Em um passado recente ganhavam reconhecimento, espaços de participação, incentivos as experiências agrícolas que respeitassem os ambientes naturais, em que as práticas tradicionais de plantios e produção de alimentos se desvelavam como solução para o Brasil, harmonizando sua relação com a natureza. Nessa situação as práticas tradicionais indígenas se fortaleceram também e os contextos para políticas públicas estavam se desenhando, e em muitos casos foram definidos. É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Nesses, se estabeleceu um diálogo com os indígenas, em especial os Agentes Agroflorestais (AAFIs), que em certa medida ajudavam no entendimento para as decisões. Não ocultamos as dificuldades, os erros e os conflitos, mas tão pouco podemos negar que havia esforços para ser mais assertivo com a produção indígena.
Atualmente temos o contrário. É o agronegócio o modelo de produção. Com altos investimentos do Governo Federal, privilegia empresas multinacionais, a produção de alimentos para exportação e despreza a produção de comida de verdade. O agronegócio é um modelo que destrói a floresta para se transformar em monoculturas, explora a mão de obra, intensifica o processo de expulsão dos trabalhadores do campo e gera a concentração de terras e riquezas na mão de uma pequena parcela de latifundiários. É responsável pelo Brasil ter o título de país que mais consome agrotóxicos no mundo (5,2 litros ao ano por pessoa) e mais da metade desses venenos usados são proibidos em vários outros países; já que seu uso está relacionado à incidência de doenças como o câncer e outras genéticas.
As pesquisas indígenas apontam uma agrobiodiversidade com o cultivo de variedades de macaxeira, banana, milho, amendoim, batatas e outras, com técnicas de plantio que comprovadamente conservam a floresta, os conhecimentos tradicionais aplicados aos usos das espécies florestais e agrícolas, a dimensão cultural. Dentre outros aspectos destacamos alguns exemplos:
Lucas Manchineri em sua dissertação de mestrado que discute a sustentabilidade Manxineru, coloca que “a natureza descontrói e constrói, automaticamente […]. Hoje, o ser humano vem destruindo a natureza sem perceber que ela dá a vida a todos os seres vivos. As florestas estão sendo desmatadas e ela é quem mantém a terra viva, para gerar outras vidas. Para nós, Manxineru, a terra e floresta têm suas próprias leis construídas pelos poderes da mãe terra […].Há a hierarquia dos animais que é quem faz justiça. Então todos esses seres estão sendo afetados pelos seres humanos com o desmatamento, a poluição da água, a poluição da terra. Os animais já estão doentes de tanto massacre, por isso que esses seres precisam limpar os seus corpos para dar conta das demandas dos seres humanos, que não conseguem enxergar os seus deveres para com a natureza. Esses cuidados podem melhorar os alimentos que são produzidos por nós seres humanos.”
O Agente Agroflorestal Antonio Keã apresenta as inovações de seu SAF: “O Sistema Agroflorestal é muito importante para a comunidade. Antes de ter Agente Agroflorestal não tinha SAF. As comunidades trabalhavam só com as plantas de ciclo curto, no roçado….Hoje em dia a gente planta frutíferas. A gente planta sempre com a comunidade e escolhendo uma área própria para o sistema. Hoje em dia está melhorando, estamos abastecendo de frutas, fornecendo alimentos para a escola, melhorando o fornecimento dos produtos.”
Outro agente agroflorestal, Roseno Txanu, fala da preservação das sementes tradicionais e da produção de comida: “Também estou pesquisando sobre as sementes tradicionais do povo Kaxinawá. Estou pesquisando junto com Maria Isabel de 76 anos de idade […] sobre como era antes do contato com branco, no tempo da maloca, como nosso povo vivia [..]. O cacique trabalhava com ciência da natureza. Levava anos e meses. Trabalhava sempre na época certa, no tempo da maloca, viviam na terra firme no centro da mata…tomando água sadia da nascente […]. Depois eu fiz o levantamento de cada variedade de macaxeira que tinha antigamente no tempo de maloca. De primeiro a macaxeira era muito variada. Hoje tem 18 variedades de macaxeira. Perdemos 12 variedades de macaxera…
Fazendo o levantamento de milho vi que tinha as variedades: milho massa; milho do serencio; milho pipoca; milho preto…
Outra coisa é que fizemos um SAF para doação. Para abastecer a comunidade e alimentar a escola Espírito da Floresta. Também para alimentar as caças, porquinhos anta, veado que vem comer as frutas. Então as caças já abastecem a comunidade e também a escola Espírito da Floresta. Nós fazemos a prática e depois na sala de aula fazendo documentos, diários, desenho e avaliação com alunos e alunas da comunidade para segurar os alimentos com todos alegres.
Mas há no Acre também iniciativas que se contrapõem ao desmantelamento do que se avançou nos princípios da agroecologia. Vamos mostrar algumas ações que apoiam a produção agroecológica e consequentemente a organização e promoção das cadeias de valor de produtos agroflorestais em Terras Indígenas. São ações que correspondem às prioridades estabelecidas nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) de cada terra indígena e possibilitam desenvolver atividades produtivas com o uso sustentável da floresta e da biodiversidade.
Nas áreas de produção agroflorestal das TIs são produzidas uma abundância de espécies que favorecem a segurança e soberania alimentar das famílias, diversificando a dieta por meio do consumo de alimentos saudáveis e livre de agrotóxicos. Há um excedente da produção agroecológica, possível de ser comercializado por alguns agricultores e agricultoras indígenas tanto nas escolas locais, quanto nos municípios e no entorno, permitindo que acessem as políticas públicas acima citadas, e atenda uma reivindicação frequente do movimento indígena: a merenda regionalizada. Porém, estas políticas ainda demandam alguns desafios, para que de fato ocorram nas TIs do Acre. Estas ações, além de fazerem parte da formação dos AAFIs, estão integradas à gestão territorial e ambiental das TIs. Algumas aldeias já alcançaram o objetivo de serem fornecedores da merenda para a escola local e buscam expandir essa experiência para outras aldeias e TIs.
Envolvem também a recuperação de ritos e cantigas de caça e fertilidade, a recuperação e conservação de material genético, o monitoramento e gerenciamento de recursos naturais, o estudo e recuperação de saberes e matérias primas para a produção da cultura material: “Plantar as frutas e as espécies de madeira, criar animais domésticos e silvestres, construir açudes para criação de peixes e quelônios, tudo isso faz parte dos serviços ambientais, trabalhando para cuidar da natureza para não faltar, não acabar. Então o AAFI colabora com os serviços ambientais com a produção em seus SAFs e quintais agroflorestais. Os animais também contribuem para os serviços ambientais, como o trabalho realizado pelas melíponas através da polinização. As plantas também contribuem, quando caem suas folhas adubam o solo, a terra fica mais fértil e produzem as frutas que servem de alimento para os animais e seres humanos” (AAFI Abel Paulino, 2017).
Tendo por base várias dimensões, como a produção agroecológica, educação, cultura, meio ambiente, renda e sustentabilidade, ações concretas que valorizam essa produção está presentes no projeto “Cadeias de Valor em Terras Indígenas do Acre” que é desenvolvido em uma parceria entre Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) e Associações Indígenas, aprovado meio da Chamada Pública de Projetos Produtivos Sustentáveis, no ano de 2012. Financiado pelo Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O projeto é realizado junto a quatro associações indígenas, com três povos indígenas – Huni Kuĩ, Shawãdawa e Yawanawa nas seguintes Terras Indígenas (TI): Kaxinawá do Rio Humaitá, Arara do Igarapé Humaitá, Alto Rio Purus e Rio Gregório; localizadas respectivamente nos municípios de Feijó, Porto Walter, Santa Rosa do Purus e Tarauacá/Acre. Para a co-execução técnica do projeto, foram contratados quatro agentes agroflorestais indígenas escolhidos pelas comunidades e suas associações. Tais agentes são responsáveis por articular o projeto em suas TIs, realizando o monitoramento e levantamento de informações sobre o desenvolvimento das atividades previstas, além de acompanhar a evolução dos trabalhos em suas respectivas aldeias.
As atividades de produção agroecológica visam assim fortalecer o trabalho dos AAFIs e suas comunidades, em estratégias para o fortalecimento da segurança alimentar e contribuir para a geração de renda, através da comercialização do excedente da produção, ancoradas nas culturas e necessidades destes povos e as condições locais de cada Terra Indígena. As ações foram definidas pelos representantes de cada associação indígena parceira do projeto e contemplam: implementação e enriquecimento de áreas de quintais agroflorestais e Sistemas Agroflorestais (SAFs), implantação de hortas orgânicas, construção de barragens manuais, piscicultura onde se trabalha com espécies nativas, criação de animais silvestres como quelônios e melíponas, produção de açúcar preto, de mel de cana e de farinha.
Os resultados das ações desenvolvidas no âmbito deste projeto, são alcançados a médio e longo prazo, já que necessitam seguir uma dinâmica de ciclos de produção animal e vegetal, acesso às políticas públicas de forma efetiva e fortalecimento das cadeias de valor que foram apoiadas. Foram identificadas potencialidades nas atividades trabalhadas junto às comunidades indígenas, o que possibilitou colocar em prática anseios anteriormente idealizados e impulsionar suas ideias. É estratégico, não somente para os povos indígenas, que suas iniciativas de conservação e o trabalho dos AAFIs sejam devidamente reconhecidos, incentivados e apoiados para a garantia de continuidades. O governo brasileiro precisa entender que fortalecer e valorizar a agricultura tradicional indígena e a agroecologia refletem na prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, e promove a conservação e do uso sustentável da floresta Amazônica brasileira e gera riqueza.
Fonte: https://pagina20.net/v2/valorizando-a-agricultura-indigena/