Por Vera Olinda
A grave situação de pandemia que vivemos no Brasil e no mundo nos coloca diante de questões profundas que, ao longo do tempo, estão sendo deixadas em planos secundários ou quase inexistentes. Me refiro a saúde pública sanitária brasileira, obviamente, mas também a direitos fundamentais como condições dignas de atendimento a saúde, educação, moradia, laser, renda, segurança alimentar e valores como solidariedade, justiça social, equidade de gênero, transparência, participação, compaixão, consciência ambiental, amor à natureza, só para citar alguns, essenciais à cidadania.
A pandemia do coronavírus nos traz sofrimento, incertezas, tensões, mas também coloca claramente que é urgente a necessidade de mudanças para que possamos avançar em termos de civilidade — no que, aliás, andamos muito atrasados.
A crise causada pela pandemia nos mostra, e espero que nos ensine, que uma sociedade só evolui se enfrentarmos responsavelmente as questões elencadas acima. De outra maneira continuaremos sendo paliativos ad eternum, como ponto fora da curva, e já não aguentamos mais isso.
Se, para nossa sociedade, que tem cara pálida de tanto fazer bobagem, estes problemas assolam a um pico terrível de insegurança e descontrole, que piora com a irresponsabilidade e o desdém do governo Bolsonaro, desnudado politicamente por uma crise moral e pela saúde, imagina como afetam os povos indígenas que carregam uma história secular de injustiças nesta relação com a sociedade não indígena.
Mais grave é que a pandemia do coronavírus golpeia a vida destes povos, não só pelo contágio e pelas mortes, mas também pelas invasões de suas terras indígenas para exploração de recursos naturais, como ouro e madeira. Como parasitas violentos, os invasores se aproveitam do momento e, com apoio público declarado do presidente da República, entram em territórios e vão destruindo a floresta, as pessoas, as culturas, desrespeitando todo um histórico de lutas e conquistas destes povos para retomarem suas terras e seus direitos constitucionais.
A vida destes povos se organiza em convívios e negociações bem resolvidas com a natureza. Todos os seres têm lugar e papel nos territórios, e isso deve ser respeitado. A floresta traz fartura, comida, alegrias, festas, curas, ensinamentos, conflitos, construção etc. Muita complexidade no convívio.
Txanu Rosenir, agente agroflorestal indígena do povo Huni Ku?, no Acre, em uma ocasião falou: “Na floresta tem muita proteção da saúde. Nada é fácil, mas a dificuldade é mais [presente] hoje em dia. O pajé é o médico. Ele faz dieta. Não tinha doença do branco, só doença da caça. Nossa doença surgiu das partes dos animais. E o pajé entende, por isso nós consideramos ele muito poderoso. Vai pegar com a Samaúma o espiritual para tratar a pessoa. A Samaúma não pode ser destruída”.
Há muito o que aprender com os povos indígenas. A resistência e a capacidade de resiliência impressionam. Nos últimos 50 dias, desde que surgiu o primeiro caso de Covid-19 no Acre, temos vivido, discutido e dividido preocupações, angústias, problemas, trazidos pela pandemia, mas também estamos empenhados conjuntamente em tentar evitar que essa doença atinja brutalmente as terras indígenas.
Sabe-se que os indígenas são mais vulneráveis, que o modo de viver em comunidade, compartindo moradias e utensílios facilita a propagação de doenças e desse coronavírus. Este é um dos fatores pelos quais precisam de atenção especial do Estado em ações estruturadas de combate, prevenção e emergência nessa pandemia, como já recomendado pelo Ministério Público Federal.
No Acre, a situação se agrava com o crescimento de pessoas contagiadas. O fluxo de indígenas nos municípios e na capital é considerável, e a sociedade em geral (não só indígenas) não está cumprindo o isolamento e distanciamento social como deveria. Para todos não é simples entender o distanciamento, como também entender a necessidade de, de repente, ter De parar de circular entre cidades e terras indígenas. Parar de visitar, de pegar na mão do outro, de comer junto, de beber o mingau dividindo a mesma cuia. A vida mudou rapidamente.
Uma nova doença, a Covid-19, chegou. Estão sendo feitos esforços conjuntos entre diversas instituições indígenas e indigenistas (associações indígenas, representações locais dos órgãos de saúde indígena, sociedade civil) para que todos permaneçam em suas aldeias. A educação mostra-se mais uma vez potente. É muito importante intensificar as campanhas educativas à distância, a informação qualificada sobre os riscos da doença.
É preciso vencer mais essa e ter mudanças efetivas dos governos para proteger as sociedades. Do governo federal não esperamos mudanças nesse sentido. Então, juntar, unir, apoiar são imperativos para sair dessa. Ecoam as vozes dos povos indígenas no Acre – Huni Ku (Kaxinawa), Ashaninka, Noke Koí (Katukina), Shawãdawa, Yawanawa, Poyanawa, Nukini, Nawa, Shanenawa, Jaminawa, Jaminawa-Arara, Kuntanawa, Apolima Arara, Manxineru, Madija (Kulina).
Para construir a vida nova, vamos precisar de todo mundo. Um mais um é sempre mais que dois, como diz a canção do Beto Guedes.
Texto originalmente publicado no no ECOA – UOL : https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/05/24/vamos-precisar-de-todo-mundo.htm?cmpid=copiaecola&fbclid=IwAR0MiEk_TUk7RUsYLGUWM9EzcbfSCBivn90CM3kQvffr-9UC1XmI5gfJN00