Nesta quinta-feira, 28, o povo Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia enfrenta mais uma etapa da batalha que dura três décadas contra os madeireiros Marmud Cameli, Abraão Cândido e Orleir Cameli. Nos anos 80, a família Cameli desmatou ilegalmente extensas áreas de madeira de lei no território dos Ashaninka. A ação criminosa abriu dezenas de quilômetros de estradas e ramais na mata, afetando mais de ¼ da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, que fica no município de Marechal Thaumartugo no Acre, na fronteira do Brasil-Peru. Enquanto os donos da madeireira lucravam milhões de dólares no mercado internacional com a venda de madeira nobre, o povo Ashaninka do Rio Amônia vivia a pior crise de sua história, trabalhando forçado para os madeireiros, com conseqüências como doenças, mortes e perdas culturais.
A Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Fundação Nacional do Índio (Funai) que estará em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quinta data de 1996, movida após denúncia da Associação APIWTXA, dos Ashaninka De lá para cá foi julgada em três instâncias, na Justiça Federal do Acre, no Tribunal Regional da 1ª Regiãoem Brasília e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Todas elas deram pareceres favoráveis aos indígenas, sendo que os ministros do STJ condenaram os réus ao pagamento de uma indenização (cerca de 30 milhões de reais) aos Ashaninka e à União.
Agora o STF irá julgar o recurso da família Cameli, revogando sua própria decisão anterior, que rejeitava o recurso dos réus. Para os Ashaninka a família Cameli busca protelar a decisão judicial para não cumprir o que a justiça determinou. A família do atual governador do Estado do Acre, Gladson Cameli, pede no recurso a prescrição do dano ambiental, que já teve sua imprescritibilidade reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como um tribunal constitucional, a decisão favorável ao recurso dos Cameli pode definir prazo para a condenação de responsáveis por dados ambientais, afetando crimes como o de Brumadinho, por exemplo.
Na época da invasão e da derrubada ilegal de árvores no território tradicionalmente ocupado pelos Ashaninka do Rio Amônia, Francisco Piyãko tinha 15 anos. Ele lembra nesta entrevista dos duros tempos que sua comunidade passou e como foi difícil retomar o curso de suas vidas após as consequências dramáticas da exploração predatório da madeira. Ele faz parte da delegação Ashaninka que está em Brasília para o julgamentono STF e diz que os Ashaninkas nunca desistirão dessa luta, pois “a derrubada da floresta é crime não só contra o nosso povo, mas contra toda a humanidade”. Confira a conversa com Piyãko:
Você tinha 15 anos na época das invasões ilegais dos madeireiros na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia. Como foi viver nesse ambiente de tanta insegurança?
Francisco Piyãko – Aquela região não foi ocupada por não-indígenas porque era um lugar bom de se morar. Essa ocupação, essa presença do homem branco nesses lugares, foi muito por conta da caça e da madeira. Aquele rio [Amônia] tinha o apelido de “rio da madeira”, como tinha outro rio próximo de nós que se chamava “rio da borracha”. A presença do homem branco era para servir de mão de obra para essas empresas. Isso mexia muito com a nossa cultura, ou a gente trabalhava e servia, ou a gente era um problema ali e tinha que sair, desocupar o espaço. Só que nós tínhamos uma cultura, a nossa vida era por conta das nossas tradições, nossa forma de ver o rio, de ver a floresta, pois é o nosso ambiente. Mas ele foi contaminado com essa presença [da empresa madereira] a um ponto que desconstruiu grande parte do nosso modelo de se organizar, das nossas regras, dos nossos valores. Colocaram os homens para um canto e as mulheres para outro, com funções que atendia um sistema de exploração da região. Uma invasão dessa não mexe só com quem está trabalhando, ela circula e transforma o ambiente de forma que você vai ter que lutar para sobreviver, sendo explorado. Nós vivemos muito tempo lutando para sobreviver, e sobreviver muitas vezes tendo que aceitar aquela condição. Isso foi um impacto tão grande que quando eles saíram, nós nos vimos com este grande desafio de se aproximar um do outro, porque a gente pertencia aos outros, não pertencia mais a “nós”. Esse processo foi muito lento, em um território que não tinha maiscaça, não tinha exploração de madeira, não tinha mais nada. Para muitos não tinha mais condição de ninguém viver naquele local, porque a única maneira de viver ali, no olhar do branco, era enquanto estava circulando financiamento para atividade madeireira. Mas nós sobrevivemos porque a gente não vive do dinheiro, a gente vive de outros meios que a floresta nos dá. Então nós desaparecemos por um bom tempo para a sociedade, as pessoas nos viam como inimigos quando demarcaram a nossa terra, quando tiveram as denúncias, os processos judiciais foram andando. É como se a gente tivesse cometido um crime muito grande em denunciar uma empresa que estava beneficiando muita gente ali. Até esse processo passar, esse é um assunto pouco falado na região. As pessoas nos tem como um problema para o desenvolvimento, por conta da Terra Indígena e por não permitimos as invasões de madeireiros. Mas hoje nós chegamos a esse momento com muita clareza de que fizemos a coisa certa.
O que representa esse momento para você e seu povo, visto que mais da metade da sua vida vocês esperam que a Justiça seja cumprida?
É um processo muito longo e teve várias etapas, estamos nesse momento crucial em que vamos saber se os Ashaninka vão ter decisão favorável ou não. Sabemos que o processo está bem embasado e já temos o histórico de ganhar em todas as etapas. Mas isso não representa para nós só ganhar uma ação na Justiça. Para nós é maior do que isso. É muito simbólico, porque é uma maneira de afirmar que o sdireitos dos povos indígenas, de acordo com que está na Constituição de 1988, estão sendo respeitados. Com isso vamos poder medir até onde nossos direitos estão sendo respeitados. Porque isso se aplica a todos os povos indígenas do Brasil. Se disseram não aos nossosdireitos, vãojogarparaumasituação de insegurançamuitogrande e a Suprema Corte estaráanulando, colocandoemrisco o nossofuturo. É issoqueestamosmedindo.
Foram três invasões que deixaram consequências dramáticas para o meio ambiente e para o povo Ashaninka, com enormes parcelas de florestas destruídas…
Por todos esses anos tivemos que lidar com a escassez de recursos. Nossos projetos de proteção, segurança, fortalecimento e desenvolvimento da nossa comunidade e consequentemente de toda nossa região devem ter investimento justos e sérios. Isso significa muito, apartir do momento que houve a invasão, que houve toda essa depredação do nosso território – que muita gente não conhece, mas está tudo escrito no processo- o impacto disso foi muito grande para gente, a um ponto que até hoje nós estamos trabalhando para reparar o nosso território. E nós não ficamos esperando. Durante esse tempo toda nossa vida foi voltada para o reflorestamento do nosso território, em recupar os nossos rios, em trazer o nosso povo de volta, que estava desgastado muito pela desvalorização da identidade. Trazer tudo isso de volta teve um processo interno muito grande e muito trabalho. Esse processo judicial significa isso: não é simplesmente uma disputa de interesse de receber indenização financeira por uma ação judicial, é uma reparação que precisa ser feita. É saber que o nosso povo trabalhou esse tempo todo corrigindo, tentando trazer de volta as condições mínimas para viver com dignidade e respeito. Os nossos direitos foram violados e desrespeitados. A Constituição Federal nos garante e não tenho dúvida de que esse resultado marca muito bem esse ato de afirmação do respeito aos nossos direitos. Não é um benefício só para o povo Ashaninka, representa para o Brasil o posicionamento de que a sociedade está bem protegida, bem representada quando se trata de violação de direitos. Não é só a questão indígena, você vê a questão de Brumadinho agora, essa confusão, o rastro dessas mineradoras. Esses depósitos de lixo são as únicas coisas que essas empresas deixam para a sociedade. (Comunicação/ CPI-Acre)