas não é tão limpa. Logo quando nós chegamos aqui, que os nossos filhos não tinham costume de beber essa água, eles adoeceram. Pegaram dor de barriga, pegaram vômito, pegaram febre. A água da cacimba é um pouco suja devido o barro, mas agora veio essa caixa pra aparar e creio que vai ter uma vida melhor um pouco, e ter uma água mais limpa. O liderança sabe a dificuldade que passamos na nossa casa, e eu fico agradecida por esse projeto. Nem todas as pessoas vão ganhar o que eu estou ganhando e muitas pessoas passam a mesma dificuldade. Tem gente que bebe até água do rio, que é imprópria! No verão dá mais trabalho porque as folhas ficam podres no igarapé e a água fica fedendo. No inverno a dificuldade da água é porque todo o lixo vai pra dentro da cacimba e lá é de onde a gente bebe água. Porque aqui alguns criam gado e as vezes a sujeira do boi escorre pra dentro da cacimba. Fica suja por causa dos animais. E [nos caminhos] fica um lameiro, fica liso, é uma dificuldade pra carregar água. E pra lavar roupa, passa de dois três dias porque não tem como a gente lavar. Porque pra lavar roupa não tem como você botar uma tábua que fica tudo alagado. Se passa o dia chovendo eu já vou coando da bacia e enchendo o balde de beber que tem uns 80 litros. Enche uma vez por dia. Porque eu não tenho outros. A gente bota bacia no trapiche debaixo da biqueira do telhado, vai juntando e despejando no vaso. Aí coa e bota cloro e a gente bebe. Quando chove espera cair a primeira água pra tirar a sujeira do alumínio. E quando tira a sujeira, com uns 5, 10 minutos de chuva começa a aparar pra beber e também pra fazer comida. Só não lava roupa nem lava louça porque a gente regra o máximo para beber. Se essa caixa encher e funcionar vai ser um alívio pra gente. Vai ter água limpa pra beber, pra fazer a comida dos nossos filhos. Por mais que o igarapé seja limpo não é tratado como é a água da caixa. E a caixa é maior e rende mais. Passa uma semana, 4, 5 dias sem chover, mas a caixa pega muito mais água. Mesmo no verão se passar 2, 3 semanas sem chover, ainda vai juntar água suficiente que seja pra gente beber. E no inverno vai até dar pra lavar roupa dentro de casa. (Maria de Nazaré da Silva Amorim (Vicenza), aldeia Caucho)