Estávamos desde segunda-feira (03 de abril) em um grande seminário promovido pela Secretaria de Educação do Estado do Acre e a Comissão Pró-Índio do Acre, com o apoio da UNICEF, chamado “Subsídios para a criação das categorias ‘escola indígena’ e ‘professor indígena’, e outros marcos para a gestão intercultural da EEI no Acre”. Professores e técnicos pedagógicos indígenas de quase todas as regiões do estado, vindos de Terras Indígenas de diferentes rios e falantes de diferentes línguas, conversavam com intensidade sobre a situação atual e sobre o futuro de seus trabalhos na educação escolar em suas aldeias, sempre no sentido de ajudar o Estado a elaborar bases legais para garantir a continuidade e a melhoria das escolas. Durante as manhãs e as tardes as vozes se sucediam, hora animadas e alegres, hora mais graves e preocupadas, mas sempre muito cuidadosas e ponderadas, afinal, todos os professores presentes tem muita experiência e compromisso com os seus parentes, que esperam as boas notícias chegarem na aldeia. As discussões passavam por atualização de assuntos tão importantes e interessantes como “o que define uma escola indígena de qualidade?”, “quais são as responsabilidades e as competências do professor indígena?”, “quais são as responsabilidades da SEE e de outras instituições?” e outros temas.
Na manhã do quarto dia do encontro, discutíamos os critérios que determinam a escolha dos professores pelas comunidades, todos eles colocando de maneira inovadora e sensível as exigências que a instituição da escola traz consigo, e as histórias, os modos de viver e de pensar, a tradição e a organização de cada povo. Ainda não haviam sido discutidos em plenária os temas da formação dos professores ou da consulta e participação dos povos indígenas nas políticas de educação, quando soubemos, através de uma professora Yawanawa, que nenhum professor de seu povo foi aprovado no vestibular para o Curso de Formação Docente para Indígenas da Universidade Federal do Acre. A má notícia foi se espalhando e se completando: nem os professores Jaminawa, nem os professores Katukina, nem os professores Manxineru, nem os professores Shawãdawa, nem os professores Puyanawa… Por motivos diferentes, alguns, dizem, justificados por detalhes do edital do concurso, professores de seis povos deram com a cara na porta do curso da UFAC, vendo frustradas suas expectativas de se qualificar e assim contribuir com a melhoria da educação nas aldeias por questões menores, ou mesmo irrelevantes, se consideradas em relação com o trabalho e as necessidades de seus povos.
Imagina-se a cara o os trejeitos daqueles que, de posse das razões do edital, pensado e escrito diante das telas de computador em salas assépticas e esfriadas pelo ar-condicionado, vão justificar a exclusão dos professores e professoras com a pele queimada pelo sol da viagem, com restos de barro ainda grudados nos chinelos já gastos, com o corpo fortalecido pela experiência de trabalho e pelo esforço, que talvez cheguem aos municípios mais próximos das suas aldeias para reclamar e pedir esclarecimentos acerca dos motivos porque foram eliminados no concurso. E a pergunta que insiste é: quando estamos pensando sobre um curso cuja verdadeira razão de ser é o trabalho que os professores indígenas realizam em suas aldeias na floresta, faz sentido deixar que o ingresso na Universidade seja determinado tão-somente por questões burocráticas que podem facilmente serem mal-compreendidas? Faz sentido um vestibular que considera apenas a proficiência na língua portuguesa escrita, e que desconsidera a experiência que os professores indígenas são capazes de expressar em seus próprios meios e em sua própria língua? Dada a realidade das dificuldades logísticas e de comunicação que perpassa a relação entre as escolas indígenas e os seus profissionais e as secretarias de educação, a UFAC e outras instituições localizadas nas sedes dos municípios, não seria de se esperar que a comissão que pensou a seleção para o Curso de Formação Docente para Indígenas garantisse certa flexibilidade na inscrição e no cumprimento das condições necessárias para a aprovação no edital?
Durante a nossa conversa, diversos professores começaram a contar a história da criação desse Curso da UFAC (uma história que, apostamos, muitos dos que participaram na elaboração deste processo seletivo não conhecem tão bem). Ouvimos como os professores começaram a vir aprender a fazer conta e a escrever e ler para conquistar a sua autonomia diante dos brancos que começavam a sair e a desocupar os territórios que então se tornariam as terras indígenas. Da formação dos chamados monitores à conquista das escolas nas aldeias, à formação dos professores indígenas em nível médio, até a formação continuada: foi chegando o momento de entrar na universidade, e foi com muita luta que os professores indígenas conseguiram que a UFAC assumisse o compromisso de fazer um curso específico para a sua formação. Duas turmas se formaram neste Curso, em 2014, com toda dificuldade e toda a alegria dos anos de estudo, as vezes longe da aldeia, as vezes pesquisando junto dos parentes, ou viajando para participar de reuniões.
E, para além dessa missão que foi dada à UFAC pelos professores indígenas, não teria chegado a hora (já tarde…) das universidades brasileiras se abrirem aos povos originários? Sabemos que algumas universidades já estão fazendo isso, com níveis variados de sucesso. E justo a Universidade Federal do Acre, ambientada nessa floresta com sua diversidade de povos, culturas e línguas, e que parece disposta a acolher essa riqueza de conhecimentos (lembremos da SBPC Indígena, do II Encontro Internacional da Ayahuasca, e outros), realiza agora um vestibular que exclui muitos povos, segundo critérios que não foram discutidos junto aos professores e às lideranças indígenas. Será que não é possível fazer um vestibular mais de acordo com as formas de trabalhar e de pensar dos professores que estão nas salas de aula nas aldeias? É possível uma universidade brasileira que realmente aceite outras linguagens além da língua portuguesa oficial, padrão? Uma universidade que se constitua juntamente com outras formas de pensar e de conhecer?
Pensando nessas questões, os professores reunidos no seminário encaminharam à UFAC a seguinte carta, que foi assinada por todos, e que reproduzimos aqui:
Rio Branco, 07 de abril de 2017
Nós, professores, técnicos pedagógicos e outros representantes dos trabalhos de educação escolar indígena no Estado do Acre, reunidos na oficina “Subsídios para a criação das categorias ´professor indígena´, ´escola indígena´ e outros marcos para a gestão intercultural da educação escolar indígena no Acre”, viemos, através desta, pedir esclarecimentos sobre o processo seletivo adotado pela Universidade Federal do Acre para o Curso de Formação Docente para Indígenas, bem como manifestar o nosso desapontamento com os resultados do concurso, uma vez que nenhum professor Yawanawa, Jaminawa, Puyanawa, Manxineru, Katukina ou Shawãdawa foi aprovado. Os professores indígenas, suas lideranças e outros representantes não participaram da construção do processo seletivo do Curso, o que resultou em um vestibular que exclui candidatos por motivos injustos e que contrariam os princípios da educação escolar indígena. O processo seletivo não levou em conta as dificuldades logísticas e de formação que os professores, que deveriam ser os beneficiados por este Curso, enfrentam.
Apesar de todo o nosso trabalho e do esforço dos professores indígenas, a educação escolar indígena no Acre padece por falta de apoio, principalmente na formação dos professores e outros profissionais da educação. Tivemos esses dias a desagradável surpresa de saber que, em uma rara oportunidade de participar num curso de formação completa (isto é, que não ocorre “só de vez em quando”), os professores dos povos Yawanawa, Jaminawa, Manxineru, Shawãdawa, Puyanawa e Katukina foram reprovados no concurso por questões menores e por falta de informação sobre o processo seletivo.
Gostaríamos de enfatizar que o Curso de Formação Docente para Indígenas foi criado a partir de uma demanda dos professores e das lideranças indígenas que, preocupados com o futuro da educação escolar nas aldeias, buscaram criar as condições para a continuidade da formação dos professores e para a melhoria de suas escolas. Ainda nos lembramos das inúmeras vezes em que muitos de nós nos reunimos para tentar ajudar a UFAC a elaborar o Projeto Político Pedagógico do Curso, e nos dispusemos a participar dos processos de elaboração do Curso, inclusive de seu edital de seleção. Em 2014, participamos de um grande seminário de revisão do PPP do Curso, no qual discutimos longamente sobre os critérios que deveriam presidir o vestibular. Esse Curso deve ser reconhecido como um curso regular da UFAC, mas não deve ser pensado como um curso que “é da UFAC”: antes ele é dos povos indígenas, origem e destino das experiências de educação escolar indígena. Exigimos que a nossa participação seja levada a sério pela UFAC, e que o Curso se realize de acordo a sua verdadeira missão: fortalecer e apontar um futuro para a educação escolar indígena no Acre.