Por Malu Ochoa
Na divisa do Brasil com o Peru, duas grandes bacias hidrográficas, o Juruá e o Purus, mantém no traçado das suas águas importantes áreas de conservação do bioma Amazônico e, principalmente, saberes e modos de vida de povos indígenas, comunidades tradicionais e ribeirinhas, além de indígenas em isolamento voluntário. Localizado no estado do Acre, um conjunto de 18 Terras Indígenas (TIs) e sete Unidades de Conservação (UCs), em sua maioria federais, estabelecem involuntariamente um grande corredor com 57.614,40 km2 com uma estimativa de 30 mil habitantes, conforme levantamento da Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre). Tem sido nesta área que desde os anos 90 acontecem ações de proteção territorial e ambiental, com protagonismo e participação dos povos, com diversas parcerias técnica e financeira. Mais recentemente, em 2018, estas ações se organizam com apoio do projeto Corredor Socioambiental Alto Juruá-Purus, desenvolvido pela CPI-Acre junto com associações locais e apoio da Rainforest Foundation Norway (RFN).
É justamente a presença dessas populações nessa faixa de floresta que a mantém como uma importante zona de amortecimento na fronteira com o Peru, e uma barreira contra o desflorestamento de áreas consideradas de grande relevância para a proteção do ecossistema amazônico. Durante centenas de anos, a tradição antiga de alguns povos de plantar espécies florestais vem enriquecendo a cobertura florestal da região. A relação dos povos indígenas e comunidades tradicionais asseguram práticas sustentáveis de uso e manejos de recursos naturais de baixo impacto (caça, pesca, sementes, agricultura itinerante etc.), respeitando as zonas de refúgio que contribuem para manter e ampliar a diversidade de animais e recursos vegetais.
A proposta do Corredor Socioambiental Alto Juruá-Purus tem como objetivo a constituição de uma rede de articulação interinstitucional e o desenvolvimento de ações que promovam o diálogo, a troca de informações e capacidades entre as populações locais, os órgãos governamentais e instituições não governamentais parceiras, para estratégias coordenadas de gestão territorial e ambiental e promoção de direitos e participação em políticas públicas. Essas estratégias se respaldam também na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em seu artigo 26, diz que “quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deve ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a contabilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociobiodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional”.
As experiências de gestão integrada entre comunidades indígenas e tradicionais, apoiadas pela CPI-Acre, estão relacionadas a diversos acordos e posicionamentos políticos, traduzidos em ações de intercâmbios para a vigilância e monitoramento para a proteção territorial, uso e conservação dos recursos naturais, fortalecimento cultural e produção agroecológica. A seguir apresentaremos algumas destas experiências, realizadas principalmente na região da bacia do Alto Rio Juruá.
“Quando fala de gestão territorial integrada, é o que a gente está falando aqui, juntar, integrar os povos, as instituições que cuidam, porque a forma de vida é parecida, os costumes são parecidos, são todos populações tradicionais e nada mais justo do que fazer essa gestão, com esse cuidado, procurando parcerias para que saia dali o resultado também integrado, para que todas as populações tradicionais possam desfrutar disso juntamente. Nós estamos integrando as populações indígenas com a extrativista em prol de um mesmo objetivo comum” – João Brás, presidente da Associação da Reserva Extrativista Alto Tarauacá (ASARET), durante reunião na aldeia São Joaquim, em 2019 na TI Kaxinawa do Baixo Jordão.
É comum durante as reuniões, as lideranças rememorarem sempre o histórico de ações voltadas para a conservação das florestas com a Aliança dos Povos da Floresta, movimento organizado por indígenas, seringueiros e castanheiros, na década de 1980, para reivindicar seus direitos à terra e combater o desmatamento causado pela expansão agropecuária.
“Essa luta sobre Unidades de Conservação, Reservas Extrativistas, Terras Indígenas, Parque Nacional, ela não é uma história de agora. Em 1986 já se trabalhava com o sindicato, já se iniciava, em 1984 a luta dos sindicatos em Cruzeiro do Sul e começou assim, como a gente está aqui agora, índios e os seringueiros sentados falando do seu modo de vida, daí surgiu a necessidade de ser criado naquela época a ‘’Aliança dos Povos da Floresta’’, que seria todos nós a lutar pelo seu modo de vida da sua forma tradicional e isso repercutiu um sucesso muito grande, principalmente no nosso Estado. Tanto índios como seringueiros e ribeirinhos lutavam pela sua libertação, libertação essa que a intenção daquela época para cá era tanto Reservas Extrativista, Terras Indígenas, que cada um de nós pudesse se libertar das mãos dos patrões. Para nós mesmo nos dizer donos dos nossos territórios, nós mesmos zelar por eles, que é a nossa cultura, que é cuidar dessa riqueza da nossa biodiversidade, da nossa fauna brasileira. Na Reserva Extrativista do Alto Juruá, a primeira Reserva Extrativista do Brasil, se deu por conta dessa luta, dessa aliança dos povos da floresta. Estava junto ali, que hoje já não está mais presente, uma grande liderança do povo Huni Kuĩ o Sueiro Sales, o Getúlio e Siã Kaxinawá, nessa aliança dos povos da floresta, do Breu tinha o Felipe Sereno, e Lopes Ashaninka, do rio Amônia, Antônio Piyãko e Chari, Jorge Varela e Jorge Mersa e do Rio Bajé, Sebastião Siqueira, Antônio Siqueira, Raimundo Siqueira e seus parentes. Daí eles foram se juntando, foram se juntando os delegados dos sindicatos, das comunidades e chegaram a ir até Brasília, na época das manifestações para poder conseguir demarcar as terras” – Osmildo Kuntunawa, Agente Agroflorestal Indígena, durante a oficina na TI Kaxinawa do Baixo Jordão, 2019.
Em 2018 e 2019 foram realizadas 11 reuniões de articulação interinstitucional, para compartilhar informações, ouvir recomendações, estabelecer acordos e construir agendas de trabalho em parceria com AAFIs, representantes de associações das reservas extrativistas e representantes de instituições públicas. Na maioria destas reuniões estiveram presentes a Funai, ICMBio e SEMA; as organizações representantes de comunidades tradicionais AMOPREAB, ASARET, ASAREARJ; as associações indígenas ASKARJ, AKARIB, AAPBI, AIN, APINAWA, AARIB, APIWTXA, OPIRJ, AMAAIAC e OPIAC; representantes das TIs Jaminawa Arara do Rio Bajé, Kuntunawa, Arara do Rio amônia, Cabeceira do Rio Acre, Mamoadate, Riozinho do Iaco, Comunidades Nativas do Peru, Sawawo, Saweto, Shauaya, Santa Rosa, Oori e Koshirene e representantes do WWF, EMBRAPA, Aflora (UFAC), IPAM, Comitê Chico Mendes, CSDA e SOS Amazônia. Desde 2018 também são realizadas oficinas nas TIs Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu, Kaxinawa do Baixo Jordão, Nawa, RESEX Chico Mendes e RESEX Alto Tarauacá. Nesses encontros são discutidas as ameaças comuns aos territórios, atualizando e reestabelecendo alguns acordos coletivos e atividades para conservar e proteger os territórios.
Como experiência concreta, podemos citar no Juruá os acordos entre as comunidades da TI Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu que vem desenvolvendo junto a seus vizinhos peruanos das comunidades Oori e Koshireni. São tratados relacionados ao uso comum de algumas áreas do território (praias, rios e igarapés) dessas duas comunidades peruanas. Para todas as comunidades os acordos estão voltados ao uso sustentável dos recursos naturais e a vigilância conjunta do rio Breu para impedir a entrada e saída de pessoas estranhas. Construir estratégias de proteção além da terra indígena está previsto no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da TI Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu. Para as lideranças Huni Kuĩ dessa terra, o plano converge com as estratégias de diálogos com o entorno.
“Para mim o Plano de Gestão Integrado é o que a gente discutiu, a gente já vem fazendo esse trabalho, é muito importante. Porque além disso, a gente vinha trabalhando com o Plano de Gestão Territorial só da nossa terra indígena, mas agora nós discutimos, é um plano que é de tranquilidade, porque é um plano que não vai beneficiar só nós aqui. Porque esse plano não vai trabalhar mais só nessa terra ou só no nosso povo, vamos depender de fazer diálogo com o nosso vizinho do entorno da nossa terra, porque aqui tem a Reserva Extrativista do Alto Juruá, e nós temos duas comunidades do Peru, que são Koshirene e Oori, e descendo temos a vila Foz do Breu. Nesse contexto, pode ajudar na implementação do Plano onde nós estamos trabalhando com a nossa comunidade, com a conscientização, a sensibilização. Nisso, vão ver o trabalho que nós estamos fazendo o manejo dos recursos naturais como a palha, nós criarmos uma área para que a gente possa deixar sempre permanente, de uso interno da comunidade, da madeira, medicina ou de caça. Então esse tipo de plano de gestão integrado, que aqueles vizinhos vão conhecer também. Pensando no futuro, que é um trabalho importante que nós já estamos fazendo esses tempos. E nós, juntos, mostrando para eles também, já podem pensar no futuro deles, que é um trabalho que não pode prejudicar o meio ambiente, é um trabalho que pode durar e crescer, fazer o seu desenvolvimento do seu povo ou comunidade com a segurança alimentar, ou conhecimento tradicional, porque hoje não estamos ligados em grandes projetos, como hoje o Brasil tem, como o agronegócio, tirar nossa floresta ou algumas coisas que não é agradável pra nossa terra ou para o nosso povo. E isso para mim ficou muito claro para começar a trabalhar e acompanhar esse Plano de Gestão Integrado” – Aldemir Matheus, Agente Agroflorestal Indígena, durante oficina na Aldeia São José em 2018, na TI Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu.
Ainda no Juruá, a discussão sobre a gestão integrada envolve atores sociais das Terras Indígenas, Comunidades Nativas do Peru, Unidades de Conservação e associações, e são voltadas para as estratégias políticas de proteção territorial e defesa de direitos, frente as ameaças de infraestrutura e políticas econômicas projetadas para a região. As lideranças do Brasil e Peru há anos vem reafirmando o posicionamento em relação a estrada de empresas madeireiras e petroleiras e principalmente com a abertura da estrada Nueva Itália – Breu. A situação da estrada começou a vigorar novamente na agenda dos governos locais em 2020, e deverá passar próxima às TIs Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu, Kampa do Rio Amonea e a Reserva Extrativista Alto Juruá, no município de Marechal Thaumaturgo, ocasionando mais uma vez uma grande mobilização e articulação do movimento indígena do Peru e Brasil. A estrada está sendo construída de forma ilegal por empresas madeireiras peruanas, e trará impactos socioambientais transfronteiriços, por ser uma região com unidades de conservação e territórios de oito povos indígenas e comunidades tradicionais.
Na região Alto Tarauacá – Jordão, as ações de etnomapeamento resultaram na elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas Kaxinawa do Jordão, Kaxinawa do Baixo Jordão e Kaxinawa do Seringal Independência. Juntas, as três terras indígenas somam uma área contínua de 1.076 km² hectares sob a proteção e gestão do povo Huni Kuĩ. O plano veio fortalecer as iniciativas realizadas pelos Huni Kuĩ, onde várias ações vêm sendo implementadas, como o monitoramento territorial, implementação de SAFs e educação ambiental.
As ações se gestão territorial e ambiental das TIs Kaxinawa do Jordão se amplia para algumas comunidades da RESEX Alto Tarauacá, a partir da realização de oficinas de gestão integrada. Um resultado foi a elaboração do documento intitulado “Acordos de gestão integrada para a garantia do nosso futuro”, que inclui ações fundamentadas no diálogo para resolução de conflitos, intercâmbio de experiências de uso sustentável, conservação dos recursos naturais, monitoramento e proteção territorial, tendo como parceiros os órgãos gestores FUNAI e ICMBio. Também no Jordão, em 2018 e 2019, os AAFIs Lucas Sales, Josias Maná, Vanderlon Kaxinawá e Jaime Kaxinawá realizaram, na RESEX Alto Tarauacá, a oficina de práticas produtivas com 17 extrativistas, que envolveu a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AMAAIAC) e a Associação de Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista Alto Tarauacá, e teve apoio da CPI-Acre e ICMbio.
Na ocasião o grupo construiu viveiros, trabalhou com sementeiras, produção e repicagem de mudas, fez plantios e práticas de adubação com materiais orgânicos e técnicas de podas. Para os AAFIs, esta foi uma experiencia importante que deve ser ampliada para outras comunidades. A discussão para a gestão territorial e ambiental com participação e diálogo entre indígenas e comunidades tradicionais contribui com fortalecimento das comunidades, com a manutenção de florestas e garantia dos territórios, e são também uma barreira contra esse pesadelo ambiental que vivemos atualmente no Brasil.
“Agora chegou o momento de trabalhar com o vizinho, através do apoio, nas discussões, nas reuniões, intercâmbios. Através do projeto Corredor Socioambiental isso é possível, para saber como manejar os recursos. Como temos essa experiência como os povos Huni Kuĩ, temos que informar e trabalhar junto com os vizinhos. Esse é o momento certo. Teve essa oficina de Gestão territorial socioambiental e teve o fortalecimento com os vizinhos. Essa convivência é importante. Eles são filhos dos seringueiros e foi por aí que nos aproximamos deles. Os AAFIs tem sido importante nisso, pois somos formados, técnicos pela CPI-Acre. Eles também estão trabalhando com o manejo para a floresta produzir, criar, trabalhar com alimentação, com frutíferas. Estão acompanhando do que foi realizado para a melhoria de todos. Olhando e entendendo estamos desenvolvendo os modelos demonstrativos de criação, de plantação, de barragem, dos lixos, das queimadas, das caçadas. Está tudo mais difícil, pois a população está aumentando nos municípios, nas aldeias e nas RESEX. Têm mais aldeias, mais picos de caçada. Também está tendo impacto das mudanças climáticas. Mas estamos nessa parceria importante, não só na conversa, mas na prática. Contamos com o apoio com muita felicidade, interesse e animação para trabalhar porque tem resultado. Através da aula prática a gente vê que é possível: sementeira, mudas, viveiros. As pessoas interessadas levaram para suas comunidades. Aula prática de adubação para melhorar os quintais. Assim que estamos querendo. São pessoas de confiança e de responsabilidade. Assim aprendemos juntos. Estou querendo acompanhar de perto e valorizar isso. Queremos fazer e pensar no futuro. Os vizinhos são nossos txai, irmãos, por isso queremos trabalhar juntos. (Josias Maná, Agente Agroflorestal Indígena da TI Kaxinawa do Rio Jordão)